quinta-feira, 9 de abril de 2020

2 Coríntios 5,21 - Um texto para a Páscoa






"Deus tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado, para que nele nos tornássemos justiça de Deus." (2 Cor 5,21)

Esse texto é extremamente interessante a meu ver e coloca aspectos muito bons da teologia paulina . A perícope que se inicia no versículo 11, se estendendo até o primeiro versículo do capítulo 6 é  um belíssimo texto que tem como ênfase a proposta do amor de Cristo que nos constrange, pois a princípio isso seria completamente "injusto". Um que morre por todos. 

No versículo específico que abre esse texto se evidencia um tema que é caro a Paulo que é a questão da especificidade e não-especificidade de Jesus. Especificidade na medida em que é em Jesus que os homens são reconciliados com Deus, não especificidade na medida em que se aplica a todos os homens. Algo interessante a se ressaltar é que não há nesse momento do cristianismo a noção de "pecado original" (conceito esse formulado só posteriormente por Agostinho). Jesus como "aquele que não conheceu o pecado" neste momento não tem em mente a noção do pecado original, como alguém que "nasceu puro" diferente dos outros homens e por isso teria feito tudo o que fez, pelo contrário, a ideia de que Jesus não conheceu o pecado tem a ver com o fato de que Jesus sempre teria feito o que é correto ao ponto de poder ele mesmo servido como redenção dos filhos de Deus.

Para além de uma "ontologia cristológica", o que o autor tem em mente aqui é muito mais atentar para o caráter do modo de vida de Jesus, que como alguém próximo a Deus foi capaz de viver sem pecado, de forma que o próprio Deus o exaltou, o ressuscitando dentre os mortos. Aqui talvez ainda esteja em jogo uma cristologia bastante "humana", por assim dizer. Jesus é um rabi de Israel que viveu de acordo com a vontade divina e por isso Deus o ressuscitou como testemunho da salvação vindoura. Na medida em que Jesus é aquele que assume a morte de cruz mesmo sem ter cometido nenhum pecado, ele o faz pecado por nós; ou seja, Jesus como aquele que aparece como mediador entre os homens pecadores e o próprio Deus. 

O que está em jogo nesse momento é afirmar que a ressurreição de Jesus coloca a sua morte sobre outra perspectiva. Na teologia paulina é a ressurreição a chave de leitura para a vida de Jesus e não o contrário. Por isso que a Páscoa é o cerne do cristianismo. É porque Jesus ressuscitou que é preciso que entendamos em que medida a sua vida fez a diferença para aqueles que o rodeiam. Por isso que Paulo pode dizer que "se Cristo não ressuscitou é vã a nossa fé." (I Cor 15,14). Para Paulo é a ressurreição que coloca um novo olhar sobre Jesus, o Rabi que andou pela Palestina no século I. É porque ele ressuscitou que uma nova pregação é possível, um novo olhar sobre o Antigo Testamento é possível. E é exatamente esse o movimento paulino que funda o cristianismo. O fenômeno da ressurreição nesse momento é crucial para que o cristianismo surja, e o próprio judaísmo surja enquanto proposta diferente do cristianismo. 

Durante muito tempo a ideia de que "Jesus se fez pecado por nós" foi entendida como Jesus como aquele que "expia" o pecado. Aquele que "oferece-se como sacrifício" dentro de uma lógica retributiva. Essa leitura é clássica em Santo Anselmo e a sua teoria da satisfação no qual um pecado da magnitude do pecado de Adão necessitaria de um sacrifício de igual magnitude, ou seja, um cordeiro santo que não pecou seria aquele que seria capaz de satisfazer o próprio Deus e para isso a justiça seria feita. No entanto, não parece ser esse o intento do autor da carta de 2 Coríntios, uma vez que a doutrina da Graça paulina vai exatamente contra uma doutrina retributiva do AT. Dentro da doutrina da Graça em que medida Jesus se torna "justiça de Deus"? 

A resposta para essa questão é dada no início da perícope em que Paulo afirma que o amor de Cristo nos constrange (2Cor 5,14), ou seja, a justiça não tem a ver com uma punição que Jesus estaria encarnando, mas um ato de amor, no qual ninguém além de Deus é o responsável. Por isso que para Paulo na morte de Jesus, Deus está reconciliando consigo mesmo os homens não levando em conta os pecados dos homens. Esse ponto é crucial. A morte de Jesus e a sua ressurreição não está envolta em uma dinâmica sacrificial em que algo é imolado para que o preço seja pago, mas está fundada simplesmente no amor de Deus que em Cristo nos reconciliou. A lógica sacrificial não opera aqui. Jesus não é alguém que está pagando um preço por nós, mas está agindo com o maior amor possível que reflete o próprio Deus, e que por isso nos constrange, por isso faz tudo novo. Por isso que para Paulo não podemos olhar mais para Jesus "segundo a carne" (v 15), mas Nele todas as coisas são "nova criação" (v.17). Deus tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado (v.21) para que nós fôssemos justiça de Deus em amor. E tal justiça é executada por nós enquanto cooperadores de Deus. Cooperar com Deus, atuar junto para que todos os homens sejam capazes de perceber o amor de Cristo que nos constrange. 

O que Paulo entende aqui é que em Jesus todas as coisas se fazem novas não por um ato retributivo, mas pelo próprio amor que reconfigura todas as coisas. A justiça de Deus não é punitivista, mas sim amorosa. O próprio evento Cristo atesta isso. Se olharmos "segundo a carne" pensaremos segundo a lógica retributiva do AT, mas se olharmos pelo olhar da reconciliação que Deus está promovendo todas as coisas se fazem novas e podemos exercer a justiça de Deus reconciliando juntamente com ele todos os homens. Isso para Paulo é crucial, uma vez que sabemos que para Paulo a vinda de Jesus era iminente. Tanto que o apelo de Paulo  na perícope faz um apelo "reconciliem-se com Deus". (v. 20), e logo em seguida outro apelo "insistimos com vocês para não receberem em vão a graça de Deus" (2Cor 6,1). Dessa forma é chegado o tempo favorável da salvação. (alusão aqui ao texto de Isaías 49,8)




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