Quid
ergo Athenis et Hierosolymis? Quid academiae et ecclesiae? Quid
haereticis et chrsitianis?
“O que há de comum entre
Atenas e Jerusalém? Entre a academia e a Igreja? Entre os heréticos
e os cristãos?” (TERTULIANO. Traité de la prescription contre les
hérétiques. Livro VII,9. 1957. p.98 em tradução livre)
Um dos aspectos principais da filosofia medieval é o debate entre a fé e razão. Desde os padres apologistas do primeiro século da era cristã até meados do século 15 essa será a tônica de diversos textos escrito por padres, filósofos, teólogos. A frase que abre esse texto é de um desses padres apologistas chamado Tertuliano (160-220 d.C). Assim
se exprime Tertuliano diante das diversas heresias que enfrenta no
século II da era cristã. Tertuliano optará por
acentuar mais as diferenças entre a fé cristã e a filosofia grega
do que acentuar o que elas teriam em comum. Algo interessante a se
ressaltar é que o debate entre Atenas e Grécia será algo que dará
corpo à teologia cristã em seu desenvolvimento no ocidente. Embora
diversos dos padres apologistas dos primeiros séculos do
cristianismo tivessem feito um esforço hercúleo para conciliar os
pressupostos da fé cristã com as matrizes gregas, sempre houve algo
nesse debate que provocava uma espécie de cisão. É como se de
alguma forma Jerusalém nunca pudesse ser completamente incorporada
por Atenas. Sempre haveria algo que escapava a essa tentativa de
assimilação completa.
Apenas
esse tema já daria um trabalho enorme para ser elucidado, ainda mais
por ser um tema extremamente debatido em toda a filosofia medieval.
Mas algo que gostaria de apontar é que podemos dizer que a ruptura
estrutural entre o mundo grego e o mundo cristão se dá a partir da
noção de criação.
No
mundo grego essa noção é completamente estranha, ou seja, por mais
geniais que tivessem sido Platão ou Aristóteles e diversos
pré-socráticos antes deles, a concepção de que o mundo tivesse um
começo causado por um agente externo que não tinha nada diante de
si soava extremamente estranha. O universo para os gregos (em linhas
bem gerais sem nos ater às inúmeras diferenças entre os diversos
filósofos) era eterno, ou seja, sem princípio nem fim, mas onde, de
alguma forma, o movimento estaria presente fazendo com que uma coisa
se tornasse outra coisa.
Desde
Platão com o Demiurgo que contempla as formas puras e molda a
matéria, até os primeiros motores de Aristóteles (ele chega ao
número de 55 na sua "Física") como causa primeira e ato
puro, a causa do que há estaria ela mesma presente no universo que é
gerado, ou seja, o movimento que faz com que uma coisa se transforme
em outra está presente na própria estrutura das causas primeiras.
Mesmo
o Demiurgo platônico (que talvez mais se aproximaria de uma visão
cristã sobre Deus no mundo grego) serviria de explicação para o
"como" o mundo veio a existir, mas não explicaria o porquê
de tal mundo existir, ou seja, ele não é quem "cria" o
mundo, mas apenas aquele que molda a matéria pré-existente a partir
das ideias contempladas por ele. Nem o deus platônico, e nem o deus
aristotélico criam as coisas, mas agem a partir de coisas
pré-existentes.
O
cristianismo rompe estruturalmente com o mundo grego ao afirmar que
apenas o Deus é o ser, ou seja, apenas nele seria possível
conciliar a essência e a existência de forma plena. Essa dedução
não teria sido ensinada pelos gregos, mas por Moisés lá no livro
do Êxodo. (Ex 3,14) "E disse Deus a Moisés: Eu sou o que sou.
Assim dirás ao povo de Israel: EU SOU me enviou a vós". Nesse
texto, Deus, ao se nomear como aquele que é, se identifica ao ser e
dessa forma se coloca como pleno, ou seja, como alguém que não
depende da ninguém além de si mesmo. A metafísica do Êxodo será
lido e comentado por diversos padres apologistas no decorrer da
história do cristianismo. Se o Ser é o nome próprio de Deus, para
o cristianismo, as outras coisas só serão porque seriam criadas por
Deus que lhes doa a existência; e o faz por meio de sua vontade.
Vincular todo o mundo à noção de criação faz com que a relação
entre o homem e o mundo mude drasticamente. Ele não é mais fruto de
uma razão imanente, ou fruto de um movimento de uma matéria
pre-existente, nem fruto do acaso (como afirmava o epicurismo e sua
noção de clinamém), mas fruto de uma vontade criadora que lhe dá a existência.
Jerusalém
rompe com Atenas, mas continua lhe sendo extremamente devedora em
diversas formulações posteriores, ou seja, a ruptura se dá de
maneira estrutural, mas isso em hora nenhuma faz parar o diálogo
incessante e interminável entre as duas visões de mundo. Diálogo
esse que este brevíssimo texto faz menção.
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