O copo com autofluxo de Robert Boyle preenche a si próprio neste diagrama
Qualquer
um minimamente inteirado do modo de funcionamento do capitalismo
tardio sabe que enquanto a democracia favorecia os interesses do
capital ela precisava ser mantida, pois o próprio capitalismo
acabava por perceber que a suposta responsabilidade do sujeito pela
vida política o torna também consumidor de uma forma de vida um
pouco mais complexa. Por complexidade aqui queremos dizer tanto do
ponto de vista teórico, quanto do ponto de vista prático.
No
entanto, assim que a democracia deixou de ser hegemônica (ou seja,
dominada por uma elite extremamente seleta) dada as diversas vozes
encontrando eco na democracia, por exemplo, o alcance do negros no
mercado de trabalho, a questão feminina se colocando contra o
domínio do patriarcado, uma classe mais pobre começando a conhecer
e reivindicar seus direitos, a democracia precisou ser reconfigurada para que os interesses do capital continuassem sendo alcançados.
Essa chave de leitura nos permite entender em grande medida o colapso
democrático no mundo do século 21.
A
tônica da reconfiguração da democracia se vê exatamente no momento em que
a possibilidade de representatividade aumenta como fruto dos embates
pós 1970. Para que o capitalismo se mantenha não é mais necessário
que os sem voz permaneçam sem voz, mas é preciso que a sua própria
voz seja transformada em produto pelo próprio modo de produção
capitalista. Enquanto não se tem voz, não é possível consumir de
maneira adequada, pois falta dignidade a esse comprador no mercado
global, de forma que é necessário que essa voz seja ouvida, pois
cada pessoa é sempre um consumidor em potencial. Se os sem voz
continuam sem voz, se a democracia caminha na direção oposta, ela
precisa ser reconfigurada, ou seja, ser realinhada aos interesses do capital.
Aqui
há um curioso paradoxo envolvido. As democracias sempre foram
exaltadas como um modo de governo em que as minorias podiam se
expressar de maneira um pouco mais enfática e ter um mínimo de
representatividade nas esferas do poder. No entanto, o processo
democrático moderno sempre esteve sob a tutela do modo de produção
capitalista (assim como qualquer regime de governo no capitalismo)
que já se mostrou funcionar sob a dinâmica do acúmulo de riqueza
por uma parte cada vez menor da população. (Atualmente cerca de 2%
da população domina cerca de 98% das riquezas produzidas) Dessa
forma quanto mais representatividade se adquire, mais o capitalismo
tardio transforma tal luta pela representatividade em objeto a ser
consumido. Em última instância podemos dizer que o fortalecimento das democracias funcionam como suporte para o capitalismo enquanto os agentes envolvidos na democracia permaneçam consumidores. Claro
que aqui não estamos dizendo que as lutas por representatividade não
sejam importantes, muito pelo contrário. Temos a plena consciência
que tais lutas são de um ganho enorme para diversas parcelas da
sociedade; o que ressaltamos aqui é que no modo de produção do
capitalismo tardio até mesmo as reivindicações são transformadas
em produto.
É
aqui que percebemos em que medida as diversas lutas das minorias se
tornam abocanhadas pelo capitalismo de maneira nada velada. As pautas
feministas, negras, homoafetivas se tornam produtos a serem
consumidos exatamente por essas minorias e também pelos próprios
apoiadores das causas em questão, de forma que a crítica se torna um
meio para ascender aos valores ditados pelo próprio capitalismo que faz com que a própria luta pela representatividade reforce os ideais advindos do capitalismo. Quando alguma minoria tem como maior
interesse se adequar aos valores do capitalismo percebemos que a
ideologia capitalista já está sedimentada de forma quase que
acabada.
Tais
valores penetram na vida do sujeito de maneira tão sutil que
simplesmente o sujeito se sente empoderado pela noção de poder dada
pelo próprio sistema econômico que o colocou como minoria. Isso é
um paradoxo que faz com que as lutas, por mais importantes que sejam,
se tornem inócuas do ponto de vista sistêmico. É preciso sim a
luta das minorias, no entanto penso que elas não devam ser um fim em
si mesmo, mas ser um degrau para que os valores do capitalismo sejam
substituídos por outros valores em que o humano seja o mais
importante e não o capital.
Dessa
forma conseguimos traçar uma dinâmica extremamente sutil do
capitalismo tardio. As lutas pelas representatividades típicas do
nosso tempo, por mais importantes que sejam são transformadas como
fim em sim mesmo e dessa forma perpetuam o sistema que permitem que
elas ocorram, uma vez que as lutas são pautadas pelos valores dados
pelo próprio sistema que visa combater. Para além das lutas pelas
representatividades diversas, penso ser necessário que tais pautas
não sejam um fim em si mesmas, mas levem o sujeito a ascender aos
lugares de poder ditados pelo capitalismo como forma de minar por
dentro o próprio sistema. A luta das minorias é uma luta hercúlea
que facilmente acaba sendo desviada em nome dos valores do sistema
econômico. É preciso, no entanto, não perder o foco da luta para que ao invés de meras performances inócuas tenhamos de fato uma mudança no status quo.