domingo, 29 de dezembro de 2013

"Que grande inutilidade. Diz o mestre. Que grande inutilidade! Nada faz sentido! " Ec. 1:2






Não há muito para dizer. O que há são apenas sentimentos confusos, buscas inacabadas, pensamentos esparsos, desilusões criadas em meio a uma vida semi-agitada. De nada adianta tentar verbalizar o sofrimento diante do mundo que tanta coisa tem para acontecer. É como se tudo fizesse tão pouco sentido que o que resta é apenas a dor no peito, o aperto no coração, o desejo quase que perene de algo sobre o qual também não sou capaz de dizer o que seria.

Sempre podemos cair na tentativa de comparar sofrimentos e dizer que temos motivos de sobra para estarmos gratos (coisa que realmente é verdade), mas nada disso serve para aplacar o sofrimento, a dor dilacerante de uma angústia sem sentido. É como se durante esta angústia a única coisa que importasse fosse esse objeto que insiste em se fazer presente, martelando cada vez mais forte em sua cabeça, formulando as mais impossíveis conjecturas só para sua cabeça manter o ritmo de pensamento.

Diante desta tentativa de ordem no caos o que se obtém é nada além de cansaço e mais angústia. É como se todo o seu esforço resultasse em nada mais que apenas distrações e nunca alcançasse a raiz do problema. Todas as coisas ainda estão lá. Sussurrando, debatendo, conjecturando em sua mente. Nenhuma delas acontece, elas apenas estão lá.

À medida que os objetivos vão se perdendo, pouca coisa resta para aplacar a desilusão. Sempre podemos olhar para trás e buscar conforto naquilo que já fomos para vermos o quanto caminhamos até o momento, mas isso muito pouco ajuda pois os olhos sempre estão à frente do corpo. O olhar para frente é sempre o mais natural, e na maioria das vezes só olhamos para trás quando queremos algo que estará à nossa frente. Esta busca pelo passado como forma de valorização do nosso lugar atual parece um tanto quanto falsa, embora tenha um teor de verdade. Olhamos para trás como quem busca uma esperança. A esperança que sempre é tomada como algo para frente, neste caso se encontra olhando para trás.

Mas e quando nem mesmo a esperança vem quando olhamos para trás? Quando não encontramos nada além de meros fatos que podem até trazer alegria, mas não passam de pequenas memórias que não nos motivam em nada?

O que resta para nós diante destas coisas?




terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Os Reis Magos, o Símbolo, a Simplicidade



Ouro, incenso e mirra. 

Símbolos da realeza, mas também símbolos de uma jornada que só é possível quando se faz juntos. 
Símbolos de uma caminhada rumo a um destino desconhecido, símbolos de uma fé pura que não precisa de nada mais que um mero brilho de uma estrela para que algo faça sentido. 

Símbolos que remetem a uma grande aposta em direção ao desconhecido e é recompensada com um compartilhar de momentos de alegria e felicidade. 
É recompensada com a vista de um simples menino deitado em uma manjedoura com seu pai e sua mãe ali sem muito a oferecer. 

"Um menino vos nasceu". Algo tão simples, tão corriqueiro, mas que ganha uma dimensão completamente diferente para os que creem. 

A simplicidade da recompensa nos remete ao fato de que talvez nem precisasse de uma recompensa para que a caminhada fizesse sentido. 
A travessia rumo a esse algo prometido já era o suficiente. 

Agora, o encontrar o menino deitado na manjedoura, encontrar o símbolo da salvação de Deus vinda aos homens no final de uma jornada pelo deserto é mais do que qualquer viajante poderia esperar.
O que resta a fazer senão depositar os presentes perante a manjedoura ? 

Ouro, incenso e mirra. Símbolos que podem ser deixados, pois os magos encontraram o que tanto procuravam. 
Diante do Sentido o símbolo se esvai e tudo ganha nova dimensão. Os magos saem diferentes, o mundo está diferente. 


Feliz Natal !

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Ainda sobre Isaías 41:10 - Um pouco sobre o conceito de justiça aplicado a Deus.





Ainda pensando no texto de Isaías 41:10 percebemos que o deus que fortalece e ajuda, o faz, fazendo uso da justiça. O conceito de justiça é bastante complicado , pois traz a tona uma série de discussões tanto filosóficas quanto teológicas.  Ainda mais sabendo que a justiça de deus não é a justiça dos homens, tal conceito entra em um terreno árido e o diálogo se torna bastante complicado. Obviamente que o intuito aqui não é definir o que seria justiça, nem muito menos abordar a questão do ponto de vista nem teológico e muito menos filosófico.

O que podemos dizer da justiça de Deus? Geralmente o que vemos é puro antropomorfismo aplicado à Deus. Esquecemos que o relato mais claro da justiça de Deus se faz presente na fala do Cristo que nos diz: "Nem eu tão pouco te condeno, vá e não peques mais". Esta justiça que não visa nada em troca, que perdoa os pecados gratuitamente, que não gera débito e que ainda é oferecida universalmente, é algo raramente associado como ideal de justiça divina. A imagem que geralmente ouvimos por aí é de um Deus que cobrará todo o bem e todo o mal no final fazendo com que a vida do "servo" seja realmente a vida de um "servo sofredor", para usarmos a paráfrase de Isaías 53. A vida do homem passa a ser a vida de um eterno devedor que nunca terá como pagar aquilo que deve.

A justiça vinculada à graça subverte o nosso conceito de justiça e por isso é melhor pensarmos em um Deus que no final será o justo juiz. Coisa interessante que ouvimos por aí é a aquela história de "Deus é amor, mas também é justo". A noção de adversidade é tão nítida que parece ser impossível vincularmos de forma aditiva a noção de amor e justiça. É como se a idéia de "Deus corrige a quem ele ama", fosse a regra para pensarmos a noção de justiça para com Deus.

Mas não será a correção de Deus uma atitude de graça para com a pessoa que permite que ela faça de forma diferente aquilo que ela fez?

É como se naquele "vá e não peques mais", estivesse o auge da justiça divina que vê o homem como falho, mas ao mesmo tempo permite uma nova chance, não encerrando cada ação como última, mas abrindo a possibilidade para o novo sempre. A justiça aqui se liga ao amor, se liga à liberdade, se liga à autonomia do homem de fazer e refazer suas ações.

Deus é amor e é justo, e só é justo porque ama. Prefiro pensar a justiça de Deus mais vinculada ao amor do que à punição. Prefiro pensar em um Deus que nos dá outra chance do que pensar em um que anota os erros e acertos em um caderno para depois cobrar tudo no final.
Um deus que possui um caderninho onde anota as dívidas e os acertos é um deus capaz de barganha. Talvez por isso esta ideia deste deus "dono do armazém" seja tão aclamada por vários pregadores em tantos lugares. Se este deus é capaz de barganhar, então é possível que eu possa fazer algo para que ele me conceda o que peço, ou quem sabe Ele verá que eu fui um "bom menino" e me dará aquilo que eu preciso.

As palavras do Eclesiastes que diz "há justo que perece na sua justiça, e há ímpio que prolonga os seus dias na sua maldade" (Ec. 7:15) soam estranhas a um sujeito que lida com um Deus que barganha.  O que o Eclesiastes evidencia neste pequeno fragmento é algo que vemos todos os dias, ou seja, que as coisas nem sempre funcionam como achamos que elas deveriam funcionar, e nem por isso elas estariam "fora" da justiça divina, embora seja  muito mais simples pensar em um Deus que recompensa quem faz o bem e pune quem faz o mal.

Curiosamente, por mais que se fale de "graça" "redenção" e outros termos tão caros ao discurso do novo testamento, a lógica de pensamento sobre a questão da justiça continua sendo o deuteronômio. O capítulo 28 então é o preferido de todos que querem tornar Deus um juiz que tem a lei em uma mão e o desejo incontrolável de punir os outros na outra mão. A grande condicional com o qual o deuteronômio inicia sua lista de "bençãos" e "maldições" é sempre evocado para que o homem se sinta responsável pelas bençãos ou pelas maldições que sobrevierem sobre ele. Nunca ouvi ninguém comentando sobre o papel de Deus nesta história do Deuteronômio, e acredito que a maioria das pessoas não prestam muita atenção a isso quando leem o texto.

A doutrina da retribuição como teologia vigente da época deuteronômica impede que Deus seja visto para além desta teologia, ou seja, o deus de Israel tem que ser o Deus que retribui ou que pune para que a coisa funcione. Se não for assim a coisa desanda. Apenas com o passar do tempo, com o desenrolar da história do povo de Israel, com as diversas críticas feitas à esta teologia (como exemplo podemos citar os livros de Jó e Eclesiastes que fazem severas críticas à doutrina da retribuição) é que é possível entendermos o discurso do Cristo e posteriormente o discurso de Paulo sobre a graça de Deus que subverte o conceito de justiça como retribuição. Um longo caminho teve que ser trilhado para que a noção de amor se fizesse sobressair sobre a noção de retribuição. Obviamente que já vemos nos Salmos, Provérbios, e vários profetas do antigo testamento este Deus de amor se revelando, o que vai contra a ideia muito difundida que o Deus do antigo testamento seria um Deus punidor e o Deus do novo testamento um Deus de amor.

O conceito de justiça perpassa todo o texto bíblico e é bastante interessante pensarmos em seu desenrolar à medida que o povo de Israel vai enfrentando novos desafios, novos exílios, novas batalhas. Assim como qualquer conceito é fruto do seu tempo, o conceito de justiça vai sofrendo uma grande mudança no texto bíblico. Esta transição é várias vezes negligenciada por alguns que insistem em fazer de Deus um sujeito carrasco que apenas quer coisas para nos dar outras. Presos à uma visão arcaica de Deus esquecem do desenvolvimento do conceito de justiça que tem no amor o seu vínculo último.

Talvez só assim possamos pensar como que Deus nos fortalece com a destra da sua justiça. Ou seja, ele nos permite refazer nosso caminho quantas vezes for necessário, pois ele sabe que neste refazer o nosso caminho está envolvida a nossa liberdade, a nossa autonomia, e o mais importante, o seu amor que é fonte da sua justiça. E durante o caminho, por mais escuro que seja, ele está sempre dizendo para nós: "Não temas porque eu sou contigo".


sábado, 7 de dezembro de 2013

Para Allana







Às vezes tudo o que precisamos é apenas um encontro.
A troca simbólica entre duas pessoas,
O sentar ao redor de uma mesa
O comer alguma coisa enquanto se joga conversa fora
O olhar no olho antes de dizer as coisas
O beber com o outro enquanto a noite caminha lentamente
O olhar as pessoas passando 
O sentir a brisa refrescante trazendo refrigério aos corpos...
Coisas simples da vida que vão se tornando cada vez mais raras...

Como é difícil às vezes esse encontro,
Afinal, sempre estamos tão atarefados
Sempre estamos correndo atrás do tempo
Lutando para darmos conta das nossas tarefas,
Tentando nos desdobrar em mil para da conta das nossas promessas,
das nossas metas, dos nossos sonhos...
Isso tudo torna os encontros cada vez mais difíceis. 
Não que estejamos errados em buscar estas coisas, várias delas precisam ser buscadas
E os bons amigos sempre entendem isto

Este encontro, por sua especificidade, não é com qualquer um
É um encontro ímpar, com uma pessoa ímpar, com alguém que permite esta troca simbólica
Com alguém com quem o coração se sente a vontade,
Com alguém com quem a boca não precisará de muitos filtros pois sabe que os ouvidos atentos entenderão
Afinal, o encontro esperado é sempre com um outro estimado
Um outro com quem possamos compartilhar nossas dores, nossos desafetos, nossas alegrias
Um outro que poderá nos compreender, nos ouvir, dizer talvez algumas palavras confortantes
Ou palavras desafiadoras, nos fazer perguntas que temos talvez medo de ouvir, 
ou medo de fazer a nós mesmos.

O importante neste encontro não é o encontro, mas sim este outro
Este rosto que aparece ali e te mostra sua incompetência em resolver tudo sozinho
Este outro que coloca fim ao seu narcisismo e seu desejo de onipotência
Este outro que te mostra que nem sempre o que você imagina em sua cabeça acontecerá
Este outro que te barra,  que te corta com palavras 
Mas ao mesmo tempo que te ama de uma forma tão pura que a interdição não é vista como mal
Às vezes tudo o que precisamos é este encontro presencial com o outro. 

Neste mundo conectado, há cada vez mais a ilusão de estarmos próximos 
Há o vislumbre de que estamos com o outro porque o respondemos ou o comentamos,
Mas nenhuma destas respostas é capaz de suprir a presença, o rosto do outro diante de nós
Apenas face a face é possível esta troca completa, esta presença real, 
talvez a supressão do vazio que sempre nos rodeia. 

Mas quem somos nós para cobrarmos qualquer coisa de qualquer pessoa?
Quem somos nós para dizer o que o outro deve ou não fazer?
Devemos perceber sempre o esforço dos que se importam
Devemos sempre valorizar as pequenas atitudes, os pequenos gestos
Estes são sempre os mais significativos, são os mais inspiradores.
É uma mensagem, é uma ligação, é uma preocupação, é um dizer: Estou preocupado contigo!
É um se mostrar disponível apesar da falta de tempo, 
É um se desdobrar para que as tarefas nunca sobreponham o que mais importa
É se mostrar como uma pessoa que ama, que cuida, que chora e que ri junto
Estes gestos são em si inestimáveis, representam muito,
Pena que às vezes são levados tão em pouca conta por vários que não vêem na simplicidade do ato
Toda a sua beleza... 

Este tipo de pessoa que, apesar das tarefas
Apesar da falta de tempo
Apesar do cansaço
encontra tempo para um gesto,   
para se importar, para ligar, para tentar suprir a falta, 
é cada vez mais raro hoje em dia, e por isso elas devem ser valorizadas ao extremo
E para estas pessoas raras, dedico este texto.
Tenho sorte de ter algumas pessoas raras em minha vida,
Isto me deixa muito feliz. 

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Não temas, porque eu sou contigo. Reflexão sobre Isaías 41:10




Diante do caos que parecia eminente e que nada seria capaz de acalmar ou remediar, surge uma voz que dizia: "Não temas porque eu sou contigo, não te assombres porque eu sou teu Deus. Eu te fortaleço e te ajudo com a destra da minha justiça" (Isaías 41:10).

Assim, em meio ao cativeiro onde nada mais parecia se vislumbrar, a voz de Deus ressoava na boca do profeta. Era talvez como uma brisa suave, que assim como com Elias, o tomava sem esperar e o surpreendia pois estava acostumado apenas com gestos grandiosos de um "deus dos exércitos".

A voz soava, ecoava, trazia palavras de esperança, palavras de conforto que fazia o povo acreditar que nem tudo estava perdido. Acreditar que por mais que pareça que tudo esteja desmoronando ao nosso redor, ainda assim é possível uma palavra de esperança, ainda assim é preciso crer que o futuro será melhor que o passado.

A voz de Deus naquele momento não era um convite à apatia, ou um convite a simplesmente "se entregar" e deixar que tudo se resolva. Era exatamente o contrário. As palavras ditas pelo profeta são para aqueles que continuavam a seguir no caminho. A fala do profeta fala de um Deus que os fortaleceria, ou seja, de um Deus que andaria com eles pelo caminho, mas em momento algum de um Deus que tomaria conta de tudo, como quem assume a responsabilidade por nossas ações. O Deus que fortalece e ajuda, é um deus que caminha junto.

Pelo fato de caminhar junto no caminho é possível a Ele dizer "não temas", é apenas porque ele estará conosco durante todo o percurso que podemos crer e não temer. Uma promessa deixada apenas no campo da palavra em nada mudaria a vida do povo. Basta lembrarmos do caminho de Emaús, onde a companhia, o gesto permitiu aos discípulos o entendimento da situação. O caminho de Emaús precisava ser trilhado, assim como nós precisamos trilhar vários caminhos durante nossa vida. Às vezes eles serão tortuosos, às vezes serão mais planos, mas a confiança que temos é que Ele estará conosco enquanto caminhamos.

Curiosamente, Ele chega até nós no caminho como mais um que caminha, como alguém que quer estar perto, quer ser parte da caminhada. Ele chega como um amigo, como irmão, como simples homem frágil que tem que caminhar para o seu destino. Longe das intervenções metafísicas, longe dos barulhos, alardes, etc. Uma chegada simples como a brisa com Elias, simples como um homem montado no jumentinho, simples como as pombas. E na simplicidade de um amigo que caminha junto Ele se mostra e diz novamente para nós: "não temas porque eu sou contigo."


sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Lamentos






Toda noite penso em você. Não sei mais onde você está, o que está fazendo, quantos novas pessoas encontrou, com quem convive agora. Não sei mais tanta coisa sobre você.

Fica talvez a saudade de algo, saudade da pessoa, dos mundos transitados, dos momentos vividos, dos risos, e até mesmo das tristezas...

Falta até mesmo palavras pra escrever, ou descrever o que sinto no momento. Sentimento confuso de perda, mas ao mesmo tempo de conformação, sentimento de resignação, mas já aprendi a lidar com ele.

Saber que talvez tenha sido eu a causar tamanha distância muito me incomoda, muito me faz sentir estúpido por fazer com que você não esteja mais ao meu lado.

Tanta coisa mudou desde então que nem sei mais se ainda estaríamos no mesmo lugar, na mesma página, com a mesma afinidade de outrora.

Pena que aconteceu desta forma. Pena que não era para ser.

Lamento resignado como quem chora por algo que não pode mudar, como quem pede socorro sem ninguém para ouvir a voz que ecoa, como mero sino que soa no nada.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

O juiz, o general e o Outro.




Cada um enxerga o Deus que quer, mas não apenas o Deus que quer, mas o deus que lhe é ensinado. Alguns são ensinados que Deus é um grande juiz que tudo vê o tempo todo, que está sempre pronto a encontrar uma falha para nos punir e nos condenar ao inferno eterno, ou então nos recompensar por todo o bem que fizemos na Terra durante nossa pequena jornada por aqui.

Este deus que administra uma balança e pesa todo o bem e todo o mal e feito é bem recorrente nas várias falas que ouvimos por aí em diversas igrejas, discursos, etc. A meu ver esta visão coloca a questão da salvação de uma forma bem simples. Vira uma questão de meritocracia aplicada à alma. Se você fez o bem, será recompensado, se fez o mal sofrerá as punições. Tipicamente a teologia da retribuição/deuteronômica tão criticada já nos textos de Jó e Eclesiastes.

Esta mudança da forma de ver Deus acontece até mesmo no próprio texto bíblico. O "Senhor do exércitos" é a forma como o povo de Israel via o seu Deus. Tanto que se notarmos o texto bíblico no Antigo Testamento, veremos que as constantes guerras se davam entre os povos, mas entre os deuses dos povos também. O exemplo clássico de Elias contra os profetas de Baal  tipifica esta relação muito bem. A questão ali era saber quem era o deus mais poderoso; ou seja, o deus mais poderoso seria aquele que mandaria o fogo dos céus e queimaria as ofertas do altar. Dessa forma, o "senhor do exércitos" tinha sempre que dá mostras do seu senhorio a cada batalha, e não raro vemos deus sendo descrito como um general que daria as estratégias ao povo de Israel para que estes ganhassem a batalha.

Esta visão sobre Deus condiciona também o que pensamos que Ele possa querer de nós. Se notarmos bem, não há uma proposta de "evangelização" no Antigo Testamento. Os povos derrotados geralmente eram eliminados pois eram vistos como rebeldes e desobedientes. Não há uma tentativa de converter os povos derrotados, é como se o senhor do exércitos não tivesse interesse em novos guerreiros. Podemos notar que a imagem de Deus para o povo de Israel é a de um Deus que comanda seu povo, é um Deus general, que funciona como legitimador das guerras por território. Talvez no Antigo Testamento, apenas em alguns dos salmos de Davi podemos ver esta imagem se esvaindo e se tornando mais intimista.

É bastante óbvio que a imagem que temos de Deus é fundada a partir da cultura que vivemos. Seria até interessante pensar hoje a relação ou até mesmo a volta da doutrina da teologia da retribuição sob o nome de teologia da prosperidade à luz da presença massiva do capital em praticamente todos os setores da vida.

É como que se de alguma forma, a teologia da prosperidade não mais precisasse de Deus para fazer efeito, mas apenas do pressuposto que a meritocracia é um bom meio para as coisas se encaixarem.  Se antes a teologia da retribuição colocava tudo nas mãos de Deus, chegando várias vezes a negar a própria vontade do homem em nome da vontade de Deus, (doutrina próxima a defendida por Calvino) a teologia da prosperidade coloca Deus na mão do homem. De doador, Deus passa a ser visto como serviçal que há muito tempo atrás teria feito uma promessa de honrar o mérito do seu senhor. Esta perversão da noção de "servo" na relação para com Deus é algo bem comum hoje em dia, principalmente nos meios neo-pentecostais.

Estas diversas visões a respeito de Deus poderiam ser multiplicadas ad infinitum tanto no texto bíblico e daí mostrar suas evoluções, etc, quanto se considerássemos outras culturas, ou outras religiões, etc. Esta tarefa por mais interessante que seja é impossível de ser tratada neste pequeno texto.

Para mim, as duas formas que o texto bíblico expressa de forma mais "universal" a imagem de Deus é na fala do salmista que diz: "Oh Deus, tu és o meu Deus e eu  te busco intensamente" (Sl 63:1 - NVI) . Ou seja, Deus é sempre o meu Deus, pois sempre o vejo de forma diferente e nova, pois ele se revela para mim sempre de forma diferente e nova. Eu sempre me relaciono com ele a partir das minhas vivências, a partir daquilo que me ensinaram. O meu Deus só passa a ser "pai nosso" quando encontramos alguém que o vê parecido como nós o vemos. Quando somos inseridos em um cultura que nos diz que "deus é assim". Deus nunca é igual para mim e para o outro, mas é parecido. Deus é sempre uma experiência particular que toma sentido a partir do outro.

A segunda, e talvez a definição mais simples, é a de João que afirma que "Deus é amor", (I Jo 4:8) ou seja, Deus é sempre incompleto, pois o amor é sempre incompleto, sempre está pronto para se doar, para abrir concessões, para se expandir, o mesmo penso eu a respeito de Deus. Deus é este inominável que se mostra a partir do amor ao próximo, que se mostra no amor à terra, que se abre ao outro se doando sem nada esperar receber. Talvez por isso a definição mais simples seja a mais complicada no final das contas. Daí talvez que as diversas formas de enrijecer a imagem de Deus seja sempre uma espécie de atentado à liberdade do amor que se encontra em todos. 

Por isso que Deus é sempre meu Deus, mas ao mesmo tempo é sempre "Pai nosso" que é visto sempre em pequenos traços, mediado pelo meu contato com o próximo a quem sempre posso levar amor fazendo com que Deus se mostre para o outro de forma sempre nova. 

No final então, nem o juiz, nem o general,  mas apenas um grande outro que se revela sempre de forma nova dando sentido à existência.