Uma das grandes tentações sempre dirigidas a nós durante a nossa existência é a tentação de
Procusto. Aquela famosa ideia já conhecida por todos nós de querer que o outro aja da mesma forma que agiríamos em determinada situação. A tentação de querer transformar o outro naquilo que achamos que seria o melhor para ele, pelo simples fato de que uma determinada coisa ser o melhor para mim. A tentativa da homogeneização acaba por fazer parte da nossa vida de uma forma extremamente frequente.
Quem nunca se pegou tentando colocar alguém em sua cama de pedra? Não entendendo que o outro em sua singularidade às vezes agirá de forma que não queremos, às vezes fará o que não faríamos, etc? Quem não tiver esse pecado que atire a primeira pedra.
É como se de alguma forma, talvez inconscientemente, nos sentíssemos como uma espécie de "padrão" a ser seguido por todos os nossos próximos e quando eles não fazem o que gostaríamos nos sentimos como que traídos, ou injustiçados de alguma forma e por isso nos sentimos no direito de questionar, reclamar com esse outro o do porque não agir igual eu agiria.
A tentação de Jesus no deserto descrito em Lc 4 nos lembra um pouco essa mesma dinâmica. Jesus ao ser tentado pelo diabo no deserto recebe algumas ofertas tais como a saciedade (Lc 4,3), o poder (Lc 4,6), e a segurança (Lc 4,9), mas curiosamente os conceitos de "saciedade", "poder" e "segurança" oferecidos pelo diabo tinha muito mais a ver com uma tentativa de homogeneização por parte do diabo do que propriamente com o fato de oferecer algo a Jesus. Ao tratar dessas questões, o diabo na história tem alguns conceitos sobre o que oferece que destoa bastantemente da forma como Jesus lida com tais conceitos.
A saciedade imediata oferecida se mostra um erro diante do propósito maior de Jesus no momento, da mesma forma a noção de poder (que ao vinculá-lo a um poder meramente territorial perde a noção da transitoriedade do poder, ao mesmo tempo que tenta vincular o propósito de Jesus a de um messias político tentando desvincular Jesus do processo do Reino) e a noção de segurança (que ao se oferecer como um mero aporte diante de uma situação específica perde a dimensão de uma segurança muito mais estrutural do que apenas livramentos em casos de acidentes), ou seja, a tentativa do diabo na narrativa se dá como forma de banalizar os conceitos envolvidos na expectativa que Jesus compreenda as coisas como o próprio diabo compreenderia.
- "Se fosse eu que estivesse em um jejum de 40 dias, eu transformaria essa pedra em pão" - diria o diabo - e é mais ou menos o mesmo tipo de discurso que geralmente se faz quem quer fazer o outro deitar em sua cama de pedra. Nesse momento nos tornamos uma espécie de padrão a ser seguido, mas sem repararmos que ao nos colocarmos como padrão de algo estamos tentando com isso anular a diferença do outro. Jesus muito sabiamente percebe essa dinâmica e se esquiva propondo uma outra interpretação das ofertas do diabo e com isso acaba com a discussão sem muitas delongas.
Na tentativa de eliminação da diferença do outro há um desejo narcísico de me tornar como um grande padrão de conduta em todas as coisas, e isso soa muito pretensioso da nossa parte sempre. Não que não possamos esperar do outro algumas atitudes, mas é preciso ter em mente que nada nos garante que o outro tomará tal atitude esperada. Nesse grande jogo entre eu e o outro é preciso que haja grande paciência se quisermos que haja relação e isso talvez seja o mais difícil pra qualquer pessoa.
A tentação de Jesus ilustrada em Lc 4 nos aponta diversas coisas e dentre elas podemos encontrar essa espécie de respeito às opiniões diferentes, que longe de nos levar a sucumbir à ideia do outro, nos permite afirmarmos como nós mesmos sem que com isso haja a exigência de nos colocarmos como padrões de alguma coisa. Ao rejeitar as propostas oferecidas pelo Diabo, Jesus está se afirmando como alguém cônscio da sua função no mundo e por isso é capaz de resistir aos 3 saborosos pratos de lentilhas por mais saborosos que eles possam parecer.