quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Feliz Natal, amigos !





O Natal é tempo de companheirismo, reflexão, uma época do ano onde sempre somos convidados a olhar para trás e pensarmos no que vivemos durante o ano. É tempo de fazermos como Jeremias nos propõe em suas Lamentações, i.e, "Trazer à memória o que nos dá esperança" (Lm 3:21). 

Este convite é o que gostaria de trazer novamente a vocês a partir de Abraão. Este homem que como nos diz Tiago foi chamado "Amigo de Deus". (Tg 2,23; Is 41,8) E por que ele foi chamado amigo de Deus? Simplesmente porque creu em Deus e agiu de acordo com a promessa que havia recebido. Sem pestanejar , ele saiu de sua terra, da terra da sua parentela e foi para um outro lugar que ele não sabia qual. Simplesmente se fiou na palavra daquele que havia dito a ele que "de ti, farei uma grande nação" (Gn 12:2).
O exemplo de Abraão nos mostra que a fé sempre tem como pressuposto a credibilidade de quem faz a promessa. O Deus que fez a promessa à Abraão possuía credibilidade junto a este e por isso Abraão aceitou o chamado. 

Os amigos tem como característica peculiar, o de gozar credibilidade com os seus. Há, no entanto, vários tipos de amigos. Há amigos para as horas de alegria, há amigos para horas de tristezas, há amigos para qualquer hora.  Há amigos "mais chegados que irmãos" como nos diz o Provérbio. Felizes são os que possuem vários amigos, mais feliz ainda aquele que possui um grande amigo. Aquele de quem o Eclesiástico fala, a quem ele compara a um grande tesouro. 

Toda amizade para ser verdadeira demanda tempo, demanda doação, entrega, demanda às vezes abrirmos mãos de nós mesmos e ir à luta pelos interesses do outro. Esta doação está no cerne da amizade. Este se importar está no coração da verdadeira amizade.  Jesus nos disse certa vez que "ninguém tem amor maior que este,  o dar a vida pelos seus próprios amigos" (Jo 15:13). Apenas o amigo é capaz deste tipo de doação. Talvez agora possamos entender o como Abraão foi capaz de entregar Isaque quando solicitado por Deus. Por um amigo fazemos grandes sacrifícios. 

O Natal nos relembra o grande sacrifício oferecido por Deus ao homem. Jesus nascer entre nós é um exemplo de doação, um exemplo da amizade de Deus para com o homem. "Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu filho unigênito" (Jo 3:16). Esta prova de amizade de Deus deve nos inspirar a estarmos prontos à doação, ao sacrifício, ao companheirismo entre nós. Companheirismo este demonstrado pelo próprio Cristo que não nos chama mais servos, mas sim amigos. 

Que sejamos capazes de enxergar as nossas amizades como um presente vindo dos céus para nós. Como puro dom de Deus. Que a cada dia estejamos mais unidos, e que assim como Abraão, Jesus, e o próprio Deus estejamos dispostos a nos doar cada vez mais fazendo jus a este tesouro que temos que se chama amizade. 


O Natal dessa forma se coloca como um grande lembrete de que há sempre a possibilidade de que alguém caminhará junto conosco e ao mesmo tempo se coloca como um anúncio da esperança que se renova em cada novo encontro, em cada novo ano, em cada nova celebração. 

Como o nascer do sol que traz consigo a esperança de um novo dia, assim também o Natal nos inspira nessa mesma direção.

Desejo a todos um feliz Natal !



quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

O embaraço dos literalistas diante da situação política brasileira






Há sempre um grande risco em se ler o texto bíblico de forma literal. Primeiramente porque ao assumir esse tipo de postura em relação a qualquer texto facilmente caímos em pequenos labirintos dos quais não saímos facilmente, e em segundo lugar que para fazermos uma leitura literalista de qualquer texto temos que pressupor uma espécie de atemporalidade em relação ao próprio texto. Atemporalidade esta que se torna impossível, pois a própria escrita só pode ser escrita em um determinado tempo, em um determinado lugar, etc. 

Em relação ao texto bíblico muitas pessoas que conheço (Em sua maioria evangélicas) assumem uma leitura literalista. Eles acreditam piamente que o texto foi escrito por homens, mas totalmente inspirados por Deus. Acreditam que cada palavra foi ouvida e reescrita de acordo com a vontade divina, sem nenhuma influência "humana" na escrita. Dessa forma, todo texto bíblico é A palavra de Deus, e como tal deve ser seguida independente da época, da sociedade ou qualquer outra coisa. É como se de alguma forma o próprio Deus estivesse dando diretrizes seguras e definitivas para resolver qualquer situação que aparecesse daquele momento pra frente. 

Não é difícil perceber que esse tipo de atitude se mostra extremamente infantil e talvez por isso mesmo, extremamente ingênua. Talvez uma tentativa hercúlea de negar as contingências da vida em nome de um discurso último sobre a realidade. Talvez um desejo implícito aí de que nada mude na ordem das coisas, um desejo de certeza inabalável que não necessita lidar com o diferente, mas pode ser vivido hermeticamente, fora do tempo, uma espécie de "vida eterna" às avessas. No entanto, como é típico das atitudes infantis, tal desejo carece de uma consistência e até mesmo de uma coerência quando o mundo da vida se impõe sobre o sujeito. Em diversos momentos esse indivíduo que assume uma leitura literalista se vê em xeque em relação àquilo que visa defender. 

Retirar do texto bíblico a sua temporalidade, o seu contexto social, o seu povo que fala a partir do que vive e tentar aplicar atemporalmente o que está ali é incorrer naquilo que no início do texto chamamos de "labirintos difíceis de sair". Como um pequeno exemplo do que falo, vamos olhar a situação política brasileira e confrontar com o famoso "texto político" de Paulo super aclamado por diversos pastores quando querem legitimar a sua "autoridade". 

Já apontei em outro texto o fato curioso de que muitos evangélicos assumiram durante as eleições um caráter mais conservador e isso continua sendo demonstrado ainda hoje, mesmo depois de passadas as eleições presidenciais. Esse conservadorismo tem muito a ver com essa leitura literalista do texto do que falo aqui nesse texto. Vários evangélicos que vejo (ou leio nas redes sociais) assumem um discurso contra o governo atual e vários deles fazem campanhas e mais campanhas incitando a participação em marchas, em encontros, usam hashtags das mais diversas do tipo #foraPT #Impeachment, #ForaDilma, etc como forma de demonstrar a insatisfação com o governo petista e o atual governo da Dilma. No entanto, curiosamente não percebem que ao assumir esse tipo de postura se colocam contra a sua própria visão literalista do texto bíblico. 

Paulo afirma em Rm 13,1-7 que 



"Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas.
Portanto, aquele que se rebela contra a autoridade está se colocando contra o que Deus instituiu, e aqueles que assim procedem trazem condenação sobre si mesmos.
Pois os governantes não devem ser temidos, a não ser pelos que praticam o mal. Você quer viver livre do medo da autoridade? Pratique o bem, e ela o enaltecerá.
Pois é serva de Deus para o seu bem. Mas se você praticar o mal, tenha medo, pois ela não porta a espada sem motivo. É serva de Deus, agente da justiça para punir quem pratica o mal.
Portanto, é necessário que sejamos submissos às autoridades, não apenas por causa da possibilidade de uma punição, mas também por questão de consciência.
É por isso também que vocês pagam imposto, pois as autoridades estão a serviço de Deus, sempre dedicadas a esse trabalho.
Dêem a cada um o que lhe é devido: Se imposto, imposto; se tributo, tributo; se temor, temor; se honra, honra." Romanos 13:1-7


Se o texto bíblico deve ser lido de forma atemporal, literal, como prescrição divina em cada letra, alguém que assume tal tipo de postura não deveria nunca assumir um tipo de discurso que vai contra a autoridade do país, afinal o próprio texto diz que toda autoridade vem de Deus e por isso se deve honrar os dirigentes.
Das duas uma: Ou se adota uma postura realmente literalista ou então assume o discurso que pede o #foraDilma. As duas coisas se tornam inconciliáveis. No entanto, como crianças que cada hora defendem uma determinada posição, vários evangélicos parecem ignorar a falta de consistência entre os dois discursos e continuam a defender ao mesmo tempo uma leitura literalista do texto e defender o impeachment da presidenta sem nenhum aparato constitucional, mesmo que uma coisa necessariamente exclua a outra. Este exemplo do texto de Romanos é apenas um dentre vários outros que poderiam ser colocados aqui sobre os mais diversos assuntos, tanto políticos, quanto teológicos. Para um exemplo do ponto de vista teológico aponto para um outro texto que escrevi há algum tempo. (Texto aqui)

Um último ponto extremamente curioso é o fato de que o texto de Romanos é utilizado de forma literal apenas quando visa defender a autoridade do pastor ou do líder de uma determinada denominação ou seita. Nesse momento o texto de Paulo é lido, relido e nada, absolutamente nada é capaz de tirar da cabeça do indivíduo de que a sua posição é corroborada por Deus e por isso se torna inquestionável. Basta lembrarmos de diversos vídeos de Silas Malafaia em que ele afirma para "não tocar no ungido do Senhor" usando exatamente o mesmo texto de Romanos 13. Paradoxalmente o Silas Malafaia é um dos primeiros a fazer fila diante de protestos contra a autoridade do país eleita democraticamente. 

Os diversos maus usos do texto bíblico deveria apontar para a questão de se realmente o texto bíblico visa ser um livro de dicas sobre o que fazer ou se é um livro que aponta para outra direção que não um manual em que se encontra respostas para tudo. Tentar encontrar justificativa bíblica para tudo é não compreender a real dimensão do texto bíblico, é não entender que o texto bíblico aponta para a relação do homem com Deus e de Deus com o homem. O texto bíblico não visa dizer tudo sobre tudo, não visa resolver questões políticas, morais, sociais, etc. Usar o texto bíblico para justificar ações que são totalmente condicionadas por conjunturas históricas, sociais, políticas é fazer um mau uso do texto bíblico e isso não deve ser incentivado.

Fica portanto o convite à reflexão e um convite à coerência, afinal, pode até estar faltando amor no mundo, mas que falta muita coerência, isso é inegável.