segunda-feira, 10 de março de 2014

"Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve" (Mt 11:30) Um convite à leveza.




Essa é uma pequena reflexão feita a partir de Mateus 12:1-13 que está logo na seqüência do versículo supracitado no início desse texto. 
O trecho de Mateus 12 mencionado acima mostra Jesus tratando a questão da lei a partir de dois exemplos. 

O primeiro exemplo se dá a partir de uma crítica dos fariseus de que os discípulos de Jesus estavam colhendo espigas no sábado contrariando o quarto mandamento, o qual Jesus rebate afirmando que Davi comeu os pães da propiciação no sábado, coisa que lhe não era lícito fazer, e depois afirma que até mesmo os sacerdotes violam o dia de sábado no próprio templo e nem por isso são culpabilizados pelo feito.

O segundo exemplo se dá com a cura do homem da mão ressequida que também se dá no sábado apontando para o valor da pessoa humana que sempre deve sobrepor à lei.

Jesus, ao apontar a dimensão humana da lei, (aparentemente desconhecida pelos fariseus) propõe uma nova abordagem do mandamento não mais atrelado à sua forma, mas ao seu significado. A lei, quando tomada apenas como obstáculo para a realização humana, tem como grande destino ser transgredida. Se a entendemos como possibilidade de humanização do sujeito, como diferenciação deste do reino animal, a lei não se coloca como limitadora da liberdade, mas como condição para a vida humana e condição para a própria liberdade.

Jesus, ao propor um repensar a lei a partir dos dois exemplos citados, quer mostrar que a lei não deve ser vista como algo que tem como fim cercear o homem da sua liberdade, ou inseri-lo em uma dimensão neurótica de estar sempre em débito com algum mandamento, mas visa inserir o homem no mundo da cultura que para além de toda limitação da liberdade, visaria exatamente o seu contrário, que é a humanização do sujeito. 

A reinterpretação da lei, como proposta pelo Cristo, visa colocar o homem, e não o mandamento, em primeiro lugar. Daí podermos entender quando Jesus nos afirma que "não foi feito o homem por causa do sábado, mas o sábado por causa do homem", (Mc 2:27) ou seja, a primazia é a humanização do sujeito pela lei e não a subjugação do sujeito pela lei. A lei tomada como cerceadora da liberdade traz um jugo enorme, pois como já nos adverte o próprio Tiago, "quem peca em um aspecto da lei é condenado por ela toda" (Tg 2:10), ou seja, ao se pautar pela tentativa de "cumprir toda a lei" o homem se insere em uma dimensão neurótica onde o débito em relação à lei sempre se sobressai ao seu cumprimento, de forma que não raras vezes a culpa é companhia presente para este indivíduo. 

A lei, como instância humanizadora do sujeito, pressupõe que o limite seja estabelecido por ela. Esse limite me é imposto por um Outro que me castra do meu desejo de onipotência e me faz ver que o acesso ao gozo sempre precisa passar pela lei, que em última instância, é a lei da linguagem. É a lei da palavra.

No princípio do sujeito sempre há um verbo, pois sem a palavra nunca há sujeito, afinal,  a partir da interdição da lei da palavra surge no homem o desejo. Lei e desejo humanizam o homem, e é esta a dimensão da lei que Jesus propõe aos fariseus. A ênfase não está na forma da lei, mas em seu significado humanizador. Não está em seu cumprimento cego, mas está em compreender que o homem é sempre mais importante que a lei. 

Talvez por isso seja possível a Jesus resumir toda a lei e os profetas no "Amarás a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a ti mesmo". Amar a Deus sobre todas as coisas pressupõe que a relação com Deus não pode se dar no mesmo nível que a minha relação com as coisas do mundo. Deus não pode ser apenas mais um objeto com o qual tento preencher o vazio estrutural provocado pela palavra que me humanizou. Deus precisa estar para além de um mero objeto. 

Amar o próximo como a mim mesmo pressupõe ao mesmo tempo o reconhecimento do meu valor enquanto pessoa, uma dose de narcisismo (que é necessário para todo amor possível), mas pressupõe também o valor do outro na dinâmica da humanização do sujeito (que não pode se constituir sem esse Outro).  Sem o Outro não há sujeito para se relacionar com a lei, sem o narcisismo não há a possibilidade do amor ao próximo, e sem ambos não há como haver um sujeito que se relaciona com Deus. 

A proposta de Jesus passa por um amar a si mesmo para que me seja possível amar o próximo e depois disso fazer o salto em direção a Deus como aquele que deve ser amado para além das coisas. Eu, o Outro e Deus. 

Para haver lei é preciso haver um Outro que me coloca essa lei, a partir disso, eu sou capaz de me constituir como sujeito e me tornar essa estrutura desejante, que por causa deste grande "furo" na minha estrutura tentará preencher este vazio de todas as formas. Se Deus aparece apenas como esta tentativa de tampar este buraco, ele se transforma em uma grande ilusão, no entanto, a proposta do Cristo é para que esse Deus esteja acima de todas as coisas, pois apenas estando acima de todas as coisas ele poderá ser visto não no seu caráter ilusório, mas talvez como uma grande aposta na busca de um sentido para a existência. 

Esse Deus, visto desta forma, necessita que o Eu e o Outro já tenham se encontrado para que só depois disso, ele possa aparecer no cenário. A lei vista em seu caráter humanizador coloca o ser humano em primeiro plano e assim torna o jugo suave e o fardo leve, pois em sua base não está mais uma forma rígida, mas o amor que me une ao próximo e conseqüentemente me leva a Deus. 

Vejo a proposta de Jesus como um convite à leveza. Para além da rigidez cega da lei, uma proposta humanizadora. Um fardo suave, um jugo leve. 






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