sábado, 20 de setembro de 2014
Considerações sobre Lamentações 5,15-16 - A lamentação e a possibilidade da dança.
Dos nossos corações fugiu a alegria; nossas danças se transformaram em lamentos.
A coroa caiu da nossa cabeça. Lamentações 5:15-16
O contexto do livro de Lamentações é bem conhecido dos leitores do texto bíblico. O reino do norte (Israel) tinha sido levado cativo pela Assíria em 722 a.C, e em 587 a.C é a vez do reino do Sul (Judá) ser levado cativo por Nabucodonosor. O texto de Lamentações, escrito pelo profeta Jeremias, tem como contexto o exílio babilônico e se constitui um grande lamento pelo que o povo de Israel está passando.
O momento com certeza é muito difícil, e nessas horas parece que toda a esperança, até mesmo do profeta, se foi e não existe mais nada ou alguém em que se possa apoiar. O profeta coloca isso de forma muito crua nos versículos que abem esse texto.
Várias vezes a nossa situação é homóloga ao do texto de Lamentações. Do nosso coração fugiu a alegria, as danças se transformaram em lamentos e a coroa caiu da nossa cabeça. Os dias são difíceis, a sensação da abandono parece nos assolar e não vemos nenhuma saída no horizonte. No caso de Jeremias que morreu no cativeiro, essa foi uma realidade que se impôs de forma definitiva. Ou seja, não houve salvação, não houve "retribuição pelas boas práticas", nada além da morte no cativeiro. No entanto, mesmo com um cenário desolador como esse, Jeremias ainda propõe que possamos "trazer à memória o que nos dá esperança." (Lm 3,21) Ou seja, mesmo que a situação de fato não mude, a minha atitude para com aquele momento fará com que pelo menos ele mude para mim. A fé de Jeremias o leva a afirmar "Ó cidade de Sião, o seu castigo terminará; o Senhor não prolongará o seu exílio." (Lm 4,22) Mesmo que para ele essa verdade nunca tenha se concretizado, a sua fé o fazia afirmar tal possibilidade.
Aqui que vejo como que a dimensão da fé (independente da forma como ela se manifeste) se coloca de forma fulcral na relação do indivíduo com o mundo. A fé pode ser um grande instrumento para uma leitura mais positiva do mundo. Não falo de uma fé inerte, que apenas contempla as coisas, mas de uma fé que faz com que o sujeito se posicione diante da realidade e proponha a mudar tal realidade. Jeremias encarna esse ideal no livro de Lamentações. Mesmo não tendo poder para mudar a situação do cativeiro, ele insiste em apregoar aquilo que ele acredita ser o caminho para a mudança da situação. Aqui a dimensão existencial da fé se mostra de forma muito forte. A afirmação é sempre permeada por uma dúvida do profeta em relação a ela, o último versículo de Lamentações nos indica essa dimensão. Jeremias termina suas lamentações clamando: "restaura-nos para ti, Senhor, para que voltemos; renova os nossos dias como os de antigamente, a não ser que já nos tenha rejeitado completamente, e a tua ira contra nós não tenha limite!" (Lm 5,21-22) Mesmo que haja a possibilidade dessa ira de Deus não ter limite, ainda assim Jeremias está disposto a confiar. Novamente apontando para uma dimensão da fé que sempre coloca a dúvida em seu centro, mas que não nos impede de clamar. Muito pelo contrário, é pelo fato de haver dúvida é que somos capazes de nos lançar confiando que algo ou alguém nos segurará pelos braços.
A insistência na oração a Deus, a tentativa de explicação do porquê o povo ter sido levado ao cativeiro, a escrita dos lamentos, isso tudo nos mostra um profeta que não está simplesmente parado esperando que Deus aja de alguma forma, mas que está se empenhando em tentar compreender a sua situação e, na medida do possível, mudá-la. Jeremias ora, mas também escreve e lamenta junto ao povo. Ele ora, mas tenta explicar, tenta entender o porquê de sua situação. A chave que encontra para isso é a doutrina da retribuição tão presente no imaginário israelita de sua época. Para Jeremias o povo foi levado ao cativeiro por causa do "pecado dos seus profetas e as maldades dos seus sacerdotes." (Lm 4,13) Embora isso não mude a realidade, dá ao profeta uma chave de compreensão da situação. Por entender a sua situação dessa forma o profeta é capaz de orar pedindo a Deus que os ajude, é capaz de se voltar ao povo e pedir que se arrependam para que Deus faça a sua parte. Se o pecado nos trouxe até aqui, convertamos para que Deus mude a nossa sorte. Essa é a tônica de algumas das lamentações de Jeremias. A solução de Jeremias pode parecer pouco eficaz, mas ela traz consigo um sopro de esperança para o povo e para o próprio profeta.
Esse Deus que pode ou não atender as minhas orações, que pode ou não estar ali de fato, que pode ter "nos rejeitado completamente", que sempre se constitui como um grande vazio para além de nós mesmos, é para nós motivo de esperança. É para nós uma possível chave de leitura para tentar compreender a nossa situação. Talvez por isso as nossas visões sobre Deus sejam sempre tão precárias; Desde o Deus mais infantilizado - tal como aquele que sabe todas as coisas, resolve todos os meus problemas, que aparece como pai que sabe de tudo etc, - até um Deus visto como apenas um sentido possível para a existência, - uma representação de um pai "fraco", mas que ama e isso garante um sentido,- nossa visão sobre Deus parece querer dar conta apenas desse vazio que nos circunda e nos habita sem nunca conseguir realizar tal tarefa.
O nosso cenário às vezes parece tão desolador quanto o cenário vivido por Jeremias; no entanto o profeta nos mostra uma possível ação diante do caos que é o de dizer da esperança que habita em nós, que é o de agir a partir do que acreditamos para propor um caminho para mudar a situação presente, que é o de não se contentar com o presente assolador, mas estar disposto a construir um futuro melhor e lutar pela libertação do povo. Mesmo que tal tarefa nunca se veja concretizada ela se mostra como fonte de ânimo e alimenta a busca por um mundo onde a alegria não fuja mais de nós, e os lamentos se transformem em dança.

domingo, 14 de setembro de 2014
Pequena reflexão para um domingo. (Amós 6,6)
"Vocês bebem vinho em grandes taças e se ungem com os mais finos óleos, mas não se entristecem com a ruína de José". Amós 6:6
Recentemente estava lendo o livro de Amós e o versículo acima me chamou bastante atenção. Curiosamente o texto bíblico é em grande parte um texto para a coletividade. Raramente vemos instruções de cunho mais pessoal sendo dadas principalmente no Antigo Testamento. Obviamente que há instruções pessoais, Deus falando com Gideão, Moisés, Samuel, etc, mas até mesmo nesses exemplos a questão da coletividade é que "inspira" a voz de Deus.
Deus fala com Gideão sobre o livramento do povo, o mesmo com Moisés e Samuel. Parece haver sempre um apelo ao comunitário no texto bíblico. Se no Antigo Testamento esse apelo tem em vista apenas o povo de Israel, com o Novo Testamento esse apelo alcança todo o mundo nas cartas de Paulo e João. O princípio da coletividade se mostra como um grande norteador da proposta bíblica.
O versículo de Amós também nos mostra essa mesma dimensão coletiva que várias vezes é tão aclamada pelos cristão, mas muito pouco praticada. Obviamente que é muito mais fácil chorar com os que choram do que se alegrar com os que se alegram, no entanto se mostra muito mais complicado chorar com o outro enquanto tenho motivos e planos para me alegrar. Esse abrir mão da minha alegria em prol da tristeza do outro parece ser o movimento mais complicado de ser feito e é exatamente a isso que o texto de Amós parece se referir.
Não há uma condenação da alegria no texto de Amós, mas há uma advertência de que não se entristecer com a ruína de José é algo que não está certo. Se José está em ruínas, o vinho e os óleos finos se tornam secundários.
O que o texto de Amós nos convida a fazer é estarmos dispostos a descentrarmos de nós mesmos em prol do sofrimento do outro. Para o profeta parece fazer muito pouco sentido essa "alegria" dos vinhos e óleos finos enquanto uma parte do povo sofre. Isso às vezes acontece muito próximo a nós que não nos damos conta dessa espécie de compromisso exigido pelo profeta.
Estar disposto a abrir mão da minha alegria porque o outro está sofrendo parece ser o movimento proposto pelo profeta e que novamente tem a coletividade como alvo em detrimento do caráter individual. Tal proposta de Amós vai de encontro à nossa contemporaneidade tão centrada no individualismo e no "cada um por si". Ser capaz de chorar com o que chora mesmo quando se tem tudo para estar bem demonstra talvez um entendimento mais maduro da proposta bíblica e ao mesmo tempo nos faz perceber que a tônica dos profetas do Antigo Testamento está em uma interessante consonância com a proposta de amor trazida por Jesus no Novo Testamento.

terça-feira, 2 de setembro de 2014
Um aguardo esperançoso...
Aguardo os dias em que as trevas não sejam mais tão presentes
Aguardo os dias em que as nuvens pesadas e carregadas não estejam sobre a minha cabeça insistindo em não chover para passar, mas permanecendo como sombra que impede toda luz de brilhar.
Aguardo os dias em que os momentos felizes sejam mais abundantes juntos que separados
Aguardo os dias em que eu não precise fingir estar bem para suportar mais um dia trágico em uma vida cada vez mais sem sentido.
Aguardo os dias em que a brisa seja leve, os dias sejam frescos, o sol ilumine a terra fazendo com que seja agradável.
Aguardo os dias em que a gravidade não seja tão forte de forma a puxar tudo de forma indestrutível para baixo fazendo parecer que cada parte do meu corpo pesa muito mais que bolas de chumbo
Aguardo os dias em que o silêncio não seja sinônimo de incômodo, mas sinônimo de cumplicidade
Aguardo os dias em que na casa onde havia felicidade, riso e alegria, não seja habitada pela tristeza, angústia e pesar.
Aguardo os dias em que realmente os dois voltarão a ser um, onde realmente possamos falar que andam juntos em prol de um objetivo.
Aguardo os dias em que os diálogos não resultem sempre em problemas, mas que possam ser trocas interessantes de ideias.
Aguardo os dias em que as palavras não sejam ditas com o intuito de ferir, machucar, mas como refrigério para alma, como conforto.
Aguardo os dias em que a paz esteja mais presente
Aguardo os dias em que não precise aguardar tudo isso.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014
Místico sikh sobre Deus. Confluências...
As pessoas vão ao seus templos
Para saudar-Me;
Quão simples e ignorantes são meus filhos
Quando pensam que vivo isolado.
Por que não vêm e Me saúdam
Na procissão da vida, onde sempre vivo,
Nas fazendas, nas fábricas, no mercado?
Lá onde insuflo de ânimo aqueles
Que ganham seu pão com o suor de seu rosto?
Por que não vêm e Me saúdam
Nos barracos dos pobres,
E Me encontram a abençoar os pobres e necessitados,
Secando as lágrimas de viúvas e órfãos?
Por que não vêm e Me saúdam
Ao lado da estrada,
E Me encontram a abençoar o mendigo que pede por pão?
Por que não vêm e Me saúdam
Entre aqueles que são pisoteados
Pelos orgulhosos no roubo e no poder?
Por que não Me vêem contemplando seu sofrimento
e despejando compaixão?
Por que não vê e Me saúdam
Entre as mulheres que se afundaram no pecado e na vergonha,
Lá onde me sento junto delas para abençoar e elevar?
Estou seguro
Que jamais sentirão falta de Mim
Se tentarem Me encontrar
No suor e na luta da vida
E nas lágrimas e tragédia dos pobres.
(Kushdeva Singh. Místico e ativista sikh. In Dedication 1974, p.31-32)
Marcadores:
Colheitas em campos alheios

terça-feira, 19 de agosto de 2014
A fé vem pelo ouvir (Rm 10,17) - Um Diálogo entre fé e psicanálise
"A fé vem pelo ouvir" (Rm 10,17), essa é talvez a única vez que a Bíblia fala sobre o surgimento da fé. Ou seja, a fé, como nos diz Paulo se inicia com uma palavra.
Sabemos que a psicanálise nos propõe que também nós enquanto sujeitos só surgimos com a palavra. Antes dela somos apenas um corpo pulsante que não distingue entre o que sou eu e o que é o outro. Essa relação é tipificada na relação entre a mãe e o bebê onde este se sente um com a mãe, em uma relação que Freud chamava de "fusional". Somente quando a palavra entra nesse corpo é que é possível o nascimento do sujeito. Tornar sujeito significa estar submetido a uma separação, significa ser lançado no mundo, significa se colocar diante da realidade de forma que a antiga relacão fusional se mostre para sempre perdida. Essa palavra será a responsável pela nossa separação. É nesse sentido que a instância paterna aparece como a promovedora desse corte narcísico que põe fim ao desejo de onipotência da criança de ser o único objeto de amor para a mãe.
Essa palavra que entra em nós é sempre condicionada pelo mundo desse Outro que nos diz essa palavra. Nossos pais nos ensinam a partir da experiência deles o que é o mundo, como ele se organiza, etc. Essa palavra que nos é dita nos orientará por toda a nossa vida e nos fará entrar no mundo da cultura. Tal palavra mesma é dita dentro de uma determinada cultura. Nossos pais nos ensinam o que aprenderam de seus próprios pais e a partir daí os ensinamentos vão sendo passados de geração a geração criando um mundo para cada novo indivíduo que nasce.
Nossa fé também é ensinada culturalmente, ou seja, a nossa entrada no mundo religioso será sempre marcada pela nossa cultura, e por isso mesmo será sempre advinda de uma palavra. Nesse sentido que podemos concordar com Paulo quando diz que a fé vem pelo ouvir. Podemos também lembrar que Maria engravida pela palavra, ou seja, ela se abre para ouvir o que Deus lhe propõe e a partir daí assume tomar posição diante da palavra ouvida e encarar a missão que lhe foi proposta.
A fé que vem pelo ouvir, se coloca então como promovedora de um lançar-se no mundo, nos fazendo como seres separados, que encaram a realidade em que vivemos sem a nostalgia de um retorno a um mundo onde tudo era seguro e certo. A experiência da fé insiste em nos fazer ver a realidade, mas ao mesmo tempo nos permite ver que não se está sozinho para vivenciá-la. Dessa forma que a fé nunca se caracteriza como certeza, mas sempre como dúvida.
A fé, como nos diz Morano, sempre no coloca em relação a duas palavras. A palavra da instância paterna que nos faz sujeitos, que nos vem da cultura, que nos coloca como seres marcados pela falta, diante de um desamparo estrutural, e a Palavra, essa com "p" maiúsculo, pois vem de fora, vem de um Outro que permanece para sempre escondido, sendo "visto" apenas pelas costas (Ex 33,23). A grande tensão que se estabelece é de não tentar tomar essa Palavra que vem de Deus como resposta à carência que vem da palavra da instância paterna. Essa Palavra de Deus não visa tampar o buraco da falta, não visa resolver o drama do nosso desamparo estrutural que nos assola enquanto humanos, não visa ser uma resposta ao desamparo, mas visa abrir para nós uma outra dimensão da existência que aceita a contingência, mas nos dá motivos para a esperança de um sentido para a vida.
O desejo infantil de encontrar um objeto que tampe o buraco da falta facilmente cai na tentação de ver em Deus esse objeto e quando isso acontece a religião se torna uma grande ilusão tal como nos disse Freud em obras tais como O futuro de uma ilusão e Mal-estar da civilização. No entanto sempre é possível uma relação positiva com a religião e com a fé. A partir do momento que compreendemos que Deus não deve ser visto apenas como uma "muleta psicológica" (para usar a expressão de Bonhoeffer), nem deve ficar preso nas fixações infantis de um pai imaginário que detém todo o poder seremos capazes de pensar a nossa relação com Deus de uma forma mais madura.
Obviamente que as representações de Deus como pai ou mãe funcionam de forma a nos permitir vivenciar a nossa experiência com Ele/Ela de uma forma mais pessoal, no entanto é preciso ter em mente que tais representações nunca serão capazes de dizer o que de fato Deus é, nem mesmo devem tais representações tomar o estatuto de "verdade", mas devem permanecer sempre abertas para que não se caia novamente na tentação infantil de suprimir a falta que é estrutural.
O Deus da necessidade deve se transformar no Deus do desejo, ou seja, do Deus necessário como sustento para compreender a própria existência ao Deus que surge da aceitação da própria carência. Esse movimento pode ser visto na pessoa de Jesus que mesmo diante do desamparo de Deus, diante de um dos momentos mais tenebrosos de sua vida
A fé que vem pelo ouvir nos chama a uma fé madura, uma fé que não nega a contingência nem a finitude da vida, uma fé que não tem em Deus apenas uma busca por uma segurança ou perdão, mas uma fé que é capaz de se relacionar com Deus a partir do desejo, a partir da falta, mas sempre entendendo que esse Deus não será capaz nunca de suprimir a falta que é sempre estrutural.
Como nos afirma Morano, "talvez seja absolutamente necessária a morte de nossas expectativas sobre Deus, como condição de possibilidade para nos encontrarmos autenticamente com Ele." (MORANO, Carlos Dominguez. Experiencia cristiana y psicoanalisis. 2006)

segunda-feira, 28 de julho de 2014
Pensamentos esparsos sobre a desinstitucionalização no meio evangélico
Uma das coisas que acho interessante ao pensar o movimento de desinstitucionalização no meio evangélico é o quanto que isso talvez reflete a nossa situação hipermoderna de perda dos referenciais, ou então para utilizar a expressão de Lyotard, a época da "perda dos metarelatos".
Obviamente que há uma distância grande entre a religião e a sua institucionalização. Enquanto a religião fala do sentido da vida, a busca pelo mistério, etc, a institucionalização acaba por cristalizar visões de mundo e não raras vezes sucumbe a fundamentalismos e dogmatismos que acabam por tirar da religião todo o seu brilho a tornando extremamente burocrática e sem vida.
Devemos ter em mente que o processo de institucionalização da religião, pelo menos no ocidente, vem desde o início do cristianismo e, portanto, é algo que faz parte da história da igreja cristã desde a sua formação.
Algo que nos aponta Louis Dumont em seu livro sobre o individualismo é que a própria noção de individualismo no ocidente se inicia com o início do cristianismo. O cristianismo seria a princípio uma religião onde a relação do sujeito com Deus se daria de forma individual enquanto "sujeito-fora-do-mundo-e-em-relação-com-Deus". Esse sujeito que se relaciona assim com Deus, depende apenas dele mesmo para se aproximar da divindade. Embora participante de uma comunidade, a sua relação com Deus se daria sempre de forma individual e poderia no máximo ser "partilhada" na comunidade. Esse tipo de relação do homem com Deus, para Dumont, acaba por marcar o caminho que tomará o cristianismo até a sua transformação em religião oficial pelo império romano. A partir daí o "sujeito-fora-do-mundo" é chamado a se tornar "sujeito-no-mundo", pois o cristianismo seria agora um fator político importante para o império e por isso os cristãos não poderiam mais se abster do mundo em prol do "além-mundo".
Essa mudança de foco para Dumont acaba por fazer com que o cristianismo crie força política e seja utilizado já desde a idade média como uma religião que tem como fim último o "mudar o mundo".
A institucionalização do cristianismo por meio da igreja católica acaba por ser um fator decisivo na associação entre religião e estado e a partir daí toda uma série de mudanças se segue sem muitos mistérios para os que conhecem um pouco de história.
Diante de uma época onde tudo se torna objeto de escolha por parte do sujeito, a questão religiosa cada vez se liga mais a uma dimensão emocional do que propriamente a uma adesão a um discurso sobre o mundo. O fiel hipermoderno acaba por visar mais uma "religião a la carte" do que propriamente se comprometer com os compromissos que determinada religião exige. Tal dinâmica é vista de forma muito clara nos diversos sincretismos muito comuns nas igrejas evangélicas neo-pentecostais. Práticas como "passar no vale do sal", "ungir a água que será tomada" revelam uma espécie de apropriação de diversas culturas religiosas em nome de uma possível "luta contra o mal".
A partir do momento que a religião se torna um objeto de escolha por parte do sujeito, o qual não está mais submetido à "religião dos pais", a própria vinculação desse sujeito com a instituição se verá abalada. A instituição acaba se tornando um lugar a ser abandonado, pois não diz mais respeito a um discurso maior, mas se fecha cada vez mais sobre si tornando-se um fim em si mesma.
O sujeito hipermoderno acaba se encontrando diante de um grande dilema. Se por um lado ele visa a sua liberdade praticamente irrestrita de escolher o que bem entender, escolher a sua forma de religião, aquela que mais lhe agrada, aceitar essa posição teológica e não aquela, por outro lado ele sente a necessidade de uma pertença a um determinado grupo que pensa igual a si mesmo e devido às inúmeras leituras e releituras teológicas possíveis o que se vê é uma tremenda incompatibilidade entre as diversas posições teológicas que por serem extremamente particulares encontram pouquíssimos pontos em comum para que sejam compartilhadas por um grupo maior.
Esse dilema atravessa o religioso hipermoderno de forma crucial. Por um lado o desejo da escolha, por outro a necessidade de pertença. Por um lado a liberdade de pensar a sua própria fé a partir de uma teologia própria, por outro a necessidade de inclusão dentro de um discurso que garanta uma espécie de sentido à sua prática de fé.
Os constantes discursos que vemos atualmente incitando a desinstitucionalização, propagando uma "fé mais autêntica", uma fé que deve ser vivida apenas na relação homem-Deus, a meu ver, acaba por evidenciar esse grande paradoxo hipermoderno. Por trás de frases do tipo "cansei de ser evangélico", o que se pode notar é uma espécie de discurso que visa afirmar uma fé própria, sem nenhum tipo de "pertença", sem necessidade de vinculação a nenhuma leitura consagrada do texto bíblico.
Na negação da tradição se vê a mesma dinâmica hipermoderna que sempre se quer livre sem precisar vincular-se a nada. No entanto, essa dinâmica também tem sua contramão. Da mesma forma que o discurso libertário contra toda forma de tradição é incitado diversas vezes, o movimento de uma "pertença irrestrita" também ganha força. Não raramente vemos nos carros frases do tipo "orgulho de ser católico", "Sou membro da igreja X" que evidenciam esse movimento contrário que a nosso ver se tornam duas faces da mesma moeda. Ao negar a tradição em nome da liberdade irrestrita o sujeito acaba procurando algum porto onde se ancorar e nesse momento os movimentos de cunho mais fundamentalistas acabam por ganhar força.
A noção de uma "religião a la carte" promove ao mesmo tempo o discurso de uma desinstitucionalização onde o sujeito se mostra "cool" em relação à sua fé, mas ao mesmo tempo faz surgir movimentos contrários de fundamentalismos que aparecem quase que como resposta diante da crescente falta de um discurso norteador.
A meu ver o processo de desinstitucionalização no meio evangélico se insere completamente dentro da dinâmica hipermoderna. Como ainda estamos vivendo tal movimento, que a cada dia se torna mais forte, ainda é muito cedo para dizer se tal desinstitucionalização será boa ou ruim para o movimento evangélico, no entanto penso que algo que se torna inegável é que as instituições evangélicas a cada dia que passam perdem a sua credibilidade ao se envolverem em escândalos, práticas desonestas, etc. Infelizmente a maioria das pessoas fazem uma relação direta entre a religião e a sua forma institucionalizada, o que torna o debate várias vezes impossível. Não penso que o caminho seja uma completa desinstitucionalização da igreja pois querendo ou não a instituição acaba por proporcionar um ambiente várias vezes acolhedor e um espaço de convivência benéfico aos membros, no entanto, ao continuar trilhando o caminho trilhado nesses últimos anos, talvez as instituições evangélicas estejam cavando a sua própria cova de forma que talvez diremos como Nietzsche que afirmava lá no século XIX que os templos eram apenas os túmulos de Deus.

quarta-feira, 9 de julho de 2014
Pequena reflexão sobre o livro de Jó
Algo interessante sobre o
livro de Jó e que geralmente muita gente acaba por deixar batido é que o texto
em si é uma grande crítica à teologia da retribuição tão famosa entre os judeus
da época. E não apenas da época, mas desde o Deuteronômio. A "segunda lei"
(Deutero + nomos) é bastante enfática em vários textos sobre a doutrina da
retribuição e não precisamos buscar muitos textos para corroborar isso. Remeto
o leitor ao capítulo 28 de
Deuteronômio que já ilustra
muito bem o que digo.
A teologia da retribuição
propõe que "se formos bons, Deus nos retribuirá com o que é bom, se
formos mau, Ele nos retribuirá com o que é mau." Essa teologia está
presente em vários livros do Antigo Testamento e é atualizada no
Deuteronômio.
O livro de Jó e também o
livro do Eclesiastes visa romper com a teologia da retribuição mostrando que a
realidade tem muito pouca coisa a ver com a proposta do Deuteronômio. O
Eclesiastes chega a ser até bem enfático ao apresentar que "há justos a
quem sucede segundo as obras dos ímpios, e há ímpios a quem sucede segundo as
obras dos justos". (Ec 8:14), ou seja, por mais que o autor de Deuteronômio
queira fazer com que o mundo seja lido mediante uma retribuição simples, a realidade
insiste em ir contra tal programa.
A datação do livro de Jó se dá mais ou menos pelo séc. V a.C, ou seja, já bem posterior ao livro do Deuteronômio (Vários teólogos exegetas debatem a datação do texto, mas vários aceitam que o Deuteronômio data mais ou menos entre o Sec VII a.C.) e onde já há uma interface hebraica com o mundo grego e também já há uma assimilação grande da cultura dos babilônios e persas por parte do mundo hebreu. Essa troca com outras culturas permite que o mundo hebraico se expanda para além de uma visão de mundo mais fechada em si mesmo para tentar observar o mundo de maneira mais ampla.
O livro de Jó é todo ele construído como uma tentativa de romper com a teologia da retribuição. Jó, que no relato é um homem justo, passa o livro todo afirmando que não fez nada para merecer o que está sofrendo enquanto seus amigos insistem que ele "vasculhe em suas ações" para encontrar o "quando" cometeu algum pecado, pois é inconcebível que Deus traga tanto mal sobre a vida de uma pessoa se ela não tiver cometido mal algum.
À medida que a narrativa vai caminhando vemos a mesma dinâmica se efetivando até que Jó questiona o próprio Deus para saber o motivo de seu sofrimento. Com inúmeras perguntas Jó O questiona e, no entanto, Deus o responde com mais outras perguntas das quais Jó não consegue responder.
Vários estudiosos da literatura sapiencial aponta que o livro de Jó termina em Jó 42:6: "Por isso me abomino e me arrependo no pó e nas cinzas." E o que vem posterior a isso teria sido incluído posteriormente por um escriba.
(Sobre o ponto acima recomendo o excelente trabalho de José Vichel Lindez chamado "Eclesiastes
ou Qohelét - Grande comentário bíblico" Paulus 1999 onde Lindez traz
inúmeras referências e estudos de outros pesquisadores da literatura sapiencial que
corroboram tanto a datação provável do texto do livro de Jó quanto o seu final em Jó 42:6)
Para vários teólogos o que se segue após Jó 42:6 se trata de um acréscimo posterior. Se prestarmos atenção ao texto que se segue a Jó 42:6 , onde Deus restitui tudo a Jó, o que o escriba faz é deixar entrar pela porta de trás tudo aquilo que todo o texto expulsa pela porta da frente que é a teologia da retribuição. Ao acrescentar uma espécie de "restituição" a Jó no final do texto, o escriba acaba por corromper a crítica que o texto propõe. A teologia da retribuição que é negada durante todo o texto ressurge sob a pena do escriba em todo o seu esplendor no final do livro. Percebe-se com isso que tal teologia ainda é muito forte no período da escrita do texto de Jó, e um texto que acaba tendo apenas um homem em sua angústia sem as respostas divinas, com certeza seria um texto com pouquíssima aceitação nos meios mais conservadores. A noção de uma "restituição" é completamente estranha à literatura sapiencial bíblica e isso apenas corrobora a hipótese de um acréscimo posterior no texto.
O texto terminando em Jó 42:6 dá ao texto um caráter humano demasiado humano, pois o que temos aí é um homem com inúmeros questionamentos, sem resposta, sem nada, apenas munido de sua fé. É a situação de inúmeras pessoas nos nossos dias, que a cada dia estão mais sem perspectivas, que precisam enfrentar a solidão, a acusação dos amigos, o abandono da família, o sentimento de solidão e a angústia diante do mundo sem que ninguém apareça para lhe confortar.
A meu ver o texto de Jó nos remete à angústia diante do sofrimento que acomete a todos em algum momento da vida. Buscamos respostas, questionamos até mesmo ao próprio Deus e às vezes o que obtemos são mais perguntas que nos inquietam ainda mais. Ao invés de um conforto da restituição temos diante de nós apenas perguntas que nos remetem a avaliarmos a nossa própria condição diante das coisas. O que temos são perguntas das quais nós também não temos respostas, assim como o outro lado se mostra como um grande vazio que não provê respostas, mas sim perguntas.
Diante do sofrimento sem sentido, da angústia do mundo, dos momentos difíceis, o livro de Jó nos propõe olhar para nós mesmos, investigar para conhecer os caminhos por onde andamos para que possamos manter a calma da consciência tranquila de quem nada fez para merecer o que se passa. Ao mesmo tempo o livro de Jó nos leva a olhar para a nossa realidade e perceber que às vezes pouco podemos fazer para mudar o que nos acomete. Mas isso não nos leva a uma estagnação. Jó não se estagnou. Ele questionou, ele argumentou, ele se propôs contra tudo e contra todos afirmar a sua fidelidade aos seus princípios.
Longe de propor uma resignação diante de um mundo que aparece sem sentido, o que Jó nos propõe é um agir baseado no que se crê. Não um agir que espera uma retribuição, pois tem consciência que ela não existe, pois tem consciência que acima de si não se encontra um Deus sádico que se regozija no sofrimento alheio, ou que aposta para ver até onde vai a sua fé , mas um agir que visa uma auto-afirmação do humano, e ao mesmo tempo uma fé em Deus que pode ser questionado porque não é um Deus sádico, mas um Deus cuja misericórdia se renova a cada dia.
A lenda sobre Jó enquanto um homem diante da angústia se assemelha a todos nós e por isso talvez possamos tomar o seu exemplo como um bom exemplo para nós. Jó nos faz pensar em todos aqueles dos quais também são tiradas todas as coisas, dos que se encontram à margem do mundo, lembrar dos feridos das guerras, lembrar de Gaza, Pinheirinhos, os povos indígenas, e tantos outros dos quais são tirados todos os direitos restando apenas a sua fé em algo, quando conseguem mantê-la. O exemplo de Jó nos aponta que é possível talvez manter a fé, apesar de toda situação adversa, e que para além disso, nos aponta que é possível também agir com o que se têm para tentar fazer do seu mundo um mundo com sentido.
As perguntas de Jó são perguntas pelo sentido do seu sofrimento, mas mesmo quando as respostas não vêm, isso não o impede de agir.
.

Assinar:
Postagens (Atom)