sexta-feira, 30 de janeiro de 2015
Triste momento de Horácio
E a angústia o assaltava como há muito tempo não acontecia. Mas dessa vez era uma angústia que se misturava com expectativa, que ganhava contornos de ansiedade e o fazia perder um pouco a noção do tempo e das coisas.
Era como se Horácio fosse um grande fã da permanência, e qualquer mudança que acontecia em seu mundo o colocava em um não-lugar que ia ficando cada vez mais difícil de controlar. Sua obsessão pela repetição beirava a compulsividade e não raras vezes podíamos perceber que isso também o incomodava bastante.
Várias vezes ele não queria ser assim, afinal esse tipo de prática trazia sobre ele um enorme desconforto e sem contar que inúmeras vezes ele se sentia como que sendo um estorvo para os mais próximos dada a sua extrema fragilidade demonstrada pela sua obsessão.
Que ele tinha vários problemas familiares era algo que poucas pessoas sabiam, afinal ele não era também muito de comentar sua vida com estranhos, mas quase sempre lhe acometia um medo de ser abandonado pelos seus, medo de ser esquecido, um medo desesperador que inúmeras vezes o fazia querer agarrar-se a qualquer a qualquer mínima fagulha de companheirismo.
Talvez pelo fato de sua mãe ter sido muito ausente, ou pelo fato do pai, mesmo sendo aquele que o acompanhava à igreja, nunca tenha se feito participativo do processo educacional, sempre terceirizando os serviços educacionais na forma de babás, empregadas, etc.
Talvez um pouco daí a sua obsessão e o seu desejo homeostático. Ao tentar manter tudo em perfeita ordem, fazendo o possível para que o presente e o futuro fosse exatamente como foi o passado, Horácio se sentia mais seguro e o abandono parecia menor, afinal era como se para ele aquilo servisse de garantia de alguma coisa; garantia de que não precisaria novamente batalhar por tudo que já tinha conquistado.
Esta análise selvagem (para falarmos como Freud) que fazemos da figura de Horácio talvez em nada nos ajude a compreender o porque de tamanha ansiedade, o porque de tamanha preocupação, mas talvez de alguma forma nos ajude a compreender um pouco da figura de Horácio. Como já comentamos um pouco sobre Horácio outras vezes, não cabe aqui ficar repetindo o que já sabemos.
Esta compulsão pelo mesmo demonstrava um caráter tipicamente neurótico de Horácio, e acredito que qualquer psicanalista veria nele uma espécie de "tipo ideal do neurótico", mas para todos os efeitos Horácio nunca tinha ido a um psicanalista, na realidade ele achava essa noção de inconsciente, recalque, etc. meio estanha demais para ele. A ideia de que no ser humano haveria algo que o incita a autodestruição soava muito estranho para Horácio, que todos sabemos era um sujeito bem tranquilo e bondoso.
Enfim, o que tinha naquele momento era apenas aquela angústia vazia, destituída de todo objeto, que nada nem ninguém o ajudaria a superar. Era como se a fixação de Horácio sobre os pequenos detalhes fosse um grande empecilho para coisas mais profícuas para si e esse excesso de detalhe gerava nele aquela angústia que ele lutava com todas as forças para não aparecer. Olhava demais para o micro e isso gerava aquela angústia no macro. Triste momento de Horácio.
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Horácio

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015
O exemplo de Procusto e o exemplo de Jesus
Por favor me perdoe se para mim o mundo é assim. O que posso dizer além disso? Se nossas visões sobre as coisas são diferentes, se nossos valores são outros, se nossas lutas são tão distantes? O que dizer a não ser tal pedido de perdão?
Em vão será tentar convencer o outro daquilo que ele não acredita. Toda tentativa de convencimento acaba no final parecendo uma triste tentativa de reproduzir o mito de Procusto, aquele que procurava incessantemente uma mulher perfeita, mas sempre que encontrava alguma mulher era necessário levá-la para casa e a fazer deitar em sua cama de pedra. Se a mulher fosse menor que a cama de pedra, ele se sentia compelido a esticar a mulher para que ela ficasse exatamente do tamanho da cama. Se ela fosse maior que cama de pedra, ele simplesmente serrava os pés dela para que ela ficasse do tamanho da cama de pedra. Mais importante que a mulher era a cama para Procusto. (Há várias versões do mito de Procusto. Alguns afirmavam que sua cama era de ferro e ele seria uma espécie de sádico que mantinha duas camas diferentes de forma a cortar ou esticar qualquer um que deitasse na cama, mas eu gosto desta versão de alguém que procura alguém a partir de um padrão.)
Em que medida isso não beira às nossas inúmeras tentativas de convencer o outro de algo que para nós geralmente aparece como algo inegociável?
De alguma forma é como se todos nós estivéssemos serrando, esticando pessoas para que elas sempre se ajustem à nossa cama de pedra, pois só assim elas poderão ser vistas como perfeitas para nós.
Triste Procusto que não enxergava a perfeição senão comparando com um modelo ideal. Triste de nós que várias vezes agimos igual Procusto sempre querendo que o outro seja de acordo com aquilo que imaginamos, de acordo com aquilo que esperávamos delas.
A nossa cama de pedra é muitas vezes mais importante que a própria pessoa que procuramos incessantemente. Nossos padrões às vezes são tão altos, tão rígidos, tão estanques que não admitimos por um segundo sequer que possa haver alguém que seja bom para nós sem fazê-la passar pela nossa cama de pedra.
Em um mundo onde supostamente as camas de pedra estão abolidas, uma vez que qualquer tentativa de padronização, qualquer tentativa de normalização é vista como abusiva, ou como algo que não deve ser feito, é de se espantar que ajamos cada vez mais como Procusto.
Uma grande hipocrisia nos habita nesse sentido, pois ao mesmo tempo que negamos e lutamos contra qualquer tipo de normalização ou padronização do que quer que seja, saímos todas as noites procurando alguém que seja do tamanho da nossa cama de pedra. É como se o laissez-faire valesse apenas enquanto estamos peregrinando, mas assim que chegamos em casa lá está a cama de pedra que se impõe a nós e nos vemos quase que compelidos a seguir o seu comando.
Curiosamente todos nós agimos inúmeras vezes como Procusto e quase sempre achamos que não estamos agindo de forma a imitá-lo.
Por isso que talvez a noção de "convencimento" me pareça estranha. Note-se que aqui não falo de "esclarecimento", ou "explicação", ou dar a entender a um outro sobre determinado assunto. Não se trata disso. A noção de convencimento que comento aqui é aquele convencimento um tanto quanto falacioso que várias vezes fazemos com quem nos cerca. Quando convencer o outro se torna serrá-lo ou esticá-lo para que pense como eu penso, para que aja como eu ajo, para que seja como eu sou. Esse tipo de convencimento é que me lembra Procusto e sua cama de pedra.
Aqui não tem como não lembrar dos inúmeros evangelismos que já participei na vida. Sempre que saíamos para evangelizar nos era proposto que falássemos do texto bíblico no sentido de "convencer" o nosso interlocutor daquilo que estávamos falando. Obviamente que não cabia a nós "convencer", mas sim ao Espírito Santo, afinal, é Ele que nos convence do pecado da justiça e do juízo como nos afirma o texto bíblico. No entanto, algo extremamente curioso é que o Espírito Santo nunca "convencia" ninguém de algo diferente daquilo que nós acreditávamos. É como se o convencimento do "Espírito" de alguma forma corroborasse sempre a nossa fala. É como se de alguma forma Ele quisesse serrar ou esticar pessoas assim como nós queríamos que acontecesse. Lembro que achava isso muito estranho. Em 2009 já falava que talvez isso seria um grande problema ontológico e hoje ainda mantenho a minha posição daquela época.
A meu ver a posição hipermoderna do "cada um por si contando que não me perturbe", não funciona, pois aqui novamente é como se a indiferença se transformasse também em uma grande cama de pedra a qual todos devem se submeter, e isso novamente nos coloca diante de Procusto. Aparentemente o nosso desafio se torna encontrar um justo meio entre o querer que o outro seja como eu, e o ser completamente indiferente em relação ao outro. Ou seja, o desafio em um mundo onde todas as camas de pedra são criticadas se mostra o tentar aceitar o outro na sua diferença, mas sempre lembrando que toda aceitação remete a um se importar com esse outro.
Aceitar algo é uma atividade e não apenas passividade. Quem aceita o Outro, deve aceitar por livre e espontânea vontade, e para isso é preciso que haja uma disposição, uma vontade em receber esse Outro sem fazê-lo deitar em nossa cama de pedra. Se na maioria das vezes não somos capazes de quebrar a nossa cama de pedra, afinal ela foi construída ao longo de toda a nossa história, pelo menos somos capazes de não obrigar ninguém a deitar sobre ela.
Ao invés da cama, uma mesa onde dois diferentes se sentam e dialogam mostrando com isso que se importam um com o outro, mas nenhuma das partes visa subjugar o outro. Por que não dizer que esse seja um excelente caminho para pensarmos os nossos relacionamentos de amizade, os relacionamentos amorosos, o diálogo ecumênico e interreligioso?
Ao invés de seguirmos o exemplo de Procusto por que não seguimos o exemplo de Jesus que em nenhum momento tentou convencer ninguém de nada, mas ao invés disso sempre se mostrou disposto a aceitar o outro na sua diferença? Por que não aceitar o convite de Jesus que ao invés de tentar se impor por meio de um modelo, retorna aos discípulos para perguntar: "Quem vocês dizem que eu sou?" Do fechamento de Procusto em torno de sua cama de pedra de onde tinha olhos apenas para o seu modelo construído, à abertura da proposta de Jesus que culmina na cruz e se abre para todos que querem se aproximar. Talvez essa abertura seja um excelente meio termo entre o aprisionamento em torno de um padrão e a completa indiferença em relação ao outro. Talvez aqui esteja a possibilidade do justo meio que remetemos mais acima nesse texto.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015
A falta
Era o ônibus que não passava
O celular que não carregava
A carta que não vinha
A mensagem que não chegava
O telefone que não tocava
A palavra que não se ouvia
A notícia que demorava.
Era a quebra da rotina
A vida diferente
O momento que não passava
A solidão do trabalho
O ócio da existência
O medo do desamparo
Era o coração apertado
A dor que batia
O medo que rondava
A esperança que não vinha
Era tudo isso
Mas tudo isso representava apenas a falta.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014
Apóio o diferente, mas tem que ser igual a mim
Que
o Facebook e as diversas redes sociais são um convite para nos mostrarmos como
não somos já virou clichê afirmar. Provavelmente já tem até algum post ou
alguma imagem no próprio Facebook ou no próprio Twitter afirmando isso. Uma
espécie de “crítica interna” à ferramenta utilizada para tal crítica. Paradoxo
extremamente curioso.
Algo
que sempre achei extremamente interessante é que parece haver uma espécie de “ética”
envolvida no uso das redes sociais, que por mais que exacerbe o sujeito “fake”,
ele sempre convida a fazer um discurso politicamente correto, ou então, no caso
mais mainstream, fazer uma crítica ao discurso politicamente correto
demonstrando em que medida tal discurso não é nada além de uma imposição aceita
passivamente pelo senso comum.
Posso
afirmar que na minha timeline o segundo grupo é o mais constante. Isso acaba
gerando aquilo que em outro texto chamei de “homo críticus”. Esse discurso
desta suposta “ética” se manifesta de diversas formas, mas uma que acho
extremamente interessante é o discurso que vem envolvido em um suposto “apoio
ao diferente”.
Curiosamente
a pregação de "apoio ao diferente" só vale quando os meus próximos
aprovam os supostos diferentes que eu mesmo aprovo. A partir do momento que os
meus próximos aprovam os diferentes que eu não aprovo eles devem "deixar
de apoiar" o diferente que apoiam para que eu possa querer estar por
perto. Se o sujeito apoia alguém como Bolsonaro, ou orgulho de qualquer coisa,
ou qualquer coisa que lembre a direita, então ele não é digno de me ter como
amigo, afinal, ele apoia algo que eu não aprovo, mas mesmo assim eu tenho que
manter o discurso de que se deve apoiar as diferenças.
É
mais ou menos como se eu quisesse "facebookicamente próximo" apenas
aqueles que pensam iguais a mim, afinal, pra que respeitar o que pensa
diferente de mim em um lugar que posso excluir qualquer diferente a qualquer
momento? Mas claro que eu excluo o diferente para que eu possa manter o
discurso de que se deve apoiar os diferentes.
Na
realidade, parece que o que se quer realmente são pessoas que pensem iguais a
mim sem ser possível tolerar nenhuma diferença no pensamento. Narcisismo na
vida real, narcisismo na vida cibernética. Indiferença na vida real,
indiferença na vida cibernética, mas claro que mantendo um discurso
inclusivista em relação a todos os diferentes.
(Obviamente que aqui não estamos defendendo o chamado "discurso de ódio" que geralmente aparece muito inflamado quando alguns assuntos são tocados. Claro que não devemos tolerar os intolerantes, afinal isso constituiria o fim de toda a tolerância, no entanto aponto aqui que várias vezes a linha é muito tênue entre o discurso intolerante e o discurso "diferente do meu". Não raras vezes tomamos um pelo outro por não sabermos lidar com isso que aqui chamo de "diferente".)
A
meu ver, isso esconde uma dinâmica bastante hipermoderna que trato nesse
pequeno texto. Uma intolerância em lidar com essas posturas
diferentes, que longe de demonstrar uma "indisposição meramente no nível das
ideias", demonstra mais uma intolerância em relação a qualquer um que
pense diferente de mim. Obviamente que quando o portador do discurso sou eu, posso chamar isso de meramente uma "indisposição", mas quando o portador é o outro, eu chamo de intolerância. Mas venhamos e convenhamos: qual
a medida do "intolerante de verdade" e a "minha
indisposição"? Por que que no meu caso é uma "indisposição" e no
caso do diferente é uma "intolerância"? A meu ver esse tipo de
postura apenas marca a cultura da indiferença e a grande dificuldade em
lidar com o diferente.
Lembremos que na mesma dinâmica da suposta
"aceitação de tudo e de todos" o que se pretende é nada além de uma
homogeneização das formas de pensar, e isso a meu ver, é evidencia cabal da
nossa dificuldade atual de lidar com o diferente. Isso demonstra uma cultura da indiferença tipicamente hipermoderna, onde a dimensão do Outro só entra quando de alguma forma corrobora a mim mesmo. Um narcisismo levado às últimas consequências, ou melhor (na expressão da Colette Soler), um narcinismo.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014
8 anos de casados !
"Coloque marcos e ponha sinais nas estradas, Preste atenção no
caminho que você trilhou" Jeremias 31:21
Dizem que aos 8 anos de casamento se comemoram
bodas de cobre. Sempre achei meio sem sentido essas bodas, mas se alguém teve o
trabalho de catalogar e criar o sistema de bodas ele pode até ter algum valor.
O que acho interessante é que o sistema de bodas serve para colocar marcos no
caminho.
Os marcos servem como pequenos lembretes para nós
do caminho percorrido ao longo dos tempos, daí a grande importância que o texto
bíblico dá aos marcos. O texto de Jeremias que abre esse post já aponta para
isso e talvez as datas comemorativas sirvam exatamente para contemplarmos
novamente esses marcos que colocamos no caminho. Pensando assim as bodas podem
até fazer algum sentido, embora os objetos escolhidos para elas sejam altamente
duvidosos, tais como lã, papel, cobre, etc.
Nesse sentido acho que hoje é dia de “prestar
atenção” no caminho trilhado nesses 8 anos. Tem sido um caminho muito
prazeroso, cheio de aventuras, alegrias, bons momentos, mas obviamente sem
faltar os problemas, as desavenças, etc. como faz parte de toda grande jornada.
Lembrando de onde saímos e pensando onde estamos
agora realmente dá muito orgulho dessa pequena jornada até o momento. Jornada
esta que tem como melhor de tudo o poder trilhar o caminho junto com outra
pessoa que também visa o mesmo objetivo que você. Que também caminha junto
mesmo quando os momentos são difíceis.
Esta companhia do caminho é que talvez faça toda a
diferença no processo da caminhada. Para além de toda e qualquer idealização da
companhia, tendo apenas a presença de um outro que também tem tantas falhas
quanto você, posso dizer que o caminho percorrido até agora tem valido a pena.
Meu desejo é que continuemos seguindo, trilhando
sempre um ao lado do outro para que quando um fraquejar o outro esteja ali
presente para o sustentar e continuarmos olhando para frente e para trás.
Vislumbrando o futuro, mas sem nunca esquecer do passado.
Memória e esperança ! E assim seguimos.
Te amo, Priscilinha ! Hoje muito mais que há 8 anos
atrás.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014
"Não é pelo muito falar que seremos ouvidos" - Um pouco de Gilles Lipovetsky
"Assim como a idade moderna foi obcecada pela produção e pela revolução, a idade pós-moderna é obcecada pela informação e pela expressão. Somos todos Djs, apresentadores e animadores. Democratização sem precedentes da palavra: todo mundo é incitado a ligar para a central telefônica , quer contar algo a partir da sua experiência íntima, ou pode se tornar um locutor e ser ouvido. Isso vale tanto nesse caso como no dos grafites nas paredes de escolas ou no dos inúmeros grupos artísticos: quanto mais a gente se expressa, menos há o que dizer; quanto mais a subjetividade é solicitada, mais o efeito é anônimo e vazio.
Esse paradoxo é reforçado também pelo fato de que ninguém no fundo, está interessado nessa profusão de expressões, como uma exceção que deve ser levada em conta: o próprio emitente ou criador. Isto é, exatamente, o narcisismo, a expressão sem retoques, a prioridade do ato de comunicação sobre a natureza do comunicado, a indiferença em relação aos conteúdos, a assimilação lúdica do sentido, a comunicação sem finalidade e sem público, o remetente transformado em seu principal destinatário. Daí essa pletora de espetáculos, de exposições, de entrevistas, de proposições totalmente insignificantes para qualquer pessoa e que não levam em conta nem mesmo a ambiência; outra coisa está em jogo: a possibilidade e o desejo de se expressar qualquer que seja a natureza da "mensagem", o direito e o prazer narcisista de se manifestar a respeito de nada, por si mesmo, mas retransmitido e amplificado por um meio de comunicação.
Comunicar por comunicar, expressar-se sem qualquer outra finalidade a não ser expressar-se e ser ouvido por um micropúblico, o narcisismo revela, tanto aqui quanto em outros aspectos, a sua conivência com a ausência de substância pós-moderna, com a lógica do vazio." (LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio. 1983 p. 24)
"A tese do "progresso" psicológico é insustentável diante da extensão e da generalização dos estados depressivos, outrora reservados em prioridade para as classes burguesas. Ninguém pode se vangloriar de escapar; a deserção social ocasionou uma democratização sem precedente da depressão, o tédio de viver, flagelo hoje em dia difundido e endêmico. Do mesmo modo, o homem "cool" não é mais sólido do que o homem do adestramento puritano ou disciplinar. Na verdade seria mais o inverso.
Num sistema descaracterizado basta um simples acontecimento, um nada, para que a indiferença se generalize e ganhe existência própria. Atravessando sozinho o deserto, levando a si mesmo sem qualquer apoio transcendental, o homem de hoje se caracteriza pela vulnerabilidade. A generalização da depressão deve ser levada em conta não das vicissitudes psicológicas de cada um ou das "dificuldades" da vida atual, mas, sim, da deserção da res pública que foi limpando o terreno até o advento do indivíduo puro, do Narciso em busca de si mesmo, obcecado por si mesmo e, assim sendo, suscetível de enfraquecer ou de desmoronar a qualquer momento diante da adversidade que enfrenta desarmado, sem força exterior.
O homem descontraído está desarmado. Os problemas pessoais assumem, assim, dimensões desmesuradas e quanto mais os contemplamos, ajudados ou não pelos psi, menos os resolvemos. Aqui se inclui o problema existencial, o ensino ou a política: quanto mais submetidos a tratamento e auscultação mais os problemas se tornam insuperáveis. O que, hoje em dia, não está sujeito à dramatização e ao estresse? Envelhecer, engordar, enfear, dormir, educar os filhos, sair de férias... tudo se transforma em problema. As atividades elementares se tornaram impossíveis.
O tempo em que a solidão designava as almas poéticas e excepcionais terminou, aqui todos os personagens a conhecem com a mesma inércia. Nenhuma revolta, nenhuma vertigem mortífera a acompanha; a solidão se tornou um fato, uma banalidade com a mesma importância dos gestos cotidianos. As consciências não mais se definem pela dilaceração recíproca; o reconhecimento, a sensação de incomunicabilidade e o conflito deram lugar à apatia, e a própria inter-subjetividade se encontra relegada. Depois da deserção social dos valores e das instituições, é a relação com o Outro que, segundo a mesma lógica, sucumbe ao processo de desafeição. O Eu não habita mais num inferno povoado de outros egos, rivais ou desprezados, a relação se apaga sem gritos, sem motivo, em um deserto de uma autonomia e neutralidade asfixiantes.
A liberdade, a exemplo da guerra, propagou-se pelo deserto; já atomizado e separado, cada qual se torna agente ativo do deserto, amplia-o e escava-o, incapaz que é de "viver" o Outro. Não satisfeito em produzir o isolamento, o sistema engendra seu desejo, desejo impossível que, no instante em que é alcançado, revela-se intolerável: o indivíduo quer ser só, sempre e cada vez mais só, ao mesmo tempo em que não suporta a si mesmo estando só. a esta altura o deserto já não tem mais princípio ou fim. (Idem p 29,30)
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Colheitas em campos alheios

quinta-feira, 20 de novembro de 2014
Lamúrias
Ah, e essa tristeza que invade os nossos corações
Que não sabemos de onde vem nem para onde vai,
Que insiste em permanecer em nós como companheira indesejável
Que insiste em fazer de nós pequenos marionetes ao seu bel prazer.
Ah, essa angústia que não cessa,
Que nos impede de seguir
Que nos paraliza diante do mundo e diante dos nossos afazeres
Que não permite que nem por um segundo deixemos de pensar sobre ela.
Ah, esses momentos de paz que são tão distantes
Que vêm apenas em pequenos momentos e logo se vão
Que nos adianta muito pouco a ponto de duvidarmos da sua existência
Ah, nós que não temos onde esconder
Que estamos sempre diante desse triste espetáculo que nos assola
Que não encontramos saída em nenhuma atividade
Que não podemos usar nenhum escape, pois todos parecem falsos demais
A nós, que só nos resta observar e tentar compreender,
Talvez o caminho seja árduo demais que achamos que será melhor não seguir por ele
Mas no final parece indiferente seguir ou não seguir qualquer caminho
Pois sempre nos encontramos novamente com a mesma tristeza que invade os nossos corações.

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