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"O viajante surpreendido pela noite pode cantar alto no escuro para negar seus próprios temores; mas, apesar de tudo isto, não enxergará mais que um palmo adiante do nariz." (FREUD, Sigmund. in Inibições, Sintomas e Ansiedade. 1926/2006 p. 12)
Freud, como a maioria das pessoas deve saber, era um grande entusiasta com a causa científica. Seu ardor para com a ciência foi em parte o que muito o motivou a empreender as investigações que se propôs sobre o psiquismo humano. Empreendimento esse que culminou na criação da psicanálise.
Desde o início, Freud quis que a psicanálise fosse aceita nos círculos científicos de sua época como uma ciência legítima que possuía métodos bem definidos e não mediu esforços para que isso se tornasse realidade, apesar de toda a crítica que enfrentou desde o início de seu trabalho.
Como para ele, a psicanálise deveria ser entendida como ciência, faria muito pouco sentido pensar que a psicanálise poderia formular uma "visão de mundo" (weltanschauugen) independente ou diferente da cientifica. Por princípio ela deveria adotar para si a visão de mundo científica. Nesse texto, ele até afirma que essa questão de "construir visões de mundo" poderia ser deixada aos filósofos que sempre gostam de fazer este tipo de coisa, mas que isso estava longe de ser o objetivo da psicanálise. Muito pelo contrário, a psicanálise, por se basear na clínica, na experiência dos casos, no "um a um", estaria sempre disposta a rever os seus conceitos se as experiências clínicas assim a exigisse.
Essa noção de uma "infinita construção" que Freud atribui à psicanálise é algo digno de respeito e nota em relação à utilização do método científico. A construção deve se dar seguindo o método científico por excelência. Não adianta queremos subterfúgios que nos levarão para longe do trabalho árduo que a ciência exige. Daí o contexto da frase que abre este texto. Ou seja, o fato de cantarmos para negar os nossos medos durante a noite, não nos ajuda a enxergar melhor. Se não formos pacientes na nossa pesquisa, e estivermos dispostos a rever nossas constatações a todo momento, dificilmente chegaremos a um resultado sólido que trará benefícios à ciência.
Freud, nessa frase está fazendo novamente uma crítica à religião e mais especificamente ao "catecismo da igreja" que para ele, deveria ser substituído pelo método científico. Apenas o método científico poderia tirar este homem da noite em que ele se encontra e levá-lo para outro lugar, mas enquanto isso, ele insiste em "cantar alto no escuro" perpetuando a sua condição. (Para quem não sabe, Freud fazia duras críticas à religião e a via como uma grande ilusão da humanidade na tentativa de lidar com seu desamparo estrutural. Tentativa essa fadada ao fracasso)
O cientificismo de Freud é algo louvável enquanto método de pesquisa, mas a meu ver, Freud deixa de lado nesta metáfora que usa, o fato de que aquele que canta para negar os seus temores, já não se coloca na noite da mesma forma. Ao cantar ele é outro, ele é um homem que não aceita a imposição da noite sobre ele, mas quer fazer com que a sua experiência na noite adquira um sentido. Ele, ao cantar, busca algo que transcende a sua condição. Busca algo que o método científico não é capaz de lhe dar por mais que tente. Com isso, esse novo homem não está "criando uma nova realidade", mas re-significando a sua experiência a partir do seu desejo. É por experienciar a realidade na sua forma mais crua que o homem se recusa a viver da mesma forma e ousa cantar para que a noite possa ser mudada.
A ciência nada pode ajudar este homem que começa a cantar. Mas esse homem também não precisa da ciência para simbolizar e significar a sua experiência na noite. Temos que concordar com Freud que o canto daquele homem em nada o fará enxergar melhor durante a noite, mas temos que afirmar também que, apesar disso, esse homem poderá enfrentar melhor a noite que lhe sobrevém quando começa a cantar.