quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Feliz Natal, amigos !





O Natal é tempo de companheirismo, reflexão, uma época do ano onde sempre somos convidados a olhar para trás e pensarmos no que vivemos durante o ano. É tempo de fazermos como Jeremias nos propõe em suas Lamentações, i.e, "Trazer à memória o que nos dá esperança" (Lm 3:21). 

Este convite é o que gostaria de trazer novamente a vocês a partir de Abraão. Este homem que como nos diz Tiago foi chamado "Amigo de Deus". (Tg 2,23; Is 41,8) E por que ele foi chamado amigo de Deus? Simplesmente porque creu em Deus e agiu de acordo com a promessa que havia recebido. Sem pestanejar , ele saiu de sua terra, da terra da sua parentela e foi para um outro lugar que ele não sabia qual. Simplesmente se fiou na palavra daquele que havia dito a ele que "de ti, farei uma grande nação" (Gn 12:2).
O exemplo de Abraão nos mostra que a fé sempre tem como pressuposto a credibilidade de quem faz a promessa. O Deus que fez a promessa à Abraão possuía credibilidade junto a este e por isso Abraão aceitou o chamado. 

Os amigos tem como característica peculiar, o de gozar credibilidade com os seus. Há, no entanto, vários tipos de amigos. Há amigos para as horas de alegria, há amigos para horas de tristezas, há amigos para qualquer hora.  Há amigos "mais chegados que irmãos" como nos diz o Provérbio. Felizes são os que possuem vários amigos, mais feliz ainda aquele que possui um grande amigo. Aquele de quem o Eclesiástico fala, a quem ele compara a um grande tesouro. 

Toda amizade para ser verdadeira demanda tempo, demanda doação, entrega, demanda às vezes abrirmos mãos de nós mesmos e ir à luta pelos interesses do outro. Esta doação está no cerne da amizade. Este se importar está no coração da verdadeira amizade.  Jesus nos disse certa vez que "ninguém tem amor maior que este,  o dar a vida pelos seus próprios amigos" (Jo 15:13). Apenas o amigo é capaz deste tipo de doação. Talvez agora possamos entender o como Abraão foi capaz de entregar Isaque quando solicitado por Deus. Por um amigo fazemos grandes sacrifícios. 

O Natal nos relembra o grande sacrifício oferecido por Deus ao homem. Jesus nascer entre nós é um exemplo de doação, um exemplo da amizade de Deus para com o homem. "Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu filho unigênito" (Jo 3:16). Esta prova de amizade de Deus deve nos inspirar a estarmos prontos à doação, ao sacrifício, ao companheirismo entre nós. Companheirismo este demonstrado pelo próprio Cristo que não nos chama mais servos, mas sim amigos. 

Que sejamos capazes de enxergar as nossas amizades como um presente vindo dos céus para nós. Como puro dom de Deus. Que a cada dia estejamos mais unidos, e que assim como Abraão, Jesus, e o próprio Deus estejamos dispostos a nos doar cada vez mais fazendo jus a este tesouro que temos que se chama amizade. 


O Natal dessa forma se coloca como um grande lembrete de que há sempre a possibilidade de que alguém caminhará junto conosco e ao mesmo tempo se coloca como um anúncio da esperança que se renova em cada novo encontro, em cada novo ano, em cada nova celebração. 

Como o nascer do sol que traz consigo a esperança de um novo dia, assim também o Natal nos inspira nessa mesma direção.

Desejo a todos um feliz Natal !



quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

O embaraço dos literalistas diante da situação política brasileira






Há sempre um grande risco em se ler o texto bíblico de forma literal. Primeiramente porque ao assumir esse tipo de postura em relação a qualquer texto facilmente caímos em pequenos labirintos dos quais não saímos facilmente, e em segundo lugar que para fazermos uma leitura literalista de qualquer texto temos que pressupor uma espécie de atemporalidade em relação ao próprio texto. Atemporalidade esta que se torna impossível, pois a própria escrita só pode ser escrita em um determinado tempo, em um determinado lugar, etc. 

Em relação ao texto bíblico muitas pessoas que conheço (Em sua maioria evangélicas) assumem uma leitura literalista. Eles acreditam piamente que o texto foi escrito por homens, mas totalmente inspirados por Deus. Acreditam que cada palavra foi ouvida e reescrita de acordo com a vontade divina, sem nenhuma influência "humana" na escrita. Dessa forma, todo texto bíblico é A palavra de Deus, e como tal deve ser seguida independente da época, da sociedade ou qualquer outra coisa. É como se de alguma forma o próprio Deus estivesse dando diretrizes seguras e definitivas para resolver qualquer situação que aparecesse daquele momento pra frente. 

Não é difícil perceber que esse tipo de atitude se mostra extremamente infantil e talvez por isso mesmo, extremamente ingênua. Talvez uma tentativa hercúlea de negar as contingências da vida em nome de um discurso último sobre a realidade. Talvez um desejo implícito aí de que nada mude na ordem das coisas, um desejo de certeza inabalável que não necessita lidar com o diferente, mas pode ser vivido hermeticamente, fora do tempo, uma espécie de "vida eterna" às avessas. No entanto, como é típico das atitudes infantis, tal desejo carece de uma consistência e até mesmo de uma coerência quando o mundo da vida se impõe sobre o sujeito. Em diversos momentos esse indivíduo que assume uma leitura literalista se vê em xeque em relação àquilo que visa defender. 

Retirar do texto bíblico a sua temporalidade, o seu contexto social, o seu povo que fala a partir do que vive e tentar aplicar atemporalmente o que está ali é incorrer naquilo que no início do texto chamamos de "labirintos difíceis de sair". Como um pequeno exemplo do que falo, vamos olhar a situação política brasileira e confrontar com o famoso "texto político" de Paulo super aclamado por diversos pastores quando querem legitimar a sua "autoridade". 

Já apontei em outro texto o fato curioso de que muitos evangélicos assumiram durante as eleições um caráter mais conservador e isso continua sendo demonstrado ainda hoje, mesmo depois de passadas as eleições presidenciais. Esse conservadorismo tem muito a ver com essa leitura literalista do texto do que falo aqui nesse texto. Vários evangélicos que vejo (ou leio nas redes sociais) assumem um discurso contra o governo atual e vários deles fazem campanhas e mais campanhas incitando a participação em marchas, em encontros, usam hashtags das mais diversas do tipo #foraPT #Impeachment, #ForaDilma, etc como forma de demonstrar a insatisfação com o governo petista e o atual governo da Dilma. No entanto, curiosamente não percebem que ao assumir esse tipo de postura se colocam contra a sua própria visão literalista do texto bíblico. 

Paulo afirma em Rm 13,1-7 que 



"Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas.
Portanto, aquele que se rebela contra a autoridade está se colocando contra o que Deus instituiu, e aqueles que assim procedem trazem condenação sobre si mesmos.
Pois os governantes não devem ser temidos, a não ser pelos que praticam o mal. Você quer viver livre do medo da autoridade? Pratique o bem, e ela o enaltecerá.
Pois é serva de Deus para o seu bem. Mas se você praticar o mal, tenha medo, pois ela não porta a espada sem motivo. É serva de Deus, agente da justiça para punir quem pratica o mal.
Portanto, é necessário que sejamos submissos às autoridades, não apenas por causa da possibilidade de uma punição, mas também por questão de consciência.
É por isso também que vocês pagam imposto, pois as autoridades estão a serviço de Deus, sempre dedicadas a esse trabalho.
Dêem a cada um o que lhe é devido: Se imposto, imposto; se tributo, tributo; se temor, temor; se honra, honra." Romanos 13:1-7


Se o texto bíblico deve ser lido de forma atemporal, literal, como prescrição divina em cada letra, alguém que assume tal tipo de postura não deveria nunca assumir um tipo de discurso que vai contra a autoridade do país, afinal o próprio texto diz que toda autoridade vem de Deus e por isso se deve honrar os dirigentes.
Das duas uma: Ou se adota uma postura realmente literalista ou então assume o discurso que pede o #foraDilma. As duas coisas se tornam inconciliáveis. No entanto, como crianças que cada hora defendem uma determinada posição, vários evangélicos parecem ignorar a falta de consistência entre os dois discursos e continuam a defender ao mesmo tempo uma leitura literalista do texto e defender o impeachment da presidenta sem nenhum aparato constitucional, mesmo que uma coisa necessariamente exclua a outra. Este exemplo do texto de Romanos é apenas um dentre vários outros que poderiam ser colocados aqui sobre os mais diversos assuntos, tanto políticos, quanto teológicos. Para um exemplo do ponto de vista teológico aponto para um outro texto que escrevi há algum tempo. (Texto aqui)

Um último ponto extremamente curioso é o fato de que o texto de Romanos é utilizado de forma literal apenas quando visa defender a autoridade do pastor ou do líder de uma determinada denominação ou seita. Nesse momento o texto de Paulo é lido, relido e nada, absolutamente nada é capaz de tirar da cabeça do indivíduo de que a sua posição é corroborada por Deus e por isso se torna inquestionável. Basta lembrarmos de diversos vídeos de Silas Malafaia em que ele afirma para "não tocar no ungido do Senhor" usando exatamente o mesmo texto de Romanos 13. Paradoxalmente o Silas Malafaia é um dos primeiros a fazer fila diante de protestos contra a autoridade do país eleita democraticamente. 

Os diversos maus usos do texto bíblico deveria apontar para a questão de se realmente o texto bíblico visa ser um livro de dicas sobre o que fazer ou se é um livro que aponta para outra direção que não um manual em que se encontra respostas para tudo. Tentar encontrar justificativa bíblica para tudo é não compreender a real dimensão do texto bíblico, é não entender que o texto bíblico aponta para a relação do homem com Deus e de Deus com o homem. O texto bíblico não visa dizer tudo sobre tudo, não visa resolver questões políticas, morais, sociais, etc. Usar o texto bíblico para justificar ações que são totalmente condicionadas por conjunturas históricas, sociais, políticas é fazer um mau uso do texto bíblico e isso não deve ser incentivado.

Fica portanto o convite à reflexão e um convite à coerência, afinal, pode até estar faltando amor no mundo, mas que falta muita coerência, isso é inegável.






segunda-feira, 30 de novembro de 2015

"Salva-te a ti mesmo e a nós" Lc 23,29



"Se tu és o Cristo, salva-te a ti mesmo, e a nós" Lucas 23:39

"Médico, cura-te a ti mesmo; faze também aqui na tua pátria tudo que ouvimos ter sido feito em Cafarnaum." Lucas 4:23

Uma das coisas que muitas vezes me impressiona é o quanto somos extremamente incoerentes diante de diversas situações em que se esperaria muito mais de nós. Diversas vezes dizemos aos outros o que fazer, como elas poderiam agir, e várias vezes estas outras pessoas nos agradecem, ressaltam o quanto somos bons em ouvir, dar conselhos, propor soluções, etc. Ficamos lisonjeados com tamanhos elogios e começamos a nos sentir realmente muito bem em saber que podemos ajudar aos outros em seus momentos de dificuldades, em suas angústias, em suas questões que podem soar para alguns tão bestas, mas para quem sofre se torna uma questão de vida ou morte.

No entanto, quando somos nós mesmos que estamos na situação em que precisamos nos posicionar, precisamos ouvir os conselhos que nós mesmos diversas vezes já demos aos outros, nessa hora é como se tudo se apagasse e uma dinâmica extremamente infantil, pueril nos dominasse e nos sentimos extremamente impotentes para fazer aquilo que estamos cansados de sugerir que os outros façam. Nossa coerência vai embora com muita facilidade nessas horas. Ouvimos as mesmas palavras que o ladrão na cruz diz a Jesus: "Se tu és o Cristo, salva-te a ti mesmo e a nós", ou seja "por que não faz você aquilo que diversas vezes sugeriu que os outros fizessem?" "por que não te salvas a ti mesmo nesse momento de angústia?", estas e outras perguntas nos são feitas, e são feitas até por nós mesmos que em um completo apagão parecemos esquecer daquilo que sabemos.

Por que não fazemos em nossa pátria aquilo que fizemos em Cafarnaum? Por que diante dos nossos problemas não fazemos uso dos conselhos que demos aos outros? É como se de repente nada fizesse sentido e tudo se esvai como o vento. A partir daí o que resta é apenas lamúrias meio sem sentido, um querer dizer sem saber o que é, um medo desproporcional diante de coisas que não tem motivo algum para gerar medo, um tentar entender diante de um caos aparente aquilo que nos leva a determinadas situações. A partir daí é como se quase nada fizesse mais sentido.

O medo está no "se" da primeira citação. É como se diante das incertezas da vida nos puséssemos como crianças que precisam se certificar de tudo, que não aceitam os precalços que a vida nos prepara. É como se diante do estoicismo aparente se mostrasse um real que por remeter à dúvida escapa a toda dimensão simbólica. O "se" que condiciona tudo, que condiciona a própria salvação, nunca pode ser suprimido, o "se" sempre estará lá diante de nós. A ilusão é acreditar que o "se" pode de fato ser suprimido. Por isso que diante do óbvio, diante da proposta de "viver o presente de forma leve" o coração se acalma, o refrigério vem e as coisas adquirem uma paz momentânea. O constante "se" da vida é um aprendizado. Por mais que queiramos sempre eliminá-lo como forma de garantir uma ordem, como forma de garantir uma segurança, ele se mostra irredutível, ele se mostra presente.

Nesta dinâmica nos encontramos como Jesus entre os ladrões e diante do povo. Questionado sobre sua identidade e sobre os seus atos. Confrontado entre a sua fala e sua ação. Ao povo ainda é possível responder com exemplos como na sequencia do texto de Lucas 4 é feito, mas e aos ladrões no momento da dor, da crucificação e da agonia? O que responder diante de tanto sofrimento? Não há ato nenhum além da morte que possibilita a resposta à afirmação que condiciona a identidade naquele momento. Não há palavras pra justificar, argumentar, expor quem de fato é ou não é o Cristo; há apenas um silêncio seguido de morte, seguido de um escurecer dos céus que testemunha aos outros o porque não ser possível "salvar a si mesmo e a nós".

Se salvasse a si mesmo condenaria a todos os outros, então por amor resolve salvar todos os outros e condenar-se por nós. Diante do "se" elementar, nada mais que um salto de fé. Um "entregar o espírito" em paz, confiando que alguém já o havia acolhido..

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Um mundo sem ideia





“O materialismo democrático apresenta como um dado puramente objetivo, como o resultado de uma experiência histórica, o que ele chama de “fim das ideologias”. O que subjaz aí é uma violenta injunção subjetiva cujo conteúdo real é: “viva sem Ideia”. Mas essa injunção é incoerente.

Que essa injunção empurra o pensamento na direção do relativismo cético, já se tornou uma obviedade. É-nos dito que esse é o preço a pagar pela tolerância e respeito ao Outro. Mas dia após dia nós vemos que essa tolerância é apenas um outro tipo de fanatismo, porque ela só tolera a sua própria vacuidade. O ceticismo genuíno, aquele dos Gregos, era na verdade uma teoria absoluta da exceção: ela colocava as verdades num lugar tão alto que acabava por considerá-las inacessíveis ao frágil intelecto da espécie humana. Contestava assim a principal corrente da filosofia antiga, que argumentava que apreender o Verdadeiro é a vocação daquela parte imortal do homem, do excesso inumano que vive em nós. 

O ceticismo contemporâneo - o ceticismo das culturas, da história e da auto-expressão - não é desse mesmo calibre. Ele apenas se conforma à retórica dos instantes e à política das opiniões. Assim, ele começa por dissolver o inumano no humano, e depois o humano na vida cotidiana, e, por fim, a vida cotidiana (ou animal) na atonalidade do mundo. É dessa dissolução que nasce a máxima negativa “viva sem Ideia”, que é incoerente porque ela não tem nenhuma ideia do que viria a ser uma Ideia.

É por essa razão que o materialismo democrático busca destruir tudo o que é externo a ele. Como nós notamos, trata-se de uma ideologia violenta e de guerra. Como todo sintoma mortificante, essa violência emerge de uma inconsistência essencial. O materialismo democrático se entende como um humanismo (dos diretos humanos, etc).

Mas é impossível possuir um conceito do que é ‘humano’ sem lidar com a inumanidade (eterna, ideal) que autoriza o homem a se incorporar no presente sob o signo do traço da transformação. Se falhamos em reconhecer os efeitos desses traços, nos quais o inumano leva a humanidade a exceder seu ser-aí, será necessário, para manter uma noção puramente animal, pragmática, da espécie humana, aniquilar tanto esses traços quanto suas consequências infinitas.

O materialismo democrático é o inimigo assustador e intolerante de toda vida humana - isso é, inumana - digna do nome.”

BADIOU, Alain. (Lógicas dos Mundos. O ser e o evento 2. C, 7) Tradução de Gabriel Tupinambá.






quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Se passas, amo-te como quem pode perder-te !








Se passas, amo-te como quem pode perder-te !

Uma belíssima contribuição de Freud ao tratar em um texto de 1916 sobre a transitoriedade é mostrar que a transitoriedade das coisas não deve nos remeter à angústia de que aquilo não mais estará entre nós, mas deve nos lembrar do valor inestimável que determinada coisa ou pessoa adquire para nós enquanto a temos. 

Sofrer pela ausência inevitável que um dia acontecerá, pela transitoriedade da vida, que por definição é finita, é perder toda a beleza que a própria transitoriedade nos aponta. É pelo fato de acabar algum dia que as coisas carregam sua beleza. Assim como Freud coloca, é o fato do inverno levar consigo toda a beleza da primavera que esta deve ser vivida em toda a sua intensidade enquanto está conosco. Deixar de aproveitar a primavera porque o inverno chegará em breve faz-nos perder a dimensão do encanto que os momentos belos da vida nos proporcionam.  

A nossa finitude se mostra como um convite a contemplar a beleza do que muda, a beleza do que se transforma a cada estação, a beleza dos rostos que envelhecem trazendo consigo novas belezas que desconhecíamos. A nossa própria transitoriedade é um convite não a fixarmos ao presente de forma irresponsável, mas a prestarmos atenção ao presente como o tempo que temos para contemplarmos a beleza que nos circunda e nos envolve.

Diante do mal que assolava Freud na época da escrita do texto de 1916 (A 1ª Guerra mundial) e os diversos males que nos assolam hoje, mantenhamos a esperança de que a mesma transitoriedade que carrega consigo a beleza das coisas abre para nós a possibilidade de pensar que os males não são definitivos, que eles também são transitórios...

A transitoriedade se mostra como possibilidade de esperança, e talvez por isso, possibilidade para a beleza. 









terça-feira, 3 de novembro de 2015

Um arrastar dos dias...


 




Por que não vens como a relva que cai mansamente sobre todas as coisas?
Por que te demoras em trazer conforto aos corações aflitos?
Por que diante do desespero e da dor não te mostra a nós, mas se esconde?
Por que ?
Será que haverá explicação possível para as angústias que nos assolam?
Que insistem em chegar sem serem convidadas?
Que fazem morada no mais íntimo do nosso coração?
Será que essa é a nossa condição enquanto humanos?
Será que a ideia da angústia como revelação estupefata do nada que nos assola é a mais correta?
Como não cair em um grande abismo diante das diversas assolações que aparecem?
E se nem mesmo abismo houver, mas o mais aterrador nada diante de nós?

Claro que é sempre possível se esconder dessas questões, é sempre até aconselhável não se deter muito sobre elas para que o desânimo não tome conta do coração. Mas se aquilo nos invade, como fechar as portas para esse hóspede não desejado?
E se esse hóspede já for um morador fixo da casa? E se isso que parece vir de fora não vier do mais íntimo a nós mesmos?
Curioso pensar que o espaço acima de nós, os incontáveis planetas, as incontáveis estrelas são para nós extremamente desconhecidos, assim como as profundas águas, as zonas abissais onde reina a escuridão e seres desconhecidos. Nesse meio entre duas grandes icógnitas nós habitamos sem saber muita coisa sobre muita coisa. E em nós também habita uma imensidão desconhecida. Acima de nós, abaixo de nós, em nós, somos rondados pelo mistério e isso talvez seja o que mais nos espanta durante a vida.

Médico, cura-te a ti mesmo ! (Lc 4,23)
Por que as mãos e as palavras que a tantos já ajudaram em nada auxilia agora em momento de tamanha angústia e dor?
Por que não diz para si aquilo que sempre disse aos outros?
Por que para ti as palavras são tão sem efeito? Será que se considera melhor que os outros a ponto de não conseguir nem mesmo se ajudar?  
Será que a dor é tão grande que nenhuma palavra nem sequer toca a ferida?
Mas quem será capaz de, de fato, aplacar essa dor senão eu mesmo?
Como Jó clamo para que haja auxílio e o que se ouve são apenas mais perguntas, mais indagações, convites a vasculhar outras dimensões de si mesmo. Nenhuma resposta.
São tão tristes os dias, as alegrias se mostram tão pequenas que qualquer hora em que aparecem me agarro a elas como se nunca mais fossem voltar. Nesse afã de manter as pequenas felicidades perto é como se fizesse de tudo para que elas não ficassem, pois o empolgar-se demais soa estranho, soa desespero, faz com que se queira distância de quem lida assim com pequenas coisas.

E assim o caráter obsessivo vai crescendo, e quem mais sofre com isso senão os mais próximos? A quem mais é dado o peso de suportar tudo isso senão àqueles em quem confiamos? Mas até que ponto eles também não sucumbirão diante de tão árdua tarefa? Será honesto com eles também colocar sobre ombros já tão cansados tamanho peso e dor? Oh tão triste dinâmica essa desses dias ! Tamanho sofrimento que invade de forma tão profunda que nos faz perder a calma, que nos faz querer apenas dormir para que nada mais nos incomode.
Pra que tentar ser forte diante de um inimigo tão poderoso? Por que não aceitar a fuga como única solução possível e correr para longe dos problemas se fixando em tarefas e mais tarefas? Por que não tentar esquecer esses pensamentos e focar no que não faz sentido, ou faz sentido apenas provisório?

Há, no entanto, uma voz que ressoa. Uma voz que insiste em dizer: "Estou sempre aqui!". Ah como admiro aquela voz. Como valorizo aquelas três palavras. Como me apego a elas nos dias mais árduos. Talvez seja no repetir incessante dessa voz em minha mente que haja um pequeno fio que me impeça de sucumbir naquele abismo que tudo visa sugar. E quantas outras vozes não serei capaz de ouvir dizendo a mesma coisa? Se pelo menos os outros soubessem do turbilhão de coisas que acontecem, se eles pelo menos tivessem noção de que por trás de tamanha tranquilidade habita uma desolação inexplicável que avança durante os dias e faz com que me arraste dia após dia. Se pelo menos eu fosse capaz de clamar por essas outras vozes para que elas se fizessem ouvir para mim. Se pelo menos eu tivesse força para isso...




quarta-feira, 28 de outubro de 2015

A oferta da viúva pobre (Lc 21,1-4) - Pequena devocional






Em Lucas 21,1-4 conta-se a história da oferta da viúva pobre que entra no templo para depositar duas moedinhas enquanto os ricos entravam doando altas quantias de dinheiro. Jesus adverte os discípulos afirmando que a viúva deu mais que todos os outros, pois ela deu aquilo que tinha para o seu sustento enquanto os ricos davam do que lhes sobrava. 
A questão financeira da oferta, do compromisso com o templo é algo muito facilmente assimilável pela própria história e não raras vezes se ouve diversas pregações (perversas várias vezes) afirmando que a pessoa deve "cortar na carne e não apenas na gordura" na hora de ofertar, mas a meu ver o exemplo da viúva tem uma dimensão um pouco mais ampla que apenas a questão financeira. 

Para mim, podemos entender o exemplo da viúva vinculado à nossa experiência diante do outro. A atitude da viúva e a atitude dos ricos no texto podem ser entendidas como duas formas possíveis de lidar com a demanda do outro. Se por um lado os ricos tratam a demanda do ponto de vista meramente formal, a viúva encarna a assimilação do outro em sua dimensão mais íntima e isso a colocaria como aquela que foi capaz de "dar muito mais que todos".

Diante de um determinado problema que o outro nos apresenta não raras vezes nos apresentamos como os ricos no texto. Procuramos tratar a questão do outro de maneira distante, como se aquilo não nos dissesse respeito. Vamos até lá "doar" o que nos sobra para apenas cumprir com nossa obrigação social ou familiar. É nesse momento que surge a pergunta meramente formal pra saber se está tudo bem, pra saber como andam as coisas, etc. Nada ali nos move em direção ao outro e várias vezes torcemos para que o outro nem use de honestidade para conosco, pois isso nos demandaria um tempo que não estaríamos dispostos a doar. O mecanicismo da relação se mostra evidente assim como o mecanicismo daqueles que iam aos gazofilácios depositar suas ofertas. Iam apenas cumprir a lei que determinava a doação de ofertas ao templo, mas nada ali os comprometia com a causa. Era puro formalismo. 

Diferentemente, a viúva que doa tudo o que tinha se mostra como um modelo para pensarmos a nossa relação com o outro. Diversas vezes podemos acreditar que aquilo que doamos ao outro em nada o ajuda, em nada coopera com a sua situação, em nada o motiva a dar novos passos, e não raras vezes nos sentimos um pouco incompetentes por não sermos nós mesmos que propiciaremos a saída do outro da sua angústia, da sua tristeza, do seu desânimo. Um senso de responsabilidade nos toma de uma forma um pouco estranha e acreditamos piamente que nossas "duas moedas" em nada ajudará o outro a lidar com seu desamparo e com a sua tristeza. Jesus, no entanto, nos mostra que o valor não está na "quantidade" e aqui, nesse caso específico, nem mesmo na "qualidade" do que se doa, mas apenas no simples ato de se dispor a doar, no simples ato de "doar tudo o que se tem". 

Uma vez que na história a oferta é dada a Deus, o autor do evangelho faz questão de ressaltar que apenas Deus (no caso Jesus) é capaz de saber qual o teor, ou o que move os sujeitos em suas atitudes. Apenas Jesus seria capaz de "avaliar" se os ricos dão do que sobra e a viúva dá tudo o que tem, ou seja, apenas aquele que recebe a oferta é capaz de responder ao nosso ato, e só cabe a esse outro "julgar" se o que se doa é de fato "sobra" ou "tudo o que se tem". Fica bastante claro que para esse "julgamento" acontecer é preciso que uma dinâmica ocorra. A intenção pura do sujeito em relação ao outro é o que permitirá a diferenciação entre a oferta meramente formal da pergunta desinteressada, da pergunta sincera em que o sujeito se compromete de fato com o outro.

Assim como Jesus é capaz de afirmar a supremacia da oferta da viúva em relação a oferta dos ricos, é sempre o outro que será capaz de dizer o teor daquilo que nós oferecemos a ele. Se a oferta que damos a esse outro é uma oferta de darmos "tudo o que nós temos", uma oferta em que o que se oferece é muito mais do que um mero formalismo, mas a nossa própria alma, nossos anseios, nosso comprometimento com o outro, nossa preocupação, nosso desejo, então estamos próximos da oferta daquela viúva que dá tudo o que tem, então podemos "da nossa pobreza" tirar o mais puro ofertar, e isso nos dá a sensação de que a nossa responsabilidade para com o outro está sendo cumprida de forma simples, mas pura.

A oferta da viúva nos remete, portanto, à nossa dimensão de estarmos várias vezes em posição de ofertar algo a um outro. Essa nossa oferta na medida em que é "tudo o que temos" se mostra como uma oferta singular capaz de superar  os mais diversos formalismos, os mais diversos profissionalismos que se mostram na maioria das vezes extremamente mecânicos para o outro e várias vezes pouco o ajuda em suas situações. O se importar a tal ponto de "da sua pobreza" ser capaz de "dar tudo o que se tem" é algo que nenhuma outra oferta é capaz de alcançar. Por isso que a meu ver a oferta da viúva se sobrepõe à oferta dos ricos. A viúva é capaz de se preocupar genuinamente com o outro a quem oferta, e nesse sentido, sua pobreza se transforma em riqueza e sua atitude simples adquire um valor inestimável.

Nosso desafio é sermos como essa viúva pobre diante da demanda do outro, é estarmos dispostos a doar tudo o que temos para que possamos ser refrigério na vida do outro, para que nossas pequenas palavras, nossos pequenos gestos sejam sempre os mais honestos possíveis, longe de meros formalismos ou mecanicismos, para que assim toquemos o outro e sejamos instrumentos de bênção para aqueles que passam por nós. O convite é para que também ouçamos sempre o outro naquilo que ele nos responde, pois aquilo que para nós é sem valor, é "nada" pode significar para o outro muita coisa, pode significar "tudo" em determinados momentos. Assim, da nossa pobreza aparente surge um grande tesouro para o outro, e isso não é pouca coisa.