segunda-feira, 28 de julho de 2014
Pensamentos esparsos sobre a desinstitucionalização no meio evangélico
Uma das coisas que acho interessante ao pensar o movimento de desinstitucionalização no meio evangélico é o quanto que isso talvez reflete a nossa situação hipermoderna de perda dos referenciais, ou então para utilizar a expressão de Lyotard, a época da "perda dos metarelatos".
Obviamente que há uma distância grande entre a religião e a sua institucionalização. Enquanto a religião fala do sentido da vida, a busca pelo mistério, etc, a institucionalização acaba por cristalizar visões de mundo e não raras vezes sucumbe a fundamentalismos e dogmatismos que acabam por tirar da religião todo o seu brilho a tornando extremamente burocrática e sem vida.
Devemos ter em mente que o processo de institucionalização da religião, pelo menos no ocidente, vem desde o início do cristianismo e, portanto, é algo que faz parte da história da igreja cristã desde a sua formação.
Algo que nos aponta Louis Dumont em seu livro sobre o individualismo é que a própria noção de individualismo no ocidente se inicia com o início do cristianismo. O cristianismo seria a princípio uma religião onde a relação do sujeito com Deus se daria de forma individual enquanto "sujeito-fora-do-mundo-e-em-relação-com-Deus". Esse sujeito que se relaciona assim com Deus, depende apenas dele mesmo para se aproximar da divindade. Embora participante de uma comunidade, a sua relação com Deus se daria sempre de forma individual e poderia no máximo ser "partilhada" na comunidade. Esse tipo de relação do homem com Deus, para Dumont, acaba por marcar o caminho que tomará o cristianismo até a sua transformação em religião oficial pelo império romano. A partir daí o "sujeito-fora-do-mundo" é chamado a se tornar "sujeito-no-mundo", pois o cristianismo seria agora um fator político importante para o império e por isso os cristãos não poderiam mais se abster do mundo em prol do "além-mundo".
Essa mudança de foco para Dumont acaba por fazer com que o cristianismo crie força política e seja utilizado já desde a idade média como uma religião que tem como fim último o "mudar o mundo".
A institucionalização do cristianismo por meio da igreja católica acaba por ser um fator decisivo na associação entre religião e estado e a partir daí toda uma série de mudanças se segue sem muitos mistérios para os que conhecem um pouco de história.
Diante de uma época onde tudo se torna objeto de escolha por parte do sujeito, a questão religiosa cada vez se liga mais a uma dimensão emocional do que propriamente a uma adesão a um discurso sobre o mundo. O fiel hipermoderno acaba por visar mais uma "religião a la carte" do que propriamente se comprometer com os compromissos que determinada religião exige. Tal dinâmica é vista de forma muito clara nos diversos sincretismos muito comuns nas igrejas evangélicas neo-pentecostais. Práticas como "passar no vale do sal", "ungir a água que será tomada" revelam uma espécie de apropriação de diversas culturas religiosas em nome de uma possível "luta contra o mal".
A partir do momento que a religião se torna um objeto de escolha por parte do sujeito, o qual não está mais submetido à "religião dos pais", a própria vinculação desse sujeito com a instituição se verá abalada. A instituição acaba se tornando um lugar a ser abandonado, pois não diz mais respeito a um discurso maior, mas se fecha cada vez mais sobre si tornando-se um fim em si mesma.
O sujeito hipermoderno acaba se encontrando diante de um grande dilema. Se por um lado ele visa a sua liberdade praticamente irrestrita de escolher o que bem entender, escolher a sua forma de religião, aquela que mais lhe agrada, aceitar essa posição teológica e não aquela, por outro lado ele sente a necessidade de uma pertença a um determinado grupo que pensa igual a si mesmo e devido às inúmeras leituras e releituras teológicas possíveis o que se vê é uma tremenda incompatibilidade entre as diversas posições teológicas que por serem extremamente particulares encontram pouquíssimos pontos em comum para que sejam compartilhadas por um grupo maior.
Esse dilema atravessa o religioso hipermoderno de forma crucial. Por um lado o desejo da escolha, por outro a necessidade de pertença. Por um lado a liberdade de pensar a sua própria fé a partir de uma teologia própria, por outro a necessidade de inclusão dentro de um discurso que garanta uma espécie de sentido à sua prática de fé.
Os constantes discursos que vemos atualmente incitando a desinstitucionalização, propagando uma "fé mais autêntica", uma fé que deve ser vivida apenas na relação homem-Deus, a meu ver, acaba por evidenciar esse grande paradoxo hipermoderno. Por trás de frases do tipo "cansei de ser evangélico", o que se pode notar é uma espécie de discurso que visa afirmar uma fé própria, sem nenhum tipo de "pertença", sem necessidade de vinculação a nenhuma leitura consagrada do texto bíblico.
Na negação da tradição se vê a mesma dinâmica hipermoderna que sempre se quer livre sem precisar vincular-se a nada. No entanto, essa dinâmica também tem sua contramão. Da mesma forma que o discurso libertário contra toda forma de tradição é incitado diversas vezes, o movimento de uma "pertença irrestrita" também ganha força. Não raramente vemos nos carros frases do tipo "orgulho de ser católico", "Sou membro da igreja X" que evidenciam esse movimento contrário que a nosso ver se tornam duas faces da mesma moeda. Ao negar a tradição em nome da liberdade irrestrita o sujeito acaba procurando algum porto onde se ancorar e nesse momento os movimentos de cunho mais fundamentalistas acabam por ganhar força.
A noção de uma "religião a la carte" promove ao mesmo tempo o discurso de uma desinstitucionalização onde o sujeito se mostra "cool" em relação à sua fé, mas ao mesmo tempo faz surgir movimentos contrários de fundamentalismos que aparecem quase que como resposta diante da crescente falta de um discurso norteador.
A meu ver o processo de desinstitucionalização no meio evangélico se insere completamente dentro da dinâmica hipermoderna. Como ainda estamos vivendo tal movimento, que a cada dia se torna mais forte, ainda é muito cedo para dizer se tal desinstitucionalização será boa ou ruim para o movimento evangélico, no entanto penso que algo que se torna inegável é que as instituições evangélicas a cada dia que passam perdem a sua credibilidade ao se envolverem em escândalos, práticas desonestas, etc. Infelizmente a maioria das pessoas fazem uma relação direta entre a religião e a sua forma institucionalizada, o que torna o debate várias vezes impossível. Não penso que o caminho seja uma completa desinstitucionalização da igreja pois querendo ou não a instituição acaba por proporcionar um ambiente várias vezes acolhedor e um espaço de convivência benéfico aos membros, no entanto, ao continuar trilhando o caminho trilhado nesses últimos anos, talvez as instituições evangélicas estejam cavando a sua própria cova de forma que talvez diremos como Nietzsche que afirmava lá no século XIX que os templos eram apenas os túmulos de Deus.
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