terça-feira, 30 de agosto de 2016

Enquanto assistia ao Discovery Home & Health





A guerra aparentemente é algo que sempre acompanhou a história humana, de forma que podemos dizer sem sombra de dúvida que ela faz parte da própria humanidade. A não ser que mantenhamos uma espécie de ilusão em uma época em que todos viviam em paz e segurança, temos que aceitar que a guerra sempre se fez presente. 

Como toda disputa, a guerra, sendo a pior de todas, deixa extremamente marcada a posição do vencedor e do vencido. Ao primeiro é dado toda a glória, o direito aos despojos, os bens, etc. Ao segundo grupo é dado a vergonha, a humilhação, a morte, a tortura, etc. 
Inúmeras guerras poderiam ser lembradas por nós, mas  acredito que nenhum de nós gostaríamos de ter vivenciado alguma guerra in loco; isso porque por excelência a guerra é algo que gera dor, desgraça e grande destruição. 

Outro dia comentei com a Pri que acho extremamente curioso o fato de hoje haver inúmeros programas televisivos que fazem alusão ao caráter bélico. No Discovery Home & Health são vários programas culinários que trazem esse tom.

"Batalha dos cozinheiros"
"Guerra dos cupcakes"
"Guerra dos Donuts"
"Esquadrão da moda"
"Missão em família"

Apenas para citar alguns. 

Fiquei pensando em como talvez essa dinâmica bélica não seria uma forma "soft" de lidar com a constante ameaça de guerra que assola o mundo como um todo, e os Estados Unidos de maneira particular. (Cito os Estados Unidos porque todos esses programas citados acima são produzidos lá.)
Não podemos pensar que o tom bélico em programas culinários não seria uma tentativa de trazer a tona de forma "humorada" um medo que assola o inconsciente ? 
E se for assim, a presença massiva da dinâmica da guerra  em programas que deveriam ser relaxantes não evidenciaria que há algo de incômodo em toda essa dinâmica que não cessa de ser dito e re-dito, mas apenas pela via do simulacro?
Como se de alguma forma estar constantemente vivenciando a experiência de estar em guerra fosse capaz de mitigar o medo latente de que de fato uma grande guerra ocorra.
O caráter administrado do programa de TV possibilita que, por mais tensa que seja, a simulação não fuja do controle, garantindo assim uma sensação de segurança e provisoriedade que mantém a ideia do programa viva. 

A cada novo episódio se estabelece uma nova "missão" que logo terá fim e permitirá que se conheça rapidamente vencedor e derrotado. Mas tanto o vencedor quanto o derrotado não sofrem de fato as consequências da guerra; ela é apenas um simulacro, e por isso pode servir como forma de canalizar o medo latente de que o real da guerra irrompa na realidade.

Se a nossa ideia estiver correta, podemos pensar que o jogo possui uma grande vantagem como forma de nos fazer lidar com aquilo que nos incomoda. Ao transformar em jogo uma determinada dinâmica, ou uma determinada situação, fazemos com que aquilo adquira um sentido provisório que revela a minha limitação em tratar do tema, mas ao mesmo tempo evidencia um caráter defensivo diante do estranho diante de mim. 

As constantes batalhas, missões, guerras funcionam como uma tentativa frustrada de esconder nosso incômodo revelando-o sob a forma de jogo. O jogo, como bem nos lembra Huzinga no seu conhecido livro "homo ludens", é uma forma criativa do homem lidar com a natureza, lidar com a própria vida. O jogo faz parte do ato criador de novas realidades, ele mostra que por algum motivo há de se negar o medo e tentar transformá-lo em outra coisa. 
Essa via "positiva" do jogo, a meu ver, esconde talvez algo de recalcado no sujeito contemporâneo. O medo constante da guerra de todos contra todos, o medo de que a guerra saia do caráter lúdico e invada a realidade. Mas ao mesmo tempo o constante reviver por meio do simulacro da situação que nos causa horror não evidencia algo que Freud já nos anos 20 do século passado nos apontou e chamou de pulsão de morte?

Não estaria a pulsão de morte por trás da satisfação encontrada no simulacro da guerra transformada em jogo? 

Essas foram algumas inquietações que tive assistindo ao Discovery Home & Health outro dia a noite aqui em casa. 

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

O que há entre Atenas e Jerusalém?




Quid ergo Athenis et Hierosolymis? Quid academiae et ecclesiae? Quid haereticis et chrsitianis? 
“O que há de comum entre Atenas e Jerusalém? Entre a academia e a Igreja? Entre os heréticos e os cristãos?” (TERTULIANO. Traité de la prescription contre les hérétiques. Livro VII,9. 1957. p.98 em tradução livre)

Um dos aspectos principais da filosofia medieval é o debate entre a fé e razão. Desde os padres apologistas do primeiro século da era cristã até meados do século 15 essa será a tônica de diversos textos escrito por padres, filósofos, teólogos. A frase que abre esse texto é de um desses padres apologistas chamado Tertuliano (160-220 d.C).  Assim se exprime Tertuliano diante das diversas heresias que enfrenta no século II da era cristã. Tertuliano optará por acentuar mais as diferenças entre a fé cristã e a filosofia grega do que acentuar o que elas teriam em comum. Algo interessante a se ressaltar é que o debate entre Atenas e Grécia será algo que dará corpo à teologia cristã em seu desenvolvimento no ocidente. Embora diversos dos padres apologistas dos primeiros séculos do cristianismo tivessem feito um esforço hercúleo para conciliar os pressupostos da fé cristã com as matrizes gregas, sempre houve algo nesse debate que provocava uma espécie de cisão. É como se de alguma forma Jerusalém nunca pudesse ser completamente incorporada por Atenas. Sempre haveria algo que escapava a essa tentativa de assimilação completa.

Apenas esse tema já daria um trabalho enorme para ser elucidado, ainda mais por ser um tema extremamente debatido em toda a filosofia medieval. Mas algo que gostaria de apontar é que podemos dizer que a ruptura estrutural entre o mundo grego e o mundo cristão se dá a partir da noção de criação.
No mundo grego essa noção é completamente estranha, ou seja, por mais geniais que tivessem sido Platão ou Aristóteles e diversos pré-socráticos antes deles, a concepção de que o mundo tivesse um começo causado por um agente externo que não tinha nada diante de si soava extremamente estranha. O universo para os gregos (em linhas bem gerais sem nos ater às inúmeras diferenças entre os diversos filósofos) era eterno, ou seja, sem princípio nem fim, mas onde, de alguma forma, o movimento estaria presente fazendo com que uma coisa se tornasse outra coisa.

Desde Platão com o Demiurgo que contempla as formas puras e molda a matéria, até os primeiros motores de Aristóteles (ele chega ao número de 55 na sua "Física") como causa primeira e ato puro, a causa do que há estaria ela mesma presente no universo que é gerado, ou seja, o movimento que faz com que uma coisa se transforme em outra está presente na própria estrutura das causas primeiras.
Mesmo o Demiurgo platônico (que talvez mais se aproximaria de uma visão cristã sobre Deus no mundo grego) serviria de explicação para o "como" o mundo veio a existir, mas não explicaria o porquê de tal mundo existir, ou seja, ele não é quem "cria" o mundo, mas apenas aquele que molda a matéria pré-existente a partir das ideias contempladas por ele. Nem o deus platônico, e nem o deus aristotélico criam as coisas, mas agem a partir de coisas pré-existentes.

O cristianismo rompe estruturalmente com o mundo grego ao afirmar que apenas o Deus é o ser, ou seja, apenas nele seria possível conciliar a essência e a existência de forma plena. Essa dedução não teria sido ensinada pelos gregos, mas por Moisés lá no livro do Êxodo. (Ex 3,14) "E disse Deus a Moisés: Eu sou o que sou. Assim dirás ao povo de Israel: EU SOU me enviou a vós". Nesse texto, Deus, ao se nomear como aquele que é, se identifica ao ser e dessa forma se coloca como pleno, ou seja, como alguém que não depende da ninguém além de si mesmo. A metafísica do Êxodo será lido e comentado por diversos padres apologistas no decorrer da história do cristianismo. Se o Ser é o nome próprio de Deus, para o cristianismo, as outras coisas só serão porque seriam criadas por Deus que lhes doa a existência; e o faz por meio de sua vontade. Vincular todo o mundo à noção de criação faz com que a relação entre o homem e o mundo mude drasticamente. Ele não é mais fruto de uma razão imanente, ou fruto de um movimento de uma matéria pre-existente, nem fruto do acaso (como afirmava o epicurismo e sua noção de clinamém), mas fruto de uma vontade criadora que lhe dá a existência.

Jerusalém rompe com Atenas, mas continua lhe sendo extremamente devedora em diversas formulações posteriores, ou seja, a ruptura se dá de maneira estrutural, mas isso em hora nenhuma faz parar o diálogo incessante e interminável entre as duas visões de mundo. Diálogo esse que este brevíssimo texto faz menção.











terça-feira, 9 de agosto de 2016

Da estabilidade à mobilidade (um argumento do senso comum)






Uma característica bastante visível dos nossos tempos hipermodernos é em que medida a noção de "viajar" se tornou uma espécie de objetivo de vida. Se há algum tempo atrás o ideal de uma vida "plena" se ligava à noção de estabilidade em que o ideal de grande parte das pessoas era o de fixar-se em algum lugar, quer seja no emprego, adquirir uma casa, um carro, etc. hoje em dia tal ideal se tornou para muitas pessoas aquilo que mais deve ser evitado diante das inúmeras possibilidades que se abrem no mundo globalizado. 

Nesse contexto nada exemplifica melhor esse novo ideal do que a noção de que o maior objetivo da vida do indivíduo deva ser o de conhecer o maior número de lugares diferentes durante a sua vida. 
O viajar se transforma em um ideal a ser alcançado, o objetivo último do ano de trabalho, o motivo pelo qual vale todo sacrifício. Explorar novos lugares, conhecer novas culturas, se encarar como pertencente a um mundo sem fronteiras em que cada ano se está em um lugar diferente se tornou um movimento muito comum entre o sujeito hipermoderno. 

A noção de "estabilidade" (que em várias medidas é também ilusória) dá lugar à noção de mobilidade, dá lugar à noção de "não-pertença" no qual o que importa é o constante "novo lugar" habitado provisoriamente pelo sujeito. Nenhum tipo de amarra, nenhum tipo de pertença, nenhum tipo de ancoragem; tudo deve fluir para que a vida seja vivida na sua totalidade. Esse sujeito desenganchado remete muito à já famosa ideia do homem líquido de Bauman.

Obviamente que em um mundo regido pela dinâmica do capital a própria noção de "viajar" é facilmente transformada em status, de forma que ostentar os lugares visitados se torna para muitas pessoas o objetivo principal que excede até mesmo a própria viagem. A noção de "acumulação" se torna a tônica. O que passa a importar é o número de lugares visitados, o número de países diferentes, o número de cidades diferentes, etc. De certa forma é como se o capital se diluísse e o antigo "acúmulo de capital" fosse substituído pelo "acúmulo de experiências novas em lugares diferentes". Quanto mais experiências novas em lugares diferentes, mais "rico" seria esse sujeito.

Se há algum tempo atrás o objeto ostentado se vinculava à noção de estabilidade, ou seja, a nova casa, o novo carro, o sítio adquirido para onde poderá ir quando se aposentar; hoje faz muito pouco sentido qualquer uma dessas coisas. 
Quantos de nós já não ouvimos alguém comentando que se pudesse largaria tudo e viveria viajando? Que o maior objetivo da vida dela era o de poder estar a cada mês em um país diferente? Esse tipo de ideal para a existência é algo que permeia cada vez mais a nossa cultura pautada pela mobilidade excessiva. 
O viajar dessa forma marca a mentalidade do homem hipermoderno que vê na suposta estabilidade um grande inimigo a ser combatido. É como se ele aceitasse apenas "estabilidades mínimas", tipo uma "renda fixa", ou "um relacionamento fixo" para que pudesse viver (ilusoriamente) como "alguém sem amarras". 
Tal movimento extremamente ilusório me faz lembrar um texto de Sêneca em que o filósofo comenta, dentre outras coisas, algo sobre as constantes viagens.

"Daí empreender peregrinações vagas e percorrer litorais e, ora no mar, ora na terra, experimentar a mobilidade sempre inimiga das circunstâncias presentes: "Vejam-se regiões selvagens, exploremos os Brutios e as florestas da Lucânia". Entre esses desertos, busca-se, todavia, algo ameno, em que os olhos lascivos aliviem-se da longa aspereza dos lugares horrendos: "Que se dirija a Tarento e se lhe louve o porto, o clima hibernal de céu mais doce e a região ainda bastante opulenta para sua antiga turba... Logo então retornamos a Roma: demasiado tempo os ouvidos estão carentes do aplauso e do fragor; apraz agora gozar também do sangue humano". Uma viagem sucede a outra e espetáculos são trocados por espetáculos. Como diz Lucrécio: - Deste modo cada um sempre foge de si. 
Mas que aproveita, se não foge? Ele segue a si mesmo, e o molesta o mais pesado companheiro. E assim devemos saber que não é dos lugares o mal de que sofremos, mas de nós: fracos somos para suportar tudo, e não somos pacientes quanto aos trabalhos nem quanto aos prazeres nem quanto a nós mesmos, nem quanto a coisa alguma por mais tempo." (SÊNECA. Sobre a tranquilidade da alma. Nova Alexandria. São Paulo. 1994. p. 26-27)

Sêneca lá no século I d.C já aponta um pouco para essa noção das constantes viagens como uma espécie de fuga de si em que a busca constante do novo apontaria apenas para um ausente no sujeito que não cessa de clamar por ser preenchido. 

Obviamente que não há aqui nenhuma intenção de condenar pessoas que viajam, que tem condições para tal, etc. O objetivo dessa pequena reflexão é apenas mostrar como que nessa dinâmica se evidencia um caráter fulcral desse homem hipermoderno que cada vez mais se evapora na busca de novas experiências cada vez mais rápidas com uma dinâmica cada vez mais acumulativa. O capitalismo ganha asas cada vez maiores, e nele, cada vez menos, somos capazes de voar.