segunda-feira, 25 de março de 2019

Paradoxos contemporâneos



O copo com autofluxo de Robert Boyle preenche a si próprio neste diagrama





Qualquer um minimamente inteirado do modo de funcionamento do capitalismo tardio sabe que enquanto a democracia favorecia os interesses do capital ela precisava ser mantida, pois o próprio capitalismo acabava por perceber que a suposta responsabilidade do sujeito pela vida política o torna também consumidor de uma forma de vida um pouco mais complexa. Por complexidade aqui queremos dizer tanto do ponto de vista teórico, quanto do ponto de vista prático.

No entanto, assim que a democracia deixou de ser hegemônica (ou seja, dominada por uma elite extremamente seleta) dada as diversas vozes encontrando eco na democracia, por exemplo, o alcance do negros no mercado de trabalho, a questão feminina se colocando contra o domínio do patriarcado, uma classe mais pobre começando a conhecer e reivindicar seus direitos, a democracia precisou ser reconfigurada para que os interesses do capital continuassem sendo alcançados. Essa chave de leitura nos permite entender em grande medida o colapso democrático no mundo do século 21.

A tônica da reconfiguração da democracia se vê exatamente no momento em que a possibilidade de representatividade aumenta como fruto dos embates pós 1970. Para que o capitalismo se mantenha não é mais necessário que os sem voz permaneçam sem voz, mas é preciso que a sua própria voz seja transformada em produto pelo próprio modo de produção capitalista. Enquanto não se tem voz, não é possível consumir de maneira adequada, pois falta dignidade a esse comprador no mercado global, de forma que é necessário que essa voz seja ouvida, pois cada pessoa é sempre um consumidor em potencial. Se os sem voz continuam sem voz, se a democracia caminha na direção oposta, ela precisa ser reconfigurada, ou seja, ser realinhada aos interesses do capital. 

Aqui há um curioso paradoxo envolvido. As democracias sempre foram exaltadas como um modo de governo em que as minorias podiam se expressar de maneira um pouco mais enfática e ter um mínimo de representatividade nas esferas do poder. No entanto, o processo democrático moderno sempre esteve sob a tutela do modo de produção capitalista (assim como qualquer regime de governo no capitalismo) que já se mostrou funcionar sob a dinâmica do acúmulo de riqueza por uma parte cada vez menor da população. (Atualmente cerca de 2% da população domina cerca de 98% das riquezas produzidas) Dessa forma quanto mais representatividade se adquire, mais o capitalismo tardio transforma tal luta pela representatividade em objeto a ser consumido. Em última instância podemos dizer que o fortalecimento das democracias funcionam como suporte para o capitalismo enquanto os agentes envolvidos na democracia permaneçam consumidores. Claro que aqui não estamos dizendo que as lutas por representatividade não sejam importantes, muito pelo contrário. Temos a plena consciência que tais lutas são de um ganho enorme para diversas parcelas da sociedade; o que ressaltamos aqui é que no modo de produção do capitalismo tardio até mesmo as reivindicações são transformadas em produto.

É aqui que percebemos em que medida as diversas lutas das minorias se tornam abocanhadas pelo capitalismo de maneira nada velada. As pautas feministas, negras, homoafetivas se tornam produtos a serem consumidos exatamente por essas minorias e também pelos próprios apoiadores das causas em questão, de forma que a crítica se torna um meio para ascender aos valores ditados pelo próprio capitalismo que faz com que a própria luta pela representatividade reforce os ideais advindos do capitalismo. Quando alguma minoria tem como maior interesse se adequar aos valores do capitalismo percebemos que a ideologia capitalista já está sedimentada de forma quase que acabada.

Tais valores penetram na vida do sujeito de maneira tão sutil que simplesmente o sujeito se sente empoderado pela noção de poder dada pelo próprio sistema econômico que o colocou como minoria. Isso é um paradoxo que faz com que as lutas, por mais importantes que sejam, se tornem inócuas do ponto de vista sistêmico. É preciso sim a luta das minorias, no entanto penso que elas não devam ser um fim em si mesmo, mas ser um degrau para que os valores do capitalismo sejam substituídos por outros valores em que o humano seja o mais importante e não o capital.

Dessa forma conseguimos traçar uma dinâmica extremamente sutil do capitalismo tardio. As lutas pelas representatividades típicas do nosso tempo, por mais importantes que sejam são transformadas como fim em sim mesmo e dessa forma perpetuam o sistema que permitem que elas ocorram, uma vez que as lutas são pautadas pelos valores dados pelo próprio sistema que visa combater. Para além das lutas pelas representatividades diversas, penso ser necessário que tais pautas não sejam um fim em si mesmas, mas levem o sujeito a ascender aos lugares de poder ditados pelo capitalismo como forma de minar por dentro o próprio sistema. A luta das minorias é uma luta hercúlea que facilmente acaba sendo desviada em nome dos valores do sistema econômico. É preciso, no entanto, não perder o foco da luta para que ao invés de meras performances inócuas tenhamos de fato uma mudança no status quo.