Dai-lhes
vós de comer. (Lucas
9:13)
E
depois disto designou o Senhor ainda outros setenta, e mandou-os
adiante da sua face, de dois em dois, a todas as cidades e lugares
aonde ele havia de ir. (Lucas
10:1)
Nisto
todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos
outros. (Jo 13,35)
Os
textos de Lucas são bem interessantes para pensarmos diversas
coisas. O texto de Lucas 9, por exemplo é repleto de histórias.
Desde o envio dos discípulos, passando pelo questionamento de
Herodes sobre Jesus e sua fama, seguido pela multiplicação dos
pães. Depois disso uma questão fortíssima de Jesus sobre a forma
como os discípulos o viam, uma fala incompreendida pelos discípulos
sobre a ressurreição, seguido da transfiguração, seguido de uma
expulsão de um demônio e uma querela sobre “quem seria o maior no
reino de Deus” e terminando com um incentivo à tolerância. Todos
esses eventos descritos em apenas um capítulo, e a meu ver mostrando
como que as coisas estão extremamente imbricadas nos ensinamentos do
Cristo.
Daí
algo interessante que podemos extrair e trazer uma reflexão
interessante para nós é que Jesus tem uma preocupação muito
grande em fazer traduzir as suas falas em experiências concretas, e
ao mesmo tempo, traduzir as experiências concretas em falas sobre o
Reino de Deus. Podemos dizer que as
parábolas e as falas de Jesus seriam uma espécie de milagres em
palavras, e os milagres uma espécie de parábolas em ação.
Dessa
forma, ao enviar os discípulos de dois em dois, Jesus parece remeter
à noção de que o Reino de Deus é sempre anunciado com o Outro e
para o Outro. Não há Reino de apenas um homem só, mas ele é
sempre permeado pela companhia na caminhada. O
Eclesiastes já coloca essa noção para nós quando fala que “melhor
serem dois do que um” (Ec. 4,9), e Jesus aponta nessa mesma direção
ao enviar os discípulos acompanhados para a proclamação do Reino. Ao
enviar os discípulos de dois em dois, Jesus dá a oportunidade para
que os próprios discípulos exerçam entre si o amor sobre o qual
ouvem diariamente. Eles precisarão conviver durante uma longa viagem
juntos, e isso é um grande momento para que os laços entre eles se
estreitem. A vivência que tal viagem proporcionaria valeria muito
mais que inúmeras falas de Jesus sobre amor ao próximo.
Realmente
a viagem empolga muito os discípulos, que retornam comentando o que
experienciaram e como as pessoas os ouviam e os “espíritos se
submetiam”. Tudo isso com certeza gerou muita alegria, no entanto,
logo depois eles se deparam com uma demanda extremamente urgente e
específica que é uma multidão de 5 mil homens demandando comida.
Sem muito o que saber o que fazer eles recorrem a Jesus que lhes diz
prontamente “Dei-lhes vós mesmos de comer”, ou seja, a
responsabilidade de suprir as demandas do povo não poderia recair
apenas sobre Jesus, mas os discípulos deveriam tomar sobre si a
responsabilidade; e nesse sentido, a experiência que tiveram
enquanto evangelizavam deveria tê-los preparados para se tornarem
maduros.
Algo
interessante que podemos ressaltar é que o outro com quem caminhamos
é uma possibilidade dada por Deus de experienciar o ser humano, e
ao mesmo tempo o próprio Deus. No entanto, isso pode nos fazer
aproximar de Deus ou nos afastar dele. Basta lembrar que no final do
capítulo 9 de Lucas os discípulos ainda estão preocupados em saber
“quem é o maior no reino de Deus”. Caminhar junto deve nos levar
a uma maturidade que se prolonga para além da própria caminhada, ou
para além do momento em que estamos juntos e reunidos, do contrário
isso acaba se tornando apenas uma reunião de forte cunho emocional,
mas que não traz nada de efetivo nem para o mundo e nem para o
próprio sujeito.
Antes do milagre da multiplicação
dos pães há uma séria pergunta de Jesus sobre a forma como a qual
os discípulos o viam. Ou seja, uma pergunta sobre a identidade de
Jesus diante dos discípulos. Isso implica que a forma como vemos e
entendemos Jesus muda drasticamente a forma como respondemos ou não
o seu chamado. Podemos perfeitamente cair em uma espécie de ativismo
cego em que apenas nos empolgamos na companhia dos irmãos e
experienciamos coisas fantásticas (expulsão de demônios,
curas, etc, como também os próprios discípulos na experiência da
transfiguração), ou podemos refletir seriamente no que Jesus
representa para nós antes de sairmos por aí buscando apenas
experiências várias vezes vazias de sentido. Para que sejamos capazes de alimentar àqueles que nos pedem o que comer é preciso antes estarmos bem alimentados e bem fortalecidos no conteúdo daquilo que cremos. A fé que possibilita a alimentação dos outros deve primeiro passar por mim e ser capaz de me alimentar.
Dar aos outros o que comer implica assumir para mim a responsabilidade e a maturidade de acolher a proposta de Jesus e me enxergar como alguém a serviço do reino. Diante da demanda prática do mundo da vida toda a questão de saber "quem é o maior no Reino dos céus" perde o seu valor. É só a partir da demanda prática do mundo da vida é que a resposta de Jesus faz sentido ao dizer que o menor deles é o maior no Reino. A lógica que Jesus propõe inverte a polarização criada pelos discípulos. O mundo da vida com suas demandas exige o trabalho conjunto, exige o cuidado de todos para com todos para que todos tenham o que comer.
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