quinta-feira, 23 de junho de 2016

Aquele segundo evanescente: A Eternidade homeopática






Ah, se ali atrás daquela serenidade fosse permitido ver todo o peso do mundo carregado sobre aqueles ombros caídos. Se diante dos outros pudesse aparecer as chagas de um coração várias vezes triste e desolado diante da falta de alegria do mundo. Não fossem os olhos, que alguns dizem ser a janela da alma, a denunciarem tamanha incompletude, ninguém diria que ali bate como um martelo uma dor dilacerante. Não fosse os pequenos sinais dados a conhecer a apenas alguns mais próximos, ninguém desconfiaria. 

Como um Sísifo que vai subindo a montanha tendo a pedra sobre seus ombros; Empurra-a montanha acima como quem sabe ser a sua única tarefa. Empurra-a sobre seus ombros como quem está fadado a repetir ad infinitum tamanho desgosto. Mas até Sísifo por algum momento é capaz de esquecer a dor do mundo e a dor de ser quem se é. Até ele é capaz de se sentir orgulhoso por estar ali fazendo aquele trabalho sem sentido. 
Naquele momento, ali quando se esquece, naquele segundo evanescente, é como se tudo se fizesse novo e até o peso da grande pedra é esquecido. Naquele momento a eternidade se faz presente, pois o que define o momento eterno nunca é a sua duração (inconsistência puramente lógica, mas de caráter poético), mas o desejo de que aquilo permaneça para sempre. Aquele segundo, por mais rápido que seja, alivia Sísifo que agora é capaz de voltar à sua labuta inglória. 

"Num abrir e fechar de olhos" (I Cor 15,52) é a versão cristã do que chamamos acima de segundo evanescente, ou seja, em um mero ir e vir das pálpebras pode ser dita toda a esperança cristã até mesmo para o apóstolo Paulo, pois é  em um segundo evanescente que, segundo o texto, seremos capazes de esquecer todo o sofrimento do mundo para adentrarmos na eternidade. O abrir e fechar dos olhos (que é um movimento involuntário do corpo) parece apontar para a curiosa teologia da graça cristã. Graça que a todos abarca. Ali, onde não temos domínio sobre o executar, ali ela se revela mostrando-se como salvação vinda de Deus, como dom imerecido dado a todo homem. 

O segundo evanescente que nos faz esquecer do sofrimento diário é o momento buscado por nós todos os dias, o tempo todo, e que o conceito de "ressurreição" no cristianismo visa dar conta dessa busca de uma vez por todas. Assim como o piscar de olhos, o segundo evanescente de Sísifo também dura pouco, mas mesmo assim acredito que nunca nos cansaremos de esperar por ele, ou para os mais ativos, fazê-lo acontecer diante de nós. Como aquela árvore que Jó nos diz ser melhor que o próprio homem, pois com o cheiro das águas ela pode brotar, assim também aquilo que chamamos de segundo evanescente pode se colocar como aquele cheiro das águas que traz consigo a possibilidade do renovo diante de todo aparente  absurdo do mundo.



quarta-feira, 15 de junho de 2016

Did God send the shooter?







Recebi o seguinte pedido de uma pessoa muito querida: 

"Oi, Fabiano! Gostaria de provocá-lo a escrever um texto sobre os crimes gerados pela intolerância e o julgamento do outro. Devido aos últimos acontecimentos, penso que a humanidade caminha em círculos. Um abraço!" 

Esse texto é um esforço de responder a esse pedido. 




Vós não sabeis de que espírito sois ? (Lc 9,55)

Diante do cenário vivido por nós em que a religião ganha cada vez mais espaço na vida pública é interessante pensarmos em que medida algumas ações estariam ou não ancorados nos princípios defendidos por estas religiões. Os seus textos sagrados, quando lidos de forma atenta, parecem nos mostrar outra coisa que não os discursos de ódio propagados todos os dias entre nós. Um caso que teve muita repercussão recentemente foi o caso do atirador em Orlando que matou cerca de 50 pessoas em uma boate gay nos EUA. 

O crime já foi caracterizado tanto como "homofobia" quanto como "atentado terrorista", o que obviamente não impede que sejam as duas coisas ao mesmo tempo. É bem plausível pensar em um ataque terrorista promovido por uma pessoa homofóbica e é interessante pensar quais os interesses envolvidos em classificar um ato bárbaro como esse como uma opção ou outra. Curiosamente qualquer que seja a "motivação" aceita para o crime, ambas podem ser justificadas como sendo "vontade divina" de um deus que não consegue lidar com as diferenças, ou melhor, vontades de um deus intolerante. 

Se adotarmos a questão do ponto de vista do "ataque terrorista" fica claro que o atirador tinha em vista uma noção deturpada da Jihad islâmica e muito provavelmente agiu em nome dessa noção deturpada se colocando como mártir contra os infiéis exercendo a "justiça divina". Da mesma forma se pensarmos que se trataria de crime de motivação homofóbica a mesma dinâmica se repete e o atirador se sente como uma espécie de "enviado de deus" para exercer justiça contra os que praticam "coisas abomináveis aos olhos de Deus". Novamente uma leitura deturpada só que agora não da noção de Jihad e vontade de Alá, mas do texto bíblico e a suposta vontade do deus cristão. Percebe-se que as duas motivações  propostas para o crime (ato terrorista, homofobia) desembocam no mesmo lugar que é a noção de que se exerce algo em nome da chamada "vontade divina", e isso aponta para  a dificuldade de compreender o que está por trás das mensagens dos textos sagrados, o que ele visa nos revelar, fazendo assim um uso privativo de tais textos por meio de leituras fundamentalistas.

Aqui é interessante notar como que as religiões monoteístas e sua visão linear da história tem uma propensão a um caráter bélico. No judaísmo e no islamismo isso se mostra muito facilmente, ao passo que no cristianismo tal proposta se mostra de forma um pouco mais velada, mas ainda assim aparece. Basta lembrarmos os diversos apocalipses escritos no primeiro século para isso se mostrar nitidamente para nós. À medida que o tempo for passando e o fim for se aproximando mais e mais o mal mostrará a sua face e as intervenções divinas serão vistas de forma mais nítida. Talvez aqui esteja uma possível justificativa para o apoio encontrado entre alguns evangélicos do acontecido em Orlando. A visão compartilhada sobre o desenrolar da história corroboraria atos violentos... (estranho, mas possível...)

O versículo que propus para abrir essa pequena reflexão aponta para um evento em que, depois de saírem da experiência da transfiguração, Tiago e João se encontram diante de uma aldeia de samaritanos que se recusam a receber Jesus que estava indo para Jerusalém. Diante de tal recusa, Tiago e João propõem uma saída bastante enérgica e perguntam a Jesus: "Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma, como Elias também fez?" Jesus obviamente acha aquela pergunta muito estranha e lhes pergunta: "Vós não sabeis de que espírito sois?" Ou seja, há uma diferença enorme entre a concepção de Deus proposta por Elias e a concepção de Deus proposta por Jesus. Jesus nessa hora ensina a tolerância, lhes afirma que "o filho do homem não veio para destruir a vida dos homens mas para salvá-las." (Lc 9,56), ou seja, o Deus que Jesus procura anunciar não está interessado em eliminar os inimigos, mas em salvá-los.

Na contemporaneidade a noção de tolerância se torna uma faca de dois gumes, pois ao mesmo tempo que se fala cada vez mais de tolerância, mais se vê atos que demonstram que tal noção se dá apenas em um nível discursivo e muito pouco no nível "prático". Em nome de uma suposta tolerância universal o que se vê é um novo tipo de fanatismo que dialoga de forma constante com a intolerância, pois o discurso da tolerância universal aponta apenas para a vacuidade hipermoderna que não dá conta de lidar com o diferente e no lugar disso propõe uma homogeneização das formas de pensar. Como diria Sponville, não se pode tolerar os intolerantes, pois isso aponta para o fim da própria tolerância. Na dinâmica da suposta "aceitação de tudo e de todos" evidencia-se de forma cabal a nossa dificuldade atual de lidar com o diferente. Isso demonstra uma cultura da indiferença tipicamente hipermoderna, onde a dimensão do Outro só entra quando de alguma forma corrobora a mim mesmo. Um narcisismo levado às últimas consequências, ou melhor (na expressão da Colette Soler), um narcinismo misturado com um relativismo cético.

Para além das "motivações de caráter sexual e suas repressões" já propostas por diversos jornais, o caso do atirador em Orlando aponta para uma intolerância em lidar com essas posturas diferentes, que longe de demonstrar uma "indisposição meramente no nível das ideias", demonstra mais uma intolerância em relação a qualquer um que pense diferente. Quando esse tipo de postura encontra uma justificativa em algum texto sagrado (Bíblia e Corão nesse caso) o cenário se torna extremamente propício para que o atirador se sinta justificado diante das medidas extremas que pretende tomar. Um fato curiosíssimo foi a igreja batista de Westboro sair às ruas com cartazes cujos dizeres o título desse texto faz menção. O fato de uma igreja evangélica se colocar a favor de tais atos nos mostra que tais leituras que motivaram o atirador não são "casos isolados", mas se mostram cada vez mais frequentes tanto na religião cristã quanto na religião islâmica. O fundamentalismo religioso pode ser encarado como uma forte tendência hipermoderna e pode ter como possível explicação a ausência de referenciais simbólicos a que estamos submetidos em nossa "sociedade líquida". 

O nosso cenário atual é extremamente conturbado. De um lado há um certo discurso normativo de uma tolerância universal aliado a um relativismo moral que afirma que todas as posições devem ser aceitas pelo simples fato de serem posições de um indivíduo dotado de razão e qualquer tipo de crítica ou juízo de valor devem ser evitados. Por outro lado temos os fundamentalismos religiosos que com suas leituras herméticas dos textos sagrados e suas  pregações de caráter bélico encaradas como verdades reveladas por deus motivam crimes em diversos países. Nesse cenário fica extremamente complicado emitir um juízo sobre nossa situação a não ser que elejamos um valor pelo qual estejamos dispostos a lutar, e tal cuidado na maior parte das vezes não é levado em conta de forma que julgamentos precipitados são emitidos toda hora. Talvez a ânsia de dar uma explicação para eventos que nos atormentam leve a emitir juízos várias vezes tão rasos e sem a devida reflexão. 

Analisar a época em que se vive é extremamente complexo, pois nos encontramos no olho do furacão com tudo girando ao nosso redor de forma que o distanciamento necessário para uma leitura mais "isenta" se torna impossível, no entanto, não podemos nos eximir de tentar compreender os fatos que nos cercam, mas sempre evitando julgar precipitadamente o que não conhecemos. Quando o assunto envolve temas religiosos os julgamentos precipitados são quase a tônica. Basta acontecer algum evento ligado à religião para que apareçam discursos de ódio generalizando as religiões afirmando que elas são "ópio do povo", que "todas deveriam acabar", etc. E curiosamente esse tipo de discurso não vêm de pessoas não esclarecidas, mas geralmente é no meio acadêmico que tais discursos simplistas encontram maiores moradas. Não acredito que tais julgamentos precipitados sejam uma boa resposta para problemas tão complexos. É preciso indagar diversas coisas, e uma delas, com certeza, é o papel da religião no mundo contemporâneo e ao mesmo tempo, o que se pode entender por religião no atual cenário. 

O acontecido em Orlando é, de fato, muito triste e deve nos fazer refletir sobre o impacto do discurso religioso na nossa época. A religião entendida como uma forma do homem se colocar diante do mundo, entendida como um possível norte para o sujeito, entendida como algo capaz de balizar o indivíduo diante das intempéries da vida não deve ser justificativa para atos que atentem contra a vida, mas infelizmente o que vemos é uma deturpação da religião promovendo discursos que incitam a violência e o menosprezo pelo diferente. Ao invés de celebrar a vida e promover a alegria, os discursos religiosos vão promovendo a morte e a tristeza. Que religião é essa que se alegra com a morte do planeta e dos seres humanos? Não é a religião islâmica e nem a religião cristã. Ambas são religiões pacíficas que com certeza condenam atos como o acontecido em Orlando.

Did God send the shooter? Absolutamente não. 

domingo, 12 de junho de 2016

Oba ! Um texto do Veliq sobre relações afetivas !








Em qualquer tipo de relacionamento afetivo o grande desafio é sempre conseguir lidar com o fato de que a forma que o outro resolve demonstrar o seu amor por nós pode diferir bastante da forma que nós demonstramos o nosso amor para com ele. A tentação aqui, se percebe facilmente, é evitar a todo custo a figura de Procusto, pois tal figura, além de gerar em nós expectativas que não serão correspondidas da forma que queremos, ainda mostra que caminhamos pouco em direção à aceitação do outro enquanto indivíduo dotado de liberdade de escolha. 

Por mais que falemos, expomos, justificamos nossas razões, evidenciamos a importância de determinados gestos que para nós são significativos, ainda assim caberá sempre ao outro atender ou não a essa demanda. E a meu ver, quanto mais nos colocamos no papel daquele que cobra determinada ação do outro, mais demonstramos para ele a nossa carência afetiva e a nossa dependência dele. 

Esse movimento último é também extremamente curioso na medida em que a princípio não há nada de errado se mostrar dependente, em alguns aspectos, de outra pessoa; em vários momentos isso pode ser extremamente saudável e sabemos o quanto é bom termos pessoas com quem podemos confiar independente da situação. Por outro lado, ao mostrar a nossa carência afetiva para o outro, nos sentimos (até para nós mesmos várias vezes) como "o mais fraco" da relação. Como aquele que sempre está "atrás" do outro e nunca como alguém "almejado" por ele. Como alguém que pode simplesmente ser deixado de lado em nome de qualquer outra tarefa "mais importante". Esse movimento é algo que acontece com certa frequência em diversos relacionamentos em que a proximidade é grande. Cabe notar aqui que tal sentimento deriva diretamente daquela expectativa criada que falávamos há pouco, ou seja, deriva da espera que o outro vá agir da mesma forma que nós agiríamos em determinada situação.

Como mostramos um pouco mais acima, é bastante claro que a liberdade da ação do outro em relação à nossa demanda determinará em última instância a forma como ele agirá quando for convocado a dar uma resposta. O outro pode simplesmente não se importar com aquilo e transformar tal questão em um "problema menor" de forma que tudo não passará de um "ataque histérico", algo "fruto do cansaço", e uma vez minimizado o problema, a chance de uma resolução autêntica na relação deverá seguir por um outro caminho que não o adotado até o momento. A outra alternativa é sempre a esperada, afinal ela é aquela que se propõe ao diálogo, a entender exatamente o peso da questão para o outro, é ela que proporá alternativas e possíveis saídas para que ambos se sintam confortáveis na relação. Geralmente essa alternativa é a menos adotada  na maioria dos relacionamentos, pois para tal alternativa é preciso o pressuposto da disposição que fere o meu desejo de onipotência em relação ao outro. 

Muito pouco às vezes é necessário para trazer alegria ao outro; e talvez a simplicidade e a facilidade disso nos leve a querer buscar sempre os gestos grandes, pois os gestos grandes podem ser menos freqüentes pelo simples fato de serem grandes. E várias vezes o que se espera são pequenos atos freqüentes ao invés de grandes atos esparsos. 

Toda relação afetiva tem complicações que demandam esforços de todos os lados para que se resolvam e sirvam para a solidificação da relação. Estar atento aos sinais emitidos pelo outro é algo de extrema importância para fazermos uso da nossa liberdade tendo em vista sempre o bem estar da relação. Obviamente que aqui está envolvido o fato de que nem sempre fazer uso da minha liberdade significa fazer apenas o que quero, na hora que quero, mas inclui sempre colocar a demanda do outro na conta para que o outro seja uma espécie de balize para agirmos em uma determinada situação. 

Agindo dessa forma evitamos a tentação de Procusto de querer que todos se encaixem em nosso padrão de conduta e ação e respeitamos a liberdade do outro, pois sabemos que para ele nós somos amados e respeitados em nossos anseios e vontades. 



Por favor, não me analise 

Não fique procurando 
cada ponto fraco meu 
Se ninguém resiste a uma análise 
profunda, quanto mais eu! 
Ciumenta, exigente, insegura, carente 
toda cheia de marcas que a vida deixou:
Veja em cada exigência 
um grito de carência, 
um pedido de amor! 

Amor, amor é síntese, 
uma integração de dados: 
não há que tirar nem pôr. 
Não me corte em fatias, 
(ninguém abraça um pedaço), 
me envolva todo em seus braços 
E eu serei perfeita, amor! 

(Do livro "Bom dia amor!", Mirthes Mathias, Juerp, 1990) 
Poema disponível em https://juliribeiro.wordpress.com/category/mirthes-mathias/ acessado em 08/06/2016

sexta-feira, 3 de junho de 2016

A possibilidade de um reflexo







O dia não era um dos melhores. Nem mesmo a natureza resolveu cooperar e trouxe um dia triste, de muita chuva, nublado, e por mais que apreciasse tal clima, ainda assim aquilo trazia uma espécie de tristeza, pois acostumamos socialmente a dizer que os dias de sol são dias felizes e os dias nublados são dias tristes. Meras manias sociais adquiridas.

O dia lá fora aparecia naquele momento apenas um grande reflexo do dia interior. Sei lá, um dia em que a própria visão sobre nós aparece deturpada, onde nos sentimos não tão bons assim, não tão estimados assim, não tão belos assim. E nessas horas há sempre a chance de que nos convençamos de tais mentiras que contamos para nós mesmos. Curiosamente acreditamos muito mais facilmente nas mentiras que contamos para nós do que nas verdades sobre nós.

Nessas horas gostaríamos de ter aquele espelho da Branca de Neve que diz para nós a verdade que insistimos em não ver. Mas sabemos que espelhos mágicos habitados por espíritos são dificílimos de serem arranjados, e talvez por isso teríamos que contar apenas com o nosso próprio reflexo para dizer coisas que insistimos em não ver. O nosso reflexo ali nos diria a verdade sobre nós mesmos, mostraria para nós a nossa beleza esquecida diante dos inúmeros tormentos, medos, angústias da vida. Naquele momento ali de frente do espelho não nos veríamos como os piores, os mais exigentes, os imperfeitos, os que não alcançaram suas metas, os que se esforçam sem sentido, os fracassados, mas nos veríamos como pessoas belas, amáveis, cuidadoras, que se importam, que fascinam, que lutam, etc. Veríamos as nossas qualidades sobressaltadas à nossa vista.

Ali diante de nós mesmos nos veríamos com a justa medida do que somos. Não precisaríamos criar para nós a ilusão de que devemos fazer algo a mais para sermos amados, não precisaríamos criar para nós a ilusão de que precisamos estar maquiados, penteados, arrumados para sermos lindos diante do mundo. A experiência do nosso reflexo traria para nós a verdade simples de que somos os mais belos que podemos ser, de que amamos com todas as nossas forças, de que somos amados pelos que nos amam do jeito que somos, de que nossa beleza não depende da validação externa de ninguém, de que somos pessoas agradáveis, etc. 

O nosso reflexo seria como aquele bom senso esquecido; seria como aquele que estende a mão e a coloca por debaixo da nossa e diz: "É apenas um mal dia! Isso também passará! Da próxima vez que nos olharmos você estará melhor!" E ali naquele momento nos sentiríamos confortados, com uma visão melhor sobre nós mesmos; Mas não porque aquilo veio de fora, mas porque olhamos para nós mesmos e percebemos que somos muito melhores do que várias vezes nos achamos.

E depois disso perceberíamos que mesmo que lá fora ainda chova, aqui dentro agora surge um pequeno raio de sol, uma pequena luz que se colocada no lugar correto iluminará todo o nosso interior. A esperança renasce. 

segunda-feira, 23 de maio de 2016

A identidade de gênero e a igreja evangélica brasileira




Em 2014 escrevi um texto aqui em que propunha tratar a questão homoafetiva e a sua relação com a igreja evangélica brasileira. Na época chamei de "parte 1" da abordagem. Recentemente com o comentário muito sem noção da cantora Ana Paula Valadão sobre a campanha da C&A nas redes sociais, a questão da posição "evangélica" quanto à questão homoafetiva voltou a tona. Algumas pessoas pediram a minha opinião sobre o tema, e fiz alguns comentários quando me foram solicitados. Chamo então esse texto de "parte 2" do texto de 2014. Segue abaixo os comentários dos amigos do FB em azul e minha resposta logo abaixo. São apenas dois comentários que selecionei para o texto não ficar muito extenso. Penso que ambos dão o núcleo da questão trabalhada aqui. 

"Por favor, ajudem-me. Trata-se da tão falada "Ideologia de Gênero": - Quando um membro de uma denominação pentecostal ou neopentecostal, nascido com um pênis no meio da pernas, identificado ao gênero masculino, canta músicas religiosas em que, repetidas vezes, afirma estar apaixonado por Jesus e ser a Sua noiva, este está exercitando a - horrível, pecaminosa, mundana, maligna - "Ideologia de Gênero"? - Quando uma mulher, nascida com uma vagina, parte de uma denominação cristã pentecostal ou neopentecostal, diz ser um soldado de Cristo, canta músicas e marcha ao som de tambores, repetindo coros em que afirma ser um guerreiro de Deus ou um valente do céu, tal mulher não fere as normas divinas que estabelecem o que é próprio e característico do macho e da fêmea? Pergunto isto porque meus colegas evangélicos parecem esquecer que as construções de gênero, além de se mostrarem nas placas de banheiro, nas vestimentas e nos adereços de moda, evidenciam-se, sobretudo, por meio das palavras e das construções linguísticas. Ah, e se vierem me falar que em meus questionamentos refiro-me à metáforas, perguntarei porque este recurso linguístico - o da metáfora - não pode ser utilizado em textos e passagens que tais "doutores da Lei" insistem em repetir quando atacam homens e mulheres gays, lésbicas e/ou transexuais." (Hugo Leonardo)

A questão que você coloca realmente é bem interessante e a meu ver aponta para uma questão muito mais estrutural dentro do cenário evangélico brasileiro. O comentário da Ana Paula, além de ser infeliz, traz consigo uma visão bastante recorrente no meio evangélico brasileiro (isso pode ser visto nos vários comentários apoiando a posição dela no instagram) que coloca o homossexual como alguém que estaria longe, afastado dos caminhos de Deus por conta de sua orientação sexual, e no caso específico do caso em questão, uma luta ideológica contra a ideologia de gênero. 

Há uma dificuldade enorme no meio evangélico (E aqui é necessário já propor uma divisão entre "evangélicos e protestantes" que claramente não são a mesma coisa no contexto brasileiro) em lidar com diversas questões contemporâneas porque eles insistem em ler a realidade atual por meio de lentes antigas. Em nome de uma "preservação do texto", acabam indo contra ao "espírito do texto". Eles acabam esquecendo que Jesus propôs uma releitura da lei em seu tempo, ou seja, pegou o texto e retirou dele o seu "espírito" para a época em que vivia. Esse movimento de "fidelidade" ao princípio de Jesus é completamente esquecido quando se toca em temas contemporâneos em grande parte da igreja evangélica brasileira. 

Algo que sempre achei interessante pensar é que se quisermos ser fiéis à proposta de Jesus precisamos fazer assim como ele fez, ou seja, traduzir o texto para o nosso tempo preservando o espírito do texto e não nos fixarmos em leituras estanques que acabam trazendo fundamentalismos que nos afastam do intuito bíblico primordial. O Deus cristão sempre se mostra no texto bíblico como um Deus de amor que não tem em mente a condenação dos homens, mas muito pelo contrário, a salvação deles.

A questão da "ideologia de gênero" é um típico tema atualíssimo da nossa época e que exige sim um pensamento crítico por parte do meio cristão. A posição simplista de afirmar que "Deus criou Adão e Eva", ou "Romanos 1 diz isso e isso" soa uma tentativa de fugir da questão e se trancar naquilo que comentávamos mais acima, ou seja, insistir em ler os tempos atuais com lentes antigas. 

O que podemos dizer sobre a "ideologia de gênero"? Sou contra a noção também bastante divulgada de que "não existe ideologia de gênero", pois afinal ela existe sim e é uma forma que encontraram de deturparem a questão no que diz respeito à relação do indivíduo com sua sexualidade. Chamar a noção "identidade de gênero" de "ideologia de gênero" é tentar por meio de palavras deslegitimar uma questão fundamental da nossa sociedade contemporânea, afinal a "ideologia" é associada comumente como algo negativo, ou algo a ser "superado", ao passo que a noção de "identidade" aponta para algo muito mais estrutural no sujeito. A noção de "gênero" não é, portanto, apenas uma "ideologia", mas foca em uma relação identitária do sujeito, e isso deve sim ser respeitado e não superado.

Toda a nossa relação com o mundo é sempre ideológica. A realidade nua e crua não nos é acessível, pois apenas por meio da linguagem somos capazes de entrar no mundo humano. A linguagem é em si mesma ideologicamente construída. Dessa forma, a questão da homossexualidade, transexualidade, bissexualidade e todas as suas variantes não passaria tanto por uma questão de "ideologia de gênero", mas passaria por uma resposta do indivíduo em relação à sua sexualidade. 
Por mais que o meio evangélico insista em negar, já é muito sabido que o objeto sexual de cada indivíduo não passa apenas por um fator biológico, mas passa por diversas outras construções sociais, e que por isso mesmo tal objeto varia de pessoa para pessoa. A suposta "heteronormatividade" se mostra assim apenas como uma grande convenção social e não está, portanto, ancorada em nenhum "princípio divino", etc. A imagem abaixo ilustra de forma bastante didática o que está em jogo na proposta, não de uma "ideologia de gênero" enquanto discurso deslegitimador, mas como "identidade de gênero", que como se pode ver não tem muita coisa a ver com "nascer homem ou mulher". 




A questão é muito mais complexa do que diversos setores evangélicos querem fazer acreditar por meio de posturas extremamente fundamentalistas. Não se trata nesse caso de "ideologia de gênero", mas se trata muito mais de uma noção de "identidade de gênero". O objeto ao qual a pulsão dirige o seu interesse. 

Se prestarmos atenção ao texto bíblico veremos que ele diz muito pouca coisa sobre sexo e Jesus nem mesmo toca na questão segundo os evangelhos, o que nos leva a crer que isso nunca foi um problema a ser enfrentado por Jesus, mas que provavelmente chegou ao cristianismo por outras fontes. Talvez gnósticas, talvez platônicas, talvez por meio do estoicismo antigo, mas fato é que tal questão é completamente estranha ao surgimento do cristianismo. As pouquíssimas falas de Paulo sobre o tema, se analisadas de forma mais detida nos mostrarão que o que está em jogo não é o "objeto da pulsão", mas muito mais a relação para com o outro, se tal relação é feita "em amor ao próximo", ou "sem amor ao próximo". 

Sobre as músicas no meio evangélico que evidenciam tanto a ideia de "noiva de Cristo" e a ideia da "mulher enquanto guerreira" temos um problema ainda maior. 
É sabido que as músicas que se cantam no meio evangélico, na maioria das vezes não tem muito a ver com o texto bíblico. E aqui é algo extremamente curioso que é o grande paradoxo de uma leitura fundamentalista do texto no quesito "doutrinário", mas a possibilidade metafórica quando se trata de melodias, o que gera músicas extremamente dúbias do ponto de vista do texto. Escrevi até um texto no blog há alguns anos atrás sobre isso, caso queira ver http://veliqs.blogspot.com.br/2011/07/culpa-cantada.html

O "varão" que se identifica com a noiva de Cristo tem um quê sim de uma personificação do feminino, mas ao mesmo tempo tem mais a ver com se identificar com uma esfera metafísica em que a noiva se tornaria um ser impessoal, sem "identidade" (o que permitiria a identificação por parte do "varão" sem "abrir mão" da sua sexualidade) que não é um indivíduo, mas um grupo (feminino nesse caso). Esse tipo de identificação com o grupo difere por exemplo do caso Schreber que queria ter um "filho com deus", ser penetrado por Deus e tals. A noiva de Cristo, para lembrarmos, não tem uma conotação "sexual", por assim dizer, mas se vincularia muito mais a uma união "mística" com seu noivo. E aqui, até nisso podemos ver uma dificuldade do meio evangélico em lidar com a questão afetiva/sexual. (Não é sem motivo que o texto de Cântico do Cânticos é facilmente transformado em um poema "dessexualizado" por grande parte da igreja evangélica.) Freud já dizia muita coisa sobre tal temática e a dificuldade religiosa em lidar com a questão sexual. Em seu livro "Psicologia de grupo e análise do ego" (1921) essa questão é tocada de forma bastante salutar no que diz respeito à igreja enquanto instituição e o processo de identificação envolvido na adesão às instituições.

Em relação à mulher que se vê como guerreira, acho que nesse ponto é até mais tranquilo pra gente hoje e seria até motivo de "defesa" para afirmar que o meio evangélico não veria diferença quando se trata de "guerrear", mas vê uma ENORME diferença quando se trata de "amar".

A identidade de gênero já é algo muito bem aceito em diversas igrejas protestantes  e a igreja católica também já tem mostrado alguma abertura à questão (embora os passos sejam bem tímidos). Creio que seja uma questão de tempo mesmo até essa questão se resolver de fato. É bastante complicado para quem é homossexual, tem uma vivência eclesial e precisa o tempo todo, ou esconder-se, ou ter que lutar incessantemente por algo que deveria parecer óbvio dentro de qualquer meio religioso que é a pluralidade dos objetos passíveis de serem amados.


"Tenho uma dúvida sincera diante dessa última polêmica com a pastora Ana Paula Valadão e a C&A, é possível ser cristão e não ser homofóbico? A Bíblia é bem explícita em sua condenação a prática homoafetiva, portando não me causa qualquer espanto essa oposição à homossexualidade pelos cristãos. Não só à orientação sexual, também às práticas religiosas distintas, às diversas culturas, enfim ... é apenas um dúvida. Tolerância e a fé cristã me parece palavras que não combinam, o livro sagrado e a história são bem explícitos quanto a isso." (Henrique Chaves)

É possível sim, meu caro. Infelizmente o que mais se ressalta é o aspecto negativo. Mas a partir do próprio texto bíblico podemos pensar um discurso completamente diferente do propagado por aí. A suposta "condenação explícita" do texto bíblico deve ser lida contextualmente. Apenas uma leitura fundamentalista do texto que permite um discurso que não seja tolerante. Apenas se nos fixarmos na "letra do texto" e não em seu "espírito" (pensando aqui no famoso versículo bíblico, "a letra mata, mas o espírito vivifica" 2Cor 3,6). Uma leitura do texto bíblico de forma a manter o seu "espírito" aponta para outra direção que é a do amor, da tolerância, do vivenciar a experiência do outro em toda a sua diferença. O próprio exemplo do Cristo e suas inúmeras propostas para a tolerância, não só com as mulheres, com os leprosos, com os que não seguia com ele, com os menosprezados, etc. já deveria levar o povo que diz usar o texto para justificativas intolerantes repensarem suas opiniões vomitadas por aí. É um longo caminho, mas percebo um pouco mais de abertura nesse meio. As igrejas inclusivas são um exemplo desse movimento. 

O tema em questão urge ser tratado de forma mais sistemática dentro da igreja evangélica brasileira e mundial. Mesmo com algumas aberturas já evidenciadas nestes meios há ainda um longo caminho a ser percorrido. A luta é árdua e deve ser mantida por todos nós que acreditamos que o princípio maior do cristianismo é o amor ao próximo em toda a sua diferença.  


quinta-feira, 19 de maio de 2016

Religião e Ciência - Um bispo no ministério da Ciência e Tecnologia?






O cenário político brasileiro tem sido objeto de inúmeras análises, postagens, reportagens e toda a gama de comentários possíveis analisando cada decisão, cada novo acontecimento. Isso tem um quê de interessante, mas ao mesmo tempo aponta também para o teor das discussões na era das redes sociais. Na maioria das vezes as discussões são vazias e giram em torno dos mesmos comentários, das mesmas pessoas de sempre criando um loop incrível de retro-alimentação argumentativa. 

Um caso interessante que gostaria de comentar brevemente é a suposta nomeação do pastor  Marcos Pereira da Universal do Reino de Deus, para o Ministério da Ciência e Tecnologia. Tirando a obviedade do jogo político envolvido, uma vez que o PRB (que todos sabemos pertencer à Igreja Universal ) votou unânimamente a favor do processo de Impeachment na Câmara dos deputados e a promessa de cargos e ministérios é uma prática comum no jogo político brasileiro (e por que não dizer no jogo político mundial?), soou bastante estranho esse tipo de indicação (que acabou por não ser concretizada) dada toda história da relação entre a ciência e a igreja no ocidente. Desde a relação mais antiga que envolvia casos como Galileu, Giordano Bruno com a Igreja Católica, até casos mais recentes da sempre conturbada "bancada evangélica" com suas propostas "curiosas" referentes à educação, ética, etc. 

A princípio o fato de Marcos Pereira ser evangélico e pastor da Universal não deveria nos colocar em uma posição defensiva já pré-julgando que ele fará um péssimo trabalho, ou que fará excluir dos livros didáticos temas como o evolucionismo e exigir que todas as escolas passem a ensinar apenas o criacionismo bíblico, ou qualquer coisa do gênero. Assumir esse tipo de postura aponta apenas para o fato de que deixamos nos levar por diversos esteriótipos (que inclusive várias vezes defendemos que não devemos ter esse tipo de atitude) que em nada contribui para uma análise mais atenta da situação. Quem sabe ele não fará um bom trabalho à frente do ministério da Ciência e Tecnologia? Cabe a nós a dúvida em relação ao futuro.

Pertence ao senso comum a ideia de que Religião e Ciência até hoje estariam brigando a respeito de criacionismo e evolucionismo. Embora esse tipo de discussão seja muito forte em vários estados norte-americanos, como Texas, aqui no Brasil a coisa se dá de forma um pouco diferente.  Em uma pesquisa realizada pelo datafolha em 2010   é mostrado que 59% dos brasileiros acreditam em Deus e em Darwin, ou seja, seria bem possível Deus ter criado o mundo e ele funcionar a partir da evolução das espécies, ou então, o mundo não ser criado por Deus, mas ser comandado por ele em seu processo evolucionário. Para a maioria dos entrevistados, as duas opções são bem plausíveis e não há nenhum tipo de contradição entre elas, mas podem coexistir tranquilamente. Essa pequena pesquisa aponta um dado interessante que foge às vezes de uma análise mais rápida. 

A relação entre Ciência e Religião se alterou bastante nos séculos XX e XXI. Podemos dizer que a relação que antes era de oposição tem caminhado cada vez mais para uma relação de cooperação entre as duas áreas de conhecimento. Depois de ter sido relegada a obscurantismo, irracionalidade, quimeras imaginárias pelo iluminismo, a Religião passou a ganhar muito espaço a partir do Romantismo alemão e foi ganhando cada vez mais espaço até mesmo na pesquisa científica. Um filósofo que deu um passo decisivo no debate entre as duas áreas foi Wittgenstein (1889-1951) que apontava para o fato de que ambas as disciplinas falavam de coisas diferentes. Enquanto a Religião se preocuparia com o sentido para a vida, a Ciência se preocuparia em uma descrição objetiva das coisas no mundo. Se elas estão falando de coisas diferentes, o erro se dá quando uma das áreas quer legislar em campo alheio. A separação das áreas proposta por Wittgenstein abre um caminho para o processo de cooperação que citávamos acima. Pelo menos no Brasil, a pesquisa do Data Folha registrada acima mostra que se encontrou um jeito bastante peculiar de conciliar os dois ramos de conhecimento.

Dentro do debate mundial há os que defendem que Deus pode ter criado o mundo por meio de um "Big Bang" e a partir daí Deus "coordenaria" a evolução das espécies colocando novamente todo o mundo dentro do Seu propósito. Essa posição se torna uma versão clássica de um Teísmo que mantém a noção criadora de Deus, mas dá a ela um ar mais dialogal com as pesquisas da física dos séculos XX e XXI.  Próximo a essa perspectiva há aqueles que pensam em Deus como uma espécie de "Design Inteligente", ou seja, uma espécie de refinamento da posição Deísta (aquela segundo a qual Deus coloca o mundo em movimento, mas não interfere nele; típica da idade moderna e que pode ser remetida à noção de "primeiro motor imóvel de Aristóteles) que ainda hoje é vista por muitos como uma "necessidade lógica" na explicação causal do mundo. Uma outra posição também que tem ganhado bastantes adeptos e que se mostra também uma proposta dialogal é a tentativa de conciliar noções da física quântica vinculadas à noção de energia com as filosofias e religiões de matrizes orientais tais como o Taoísmo, para ficarmos com apenas um exemplo. Nesta linha os trabalhos de Leonardo Boff e  Fitjof Capra se mostram como bons exemplos.

O que se percebe é que o diálogo entre Religião e Ciência se distanciou bastante do que comumente vemos sendo propagado nas redes sociais e discussões sobre o tema e que a possível nomeação do pastor Marcos Pereira para o ministério de Ciência e Tecnologia trouxe novamente a tona no cenário brasileiro. As diversas reações adversas propagadas pelo simples fato dele ser um pastor que coordenaria um ministério da ciência se mostraram serem muito mais fruto de um pré-conceito do que do fato de estarem ancoradas em algum conhecimento sobre o tema na atualidade. Esse tipo de julgamento apressado deve sempre ser evitado para que não incorramos no erro que apontamos nos outros.

Religião e Ciência são duas áreas de produção humana em que cada uma delas visa um fim específico. A Religião procura falar do sentido da vida, procura ser uma possível orientação para o sujeito se guiar diante das adversidades da vida ao mesmo tempo que oferece consolo e uma esperança  para ele. A Ciência por sua vez está preocupada em desvendar os mistérios do funcionamento do mundo, a forma como ele começou, preocupada em ajudar o indivíduo a se relacionar melhor com a natureza por meio de suas descobertas, tecnologias, etc. Por mais que a Ciência investigue e diga todas as possíveis causas do mundo, o funcionamento da natureza, a forma como se dá o crescimento e a evolução dos seres, ainda assim, ela nem sequer tocou no problema sobre o sentido da vida, o sentido do mundo, o sentido da existência. Essa diferença é crucial para entendermos a possibilidade de um diálogo saudável entre o âmbito da Religião e o âmbito da Ciência. Dependendo de nossa "filiação ideológica" podemos privilegiar um campo em detrimento do outro, mas de forma alguma podemos menosprezar um desses campos no intuito de defender o outro, pois isso apontaria para um total desconhecimento da atualidade do debate em questão.

Fica então o convite para que conheçamos as duas áreas de conhecimento e assim possamos manter vivo o diálogo entre elas. 









quarta-feira, 4 de maio de 2016

O hiato entre a visualização e resposta, ou mais claramente, entre Eu e o Outro.






Uma das coisas que para nós, os ansiosos da era digital, incomoda profundamente é quando alguém visualiza uma mensagem enviada e não responde. Quer seja ela no Email, Whatsapp, Messenger, SMS, ou qualquer outro meio de comunicação. A situação se torna extremamente incômoda, uma ansiedade domina de forma quase totalitária e aparentemente não há nada, que pelo menos eu consiga fazer, para canalizar essa ansiedade em algo útil. Todas as atenções se voltam para o fato, todas as energias são canalizadas para lá. Não há racionalização possível nesses momentos. Há casos em que até a fome perde-se nessas horas. Esse hiato entre o envio e a visualização e entre a visualização e a resposta é fonte também de extrema angústia, pois revela o hiato entre o sujeito e o outro. Entre o desejo do sujeito e o desejo do outro, para falar como Lacan, ou o infinito entre o eu e o tu para falar como Levinás. Para vários é até preferível saber que o outro não viu do que saber que viu e não respondeu. A primeira opção ainda  assegura uma espécie de "importância" para o outro, afinal, cria a outra ilusão de que "assim que ele vir, ele vai me responder". Já a segunda opção te coloca em  um terrível hiato em que a única coisa que resta é o desejo do outro em te responder ou não, sendo dessa forma muito mais angustiante, pois agora não é mais uma questão de ver ou não ver, mas de querer ou não querer responder. 

Quando o Whatsapp e o Messenger se atualizaram de forma a permitir que as pessoas vissem que o outro leu a mensagem lembro que diversas pessoas na época procuraram inúmeras formas de não mostrar a visualização para o outro como forma de não se sentir na "obrigação" de responder, e isso tanto no Messenger quanto no Whatsapp. A meu ver acho que faz parte da boa educação responder às pessoas que te enviam mensagens. (a não ser é claro mensagens abusivas, que incitam ódio, que ofendem, etc. ou mensagens de trabalho fora do horário de trabalho, etc. Nesses casos acho que bloquear a pessoa faz até bem, pois evita esse tipo de situação estranha. Ou então silenciar pessoas e grupos que apenas te chamam para te cobrar coisas e trabalhos infinitos.)  No entanto, para nós, os ansiosos, saber ou não saber que a pessoa visualizou em nada muda a relação que estabelecemos com a mensagem. A ansiedade se faz presente da mesma forma só que agora ao invés de se configurar em duas opções como falamos acima, ela se configura apenas de uma forma. Não saber que a pessoa visualizou  a mensagem faz-nos apenas criar possíveis histórias para tentar organizar o porque da não-resposta. O mesmo tipo de história que tentamos contar quando sabemos que o outro viu, mas não nos respondeu. Não precisa dizer que essas histórias também são fontes de extrema ansiedade né?

Algo que já é muito senso comum é afirmar que o sujeito hipermoderno é extremamente fragilizado, não consegue lidar muito bem com as adversidades da vida e talvez um desses motivos seja realmente o advento massivo das redes sociais e avanços tecnológicos que o afastam da natureza o confinando cada dia mais em uma vida sem muitos desafios reais, mas apenas construídos muito artificialmente. Sempre fico pensando no como as relações eram bem diferentes na época em que as notícias chegavam por carta ou a cavalo e às vezes as respostas demoravam dias, meses, até anos para chegarem aos seus destinatários. O hiato entre a emissão, visualização e resposta era extremamente maior que atualmente e isso forçava esse sujeito a lidar com as relações de forma muito diferente com a qual lidamos. Um de nós ansiosos, teríamos seríssimos problemas nesse período. Obviamente que a ansiedade generalizada é um sintoma da nossa época hipermoderna e com quase certeza podemos afirmar que os antigos eram muito menos ansiosos que nós.

Obviamente que há um quê de Procusto nisso tudo. Um desejo de que o outro aja da forma que você age, uma expectativa que o outro dê o mesmo tipo de atenção que você dá para esse tipo de coisa aparentemente tão besta. Afinal, responder ou não uma mensagem é algo aparentemente muito pífio para que nos preocupemos com isso. Mas ao mesmo tempo nada é besta em si mesmo, mas tudo depende da relação que se estabelece com determinada configuração. Com certeza seria muito mais fácil se o outro lidasse sempre da mesma forma que você, pois isso aparentemente acalmaria todos os corações. 

A relação que eu criei para mim diante dessa situação das mensagens da era virtual é a de sempre posicionar o outro de alguma forma. Se não posso responder no momento, eu sempre envio algo como "vi sua msg e em breve te respondo", ou "Desculpa, te respondo em breve" para de alguma forma situar o outro da minha posição. Não sei qual tipo de relação o outro estabelece com aquilo que ele me enviou, não sei o grau de urgência com a qual aquilo se mostra para ele. A meu ver não custa esse tipo de atitude. É algo que chamo de "gentileza online".  Mas como cobrar isso do outro? Como forçar o outro a querer o que você quer? E a liberdade dele? E as tarefas dele, as suas coisas a serem feitas? Ele está perfeitamente justificado por não querer fazer a coisa do jeito que nós idealizamos como "ideal". O que resta senão sofrer em silêncio diante da angústia e a ansiedade que te consome nessa hora? 

Na maioria das vezes os outros nem sabem de todo esse sofrimento, afinal, não é bom ficar revelando-se sempre tão fraco, tão dependente, tão fragilizado por qualquer rompimento na rotina da vida. A vida é ela mesma feita de inúmeros imprevistos, coisas que não seguem um ritmo certo, incongruências, inconstâncias. Se tem uma coisa que a vida menos tem é uma rotina por assim dizer. Estabelecer essa rotina acaba sendo uma forma bastante ilusória de lidar com esse Real da vida que se impõe e mostra todo o vazio intransponível, indizível. 

Mas quem conseguiria viver apenas diante desse vazio? Essas ilusões criadas por nós servem para nos acalmar, para sentirmos que temos algum tipo de controle sobre a situação. Mas e quando essa ilusão se rompe e esse Real se apresenta trazendo toda a sua carga horrível diante de nós? É esse o momento da angústia, o momento do incontornável. Isso soa extremamente dramático, mas para nós, os ansiosos, é mais ou menos como a coisa se configura. É mais ou menos o sentimento que nos domina quando essa resposta não vem, ou quando a nossa pergunta não vai. Não que precisamos da sensação do outro "sempre ali" em que a massificação da presença do outro em todos os momentos configurará como angústia, não é isso. Na realidade o que se espera nesse momento é apenas uma espécie de simpatia, uma espécie de compreensão de que aquilo é importante para o outro e por isso, se não me custa fazer, por que não agir de forma a trazer paz a ele?

Por mais que tentemos nos antecipar à situação, nos preparar, racionalizar, prever que tal rotina pode ser quebrada de alguma forma, (e que de fato não há nada de ruim nisso) quando o evento acontece, quando a coisa se rompe lá está de novo todo o sentimento ruim novamente, toda a ansiedade, toda a angústia, todo o choro sendo segurado. Lá está de novo evidenciada toda a nossa fragilidade, as nossas incertezas. Não que não compreendemos a dinâmica da vida do outro; não que achamos que o outro deva estar sempre disponível para nos responder a qualquer chamado; temos plena consciência de que a vida corrida, os afazeres é algo comum a todos, de que às vezes não se teve tempo para responder, de que às vezes simplesmente não se quis responder a tal mensagem por motivos diversos (pensar nessa última opção também pode gerar extrema angústia), mas o fato de termos toda essa consciência em nada alivia (embora devesse) a angústia e a ansiedade. 

Mas não será isso dar um peso extremamente absurdo para algo absolutamente tão insignificante? O que isso representa na dinâmica do sujeito? O que isso representa na nossa dinâmica? Essa situação não aponta para questões muito mais estruturais? Será ainda honesto jogar esse peso sobre o outro? Será que isso precisa chegar até ele? Não seria isso uma tentativa de eliminar a minha responsabilidade diante da forma como eu me sinto jogando isso para uma atitude que viria do outro?Não será o caso de fingir uma suposta atitude de paz para não gerar problemas maiores? A quem revelaremos todas as nossas fraquezas sem que isso gere uma sensação de culpa no outro? Quem suportará nossas fraquezas sem se defender ou nos acusar de insensatos?

É uma espécie de TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) que se volta para as relações sociais; como se tudo precisasse funcionar de uma determinada forma, ser arranjado de um determinado jeito. Aquela "folha torta em cima da mesa" não deveria estar "torta ali em cima da mesa", mas por mais besta que seja, aquilo incomoda de uma forma tão grande que não adianta dizer para quem sofre disso: "Mas você não pode ficar assim ! Olha como isso não tem sentido!" Não é a isso que o sofrimento remete. Esse TOC do sujeito remete a outra coisa; desde questões neuronais até mesmo questões psicológicas para serem resolvidas por meio de terapias diversas. O que aqui chamo de TOC das relações sociais se dá da mesma forma só que se volta para as rotinas cotidianas. Se algo sai da rotina (se a folha está torta em cima da mesa) toda a suposta estabilidade se rompe e faz o sujeito cair em um abismo sem sentido.No caso do TOC das relações sociais ainda tem um complicador que é o fato do "conserto da situação" não depender apenas do sujeito, mas do outro. Enquanto para o TOC clássico o sujeito é capaz de resolver a coisa por si só, (ele pode simplesmente arrumar os papéis sobre a mesa, organizá-los e etc.) no caso do TOC das relações sociais a solução do problema vem do outro que de alguma forma é parte e solução do problema, o que deixa a situação muito mais complexa e difícil de ser resolvida. Aliado a isso ainda se tem os problemas diários da vida, i.e, o trabalho que está muito grande, as contas que devem ser pagas, a família que não está bem, ou seja, inúmeras outras situações que cooperam para que a banal experiência da quebra da rotina se mostre ainda mais cruel.

Pode-se ver que para além de uma simples idiossincrasia sem sentido de pessoas mimadas ou "viciadas em internet" (Recalcati já nos chama a atenção do sobre o como as redes sociais podem se configurar como uma espécie de nova droga extremamente viciante em que a ausência acarreta sintomas muito parecidos com crises de abstinência, tais como palpitações, tremores, etc. É um problema bastante recorrente e sério) tal dinâmica pode apontar para algo muito mais estrutural do que a princípio se mostra. Tal situação parece apontar para a difícil relação entre eu e outro aparentemente tão facilitada pelo mundo da internet; parece apontar para o hiato estrutural entre o meu desejo e o desejo do outro, e aprender a lidar com essa ausência de resposta do outro, lidar com esse "desamparo aparente" é algo a ser aprendido por todos nós, os ansiosos. 

Mas será que temos que lidar com isso todos os dias? Não podemos querer também algum tipo de consolo ilusório que nos livre dessa sensação? Nos tornamos piores por querer manter tal ilusão mesmo que momentânea? Será que não podemos contar com a simpatia do outro para conosco? Contar com o seu compadecimento? Obviamente há diversas pessoas que dão uma enorme importância para tal dinâmica e o seu cuidado para conosco é algo digno de ser registrado nessa pequena reflexão sobre um pequeno detalhe da nossa vida contemporânea. Estas pessoas são cada vez mais raras em nossas vidas e isso aponta para relações que transcendem a comunicação online, transcendem os laços líquidos (pra falar como Bauman) da contemporaneidade. Estas pessoas fazem o que podem e o seu esforço deve sim ser notado aqui. 

Dessa forma, sugiro que se há algo que você possa fazer para que seus amigos/colegas/namorado (a) se sintam melhores, por que não fazer? Por que não praticar a tal "gentileza online" e poupá-los de mais essa fonte de angústia entre a visualização e a resposta? Ao propor tal "gentileza online" não me coloco como detentor da única resposta possível para a situação, apenas sugiro que talvez isso possa ser algo que acalmará corações que às vezes se afligem com coisas supostamente muito pequenas. É um tema que cada dia exige mais reflexão de nossa parte e aponta para uma dinâmica muito mais profunda do que aparenta a princípio. No fundo parece remeter à difícil relação entre o Eu e o Outro. E quantas outras coisas, quantos outros relacionamentos não remetem exatamente a esse hiato entre o Eu e o Outro? Entre o meu desejo e o desejo do outro? Entre a minha forma de conceber o mundo e as relações e a forma do outro de conceber o mundo e as relações?