segunda-feira, 16 de abril de 2012

Reflexão sobre o Titanic



Nós fitamos juntos os mares muito suaves no local onde o RMS Titanic afundou há um século. Como o salmista que cantou: "Das profundezas, eu clamo a ti, ó Senhor", o Titanic ainda clama para nós das profundezas das águas coroadas de icebergs, mais de mil vozes que nos falam das feridas da perda que cem anos de solidão no fundo arenoso do Atlântico não curaram.

A água é o meio do verdadeiro Mistério, trazendo-nos as vozes dos passageiros perdidos a partir dos escombros espalhados como as pérolas derramadas para fora da bolsa de uma viúva, mediante o que os investigadores marinhos definem como "campo de destroços" da grande embarcação.

Mesmo enquanto os coletores tentar recolhê-los, esses objetos testemunham que esse não é um campo de destroços, mas sim um campo humano. Esses pequenos acessórios da vida cotidiana – navalhas e pentes, canetas e fivelas e broches – sussurram sobre os seus proprietários, trazendo-os à vida, de modo que nos sintamos no convés ao lado deles, conhecendo o que eles não têm do destino que, de repente, os iria engolir juntamente com os planos e os sonhos não muito diferentes dos nossos.

Podemos sentir as correntes de tristeza que correm tão profundamente por essas águas, assim como a Corrente do Golfo, a não muitos quilômetros de distância. O que nos lembramos desses passageiros – os seus pecados ou as suas tristezas? Neste mesmo mês de abril, como não ouvir de novo, também, as vozes daqueles que afundaram junto com as Torres Gêmeas, a partir dos relatos de que alguns de seus restos mortais estão sendo enterrados no mesmo mar?

E o que eles nos contam, em seus telefonemas e e-mails finais para aqueles que eles amavam, senão a bondade simples das pessoas que os pregadores equivocadamente chamam de pecadoras e que nós, erroneamente, chamamos de comuns? A dor das vítimas do 11 de setembro parece mais nova do que a das vítimas do Titanic. Contudo, a tristeza não tem qualquer carimbo de tempo ou data de validade. E agora elas se misturam, testemunhando juntas os laços do amor humano e a tristeza que é semeada como o trigo no campo do tempo que passa.

Agora que elas se libertaram do tempo e entraram na eternidade, nós podemos vê-las e compreendê-las melhor. Nós captamos vislumbres da pureza do coração que, apesar do trovão dos sermões acusando homens e mulheres por seus pecados, elas parecem tão simples e inconscientemente possuir.

O que devemos aprender neste tempo de Páscoa em que, durante as semanas cheias de cinzas da Quaresma, fomos alertados por severos pregadores sobre a enorme dívida de pecado que Jesus pagou morrendo por nós? Como é grande o nosso pecado, clamam eles, para que tal preço tenha sido cobrado por nós.

Mas, talvez, essa seja uma compreensão econômica da redenção, preparado por contadores que, se você lhes perguntar como vão, eles vão lhe dizer que o mercado de ações está em alta ou em baixa. Será que Jesus, podemos nos perguntar enquanto a luz plena da primavera se eleva, morreu para pagar por nossos pecados ou para se identificar com as nossas dores? Ele é chamado de o Homem das Dores, então, talvez, essa compreensão mais profunda tenha sido escondida à vista de todos, enquanto os mistérios simples do amor e da devoção estão todos ao nosso redor.

Jesus perdoou os pecadores prontamente, mas passou grande parte do seu tempo na terra respondendo à dor e à tristeza que são a condição da nossa vida no tempo.

Estamos todos reunidos nesta semana em que a latitude e a longitude inscrevem uma cruz na superfície das águas em cujas profundezas o despedaçado Titanic jaz. O seu telegrafista, conta-se, enviou mensagens até o último momento. Talvez, no entanto, possamos ouvir esses sinais dessas profundezas em nossas próprias profundezas, dizendo-nos que, abaixo de nós, jaz um lugar de julgamento em que os bem-aventurados foram conduzidos para a eternidade, porque eles estavam tão ocupados carregando as tristezas da vida que vêm com o amor que quase não tiveram tempo algum para pecar.

Texto de Eugene Cullen Kennedy, publicado no site da National Catholic Reporter, 12-04-2012.

Disponivel em http://www.ihu.unisinos.br/noticias/508514-a-licao-do-titanic-mais-tristeza-do-que-pecado-no-mundo

Da Solidão a Solidez




A amizade nasce de repente, mas se solidifica muito lentamente !!!!
Da Solidão a Solidez um longo percurso, mas digno de ser vivido!!!!

No início, estranhos... No final, cúmplices !!!!

terça-feira, 27 de março de 2012

Diálogo com Moltmann sobre Trindade



Tendo em vista a análise do Moltmann do conceito de trindade exposto em algumas de suas obras tais como “trindade e reino de Deus”, “ciencia e sabedoria” proponho algumas questões para diálogo como se segue.

Dado o panorama da discussão sobre a trindade no pensamento cristão que se dá desde o séc II, Jürgen Moltmann procura trazer contribuições para tentar pensar a Trindade, relacionando-a a idéia do Reino de Deus.
A abordagem de Moltmann é bastante interessante e se funda na idéia de que só podemos conhecer a trindade a partir daquilo que nos foi revelado de Deus. Para ele, a revelação de Deus se dá na pessoa do Cristo, logo, não há lugar melhor para se pensar a trindade que a partir da figura do Cristo enquanto filho de Deus. Jesus então se coloca como paradigma para se entender a trindade no pensamento de Moltmann e a cruz o lugar onde esta revelação se dará de forma mais cabal.

A principio é preciso que se afirme de onde ele parte para formular a idéia que ele tem de trindade. A análise de Moltmann se constitui uma tentativa de conciliar o relato bíblico com o problema da Trindade. Partindo da revelação do filho de Deus é possível compreender uma parte da trindade imanente.

Moltmann parte de uma linha mais evangelical, isto é, a palavra de Deus é tomada como “revelação” que deve ser compreendida como “proposicional”, dessa forma a única forma de acessar a trindade é a partir da vida do filho de Deus. A articulação de Moltmann se mostra muito contundente, e embora dialogue pouco com as definições conciliares, (uma vez que acredito que ele entenda que grande parte desse trabalho já tenha sido feita), no início do livro “trindade e reino de Deus” ele consegue dar um panorama para justificar a sua posição.

Partindo da diferenciação entre o mundo grego que vê na substancia aristotélica a diferenciação entre os seres, (termo que posteriormente será substituído por essência e marcará bastante o pensamento cristão) e a idéia de “comunhão” que segundo ele permeia a idéia da trindade partindo do mundo bíblico, Moltmann tentará mostrar que a união entre pai, filho e espírito santo pode ser entendida no sentido da comunhão, embora ele trabalhe muito com o conceito de essência para explicar a noção de Trindade.

Há de se admitir que ao se tentar falar da trindade a partir da noção de essência, ou substancia realmente fica extremamente complicado assumir um discurso que seja plausível, mas mesmo assim é algo que Moltmann ainda tentará fazer em vários de seus livros.

Moltmann defenderá uma idéia que particularmente acho pouco defensável. Assumir que Jesus na Kenosis se esvazie apenas de seus atributos, mas manteria uma “essência divina” é assumir que ele é Deus, uma vez que a essência é aquilo que define o que o objeto realmente é. (Obviamente não cabe aqui uma discussão do conceito de essência, mas parto apenas da pressuposição de que a essência é algo que define o objeto de tal forma que a um objeto equivale apenas uma essencia. Um objeto não pode possuir duas essencias, uma vez que a essencia determina um ser específico, ou uma espécie especialíssima para fazer alusão a porfírio) Agora, pela própria definição de “essência”, é impossível o discurso da “união hipostática” que seria uma das bases para Moltmann afirmar a trindade.
A kenosis, se é apenas de atributos é um esvaziamento parcial, ou auto-limitação para usar o termo de Moltmann. Se a essencia é divina, ela não pode ser humana, e vice-versa, pela própria definição de essência.

A idéia comum geralmente defendida de que Jesus seria cem por cento homem, e cem por cento deus se torna completamente inconsistente logicamente falando, e não é possível alargar o conceito de essência para encaixar a união hipostática na natureza do Cristo. Ou Cristo é humano, ou ele é divino. A não ser que alarguemos o conceito de “divino” para que seja possível a todo homem ser divino.

Para Jesus ser homem e Deus, e ainda assim ser homem como eu sou homem, é possível que eu seja Deus assim como ele é Deus. Esta conclusão se dá quase que logicamente, se assumo que ele é um ser humano igual eu sou um ser humano. Jesus não pode se identificar comigo na dor e diferenciar-se de mim na essência.

Outro problema que pode ser apontado em Moltmann é a defesa da idéia de pecado original que sustenta o enorme paradoxo que impossibilita a união hipostática a partir de uma noção de essência.
Tal paradoxo pode ser mostrado por um simples silogismo


Todo homem nasce pecador
Jesus nasceu como homem
Logo, Jesus nasceu pecador

Se eu nego a primeira premissa, logo preciso negar a idéia de pecado original, o que leva o homem a nascer sem pecado (o que a meu ver, não prejudica em nada a antropologia teológica nem mesmo a soteriologia). Mas a linha mais evangelical defende a idéia do pecado original, até mesmo a partir de outros textos bíblicos tais como Rm 3: 9-18 , Rm 3:23, Rm 5:15-19, Sl 51:5, Ef 2:1-3 dentre outros textos.

Afirmar que Jesus deve substituir o “Adão antes da queda” e não o homem em geral, se constitui uma quebra da humanidade do Cristo como um homem comum. Afinal, Jesus deve ser homem como eu sou homem para que ele possa sofrer como eu sofro. Só mesmo uma identificação radical com o ser humano e não com um ser humano “in potentia” que possibilita que ele se identifique com a minha dor. Se ele sofre de forma diferente da minha, então seu sofrimento não pode servir de paradigma para o meu sofrimento, uma vez que ele sofre como ser diferente de mim.

Há de se considerar também a crítica de Feuerbach neste ponto, que nos mostra alguma confusão no cristianismo ao falar de “homem em geral”. Jesus não pode assumir a “natureza humana genérica”, mas para ser homem ele deve ser homem como eu sou homem, um ser individual e não um ser abstrato.


Se nego a segunda premissa, nego a doutrina da encarnação, ou pelo menos a forma como ela tem sido traduzida até os dias de hoje. Daqui surge um outro problema que não é resolvido nem pelo “traducionismo” - Doutrina segundo a qual a alma humana é gerada (per traducem) da alma dos pais, formulada por Tertuliano no segundo século do cristianismo, nem mesmo pela doutrina criacionsita da alma – que afirma que Deus cria a alma de cada indivíduo ex-nihilo, posição defendida Jerônimo dentre outros. Se Jesus tem sua alma herdada dos pais (traducionismo) logo ele deverá nascer pecador, uma vez que é homem e sua alma é traduzida da dos seus pais. No entanto, se ele tem sua alma criada ex-nihilo, por Deus, esta alma, para ele ser homem, tem que ser uma alma humana, não pode ser uma alma divina, afinal, se assim o fosse, ele não seria homem como nós somos homens. Ambas teorias se mostram pouco conciliáveis com a idéia de pecado original.

Se Jesus nasce sem pecado, como esse pecado é transmitido aos outros seres humanos? Por meio da concepção? (Uma vez que Jesus teria sido concebido sem pecado pelo fato de não ter tido participação humana em sua geração, como defendem vários teólogos desde os patrísticos). Se for por meio da concepção, não há outra saída a não ser encarar o próprio sexo como pecado, o que no meio cristão não é o caso. O próprio Vaticano defende o sexo como tendo fim apenas procriativo.

A conclusão se segue do silogismo.

Se Jesus tinha algo a mais que os homens teriam, ou ele não é humano, ou ele é um humano diferente de mim, o que nesse caso, torna o seu sacrifício bastante limitado, uma vez que ele não sofreu como os homens sofrem, mas como um “homem específico”, diferente dos “homens comuns”.

Ou se abre mão da doutrina do pecado original, ou se abre mão da cruz como sacrifício de identificação com o homem. Ambos são inconciliáveis.

Na análise de Moltmann, a trindade que parte do Cristo como revelação de Deus tenta mostrar como se daria a relação entre Pai, Filho e Espírito Santo. Nesse sentido, Moltmann reformula algo que já está presente em Gregório de Nissa, Tertuliano e outros patrísticos que debateram exaustivamente estas questões, e afirmavam dentre outras coisas que o filho era gerado pelo pai e o espírito era “soprado” pelo pai, mas ambos seriam uma mesma “substancia” que se “interpenetram” mutualmente (Pericorese), mostrando a comunhão entre as pessoas da Trindade.

Acredito que o ganho de Moltmann seja ter tratado da divisão proposta por Karl Rahner entre Trindade imanente e Trindade econômica associando a isso uma “Teologia da Cruz” de Lutero que lhe permite falar de um Deus que sofre.

A meu ver a proposta de Moltmann se mostra filiada a toda uma tradição neo-orotodoxa, ou evangelical e por isso acaba caindo no problema de tentar justificar “biblicamente” proposições que não podem ser defendidas a partir do relato bíblico apenas, mas deve ser buscada em outras fontes, quer sejam culturais, sociológicas, etc...

A questão da trindade, mesmo sendo muito bem articulada por Moltmann, por partir dos mesmos pressupostos da tradição acaba caindo nos mesmos problemas da tradição, que alguns são levantados aqui de forma apenas incipientes, mas demonstrando que se partimos da definição de essencia ou substancia, é impossível resolver os paradoxos para justificar a trindade da forma como tem sido feita.

É sabido que a doutrina da trindade até hoje é alvo de inúmeras discussões e que a adesão a uma forma de associação ou outra se dá mais por um ato de empatia que por “argumentos lógicos”, o que torna um assunto extremamente interessante a ser debatido dado os novos paradigmas da pós-modernidade. Nesse sentido, não cabe apelar para Dt 29:29 e afirmar que isso é um mistério que pertence apenas a Deus. Talvez a adesão à doutrina da trindade deverá se dar apenas de forma existencial, o que não deixa de ser uma possibilidade, no entanto, mesmo se for o caso, ela carece de explicação se quisermos "defende-la racionalmente" como vários teólogos tentaram e até hoje tentam.

Obviamente é impossível fazer uma análise muito abrangente da questão da trindade em tão poucas linhas, mas acredito ter apontado aqui algumas questões a serem pensadas sobre o tema. Claro que várias destas questões já foram amplamente debatidas por diversos teólogos, filósofos, no entanto, acredito que uma postura mais próxima à teologia liberal daria um suporte interessante para se pensar a trindade a partir de uma inserção social, pensando-a simbolicamente. Talvez a associação feita por Agostinho entre Trindade e mente humana, analogamente colocada entre “mente, conhecimento e amor” ou “memória, inteligência e vontade”, seja algo a ser retornado para pensarmos a idéia da trindade a partir do símbolo que tem na pessoa de Jesus a sua manifestação mais autentica.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Alguns apontamentos sobre protestantes e evangélicos






Algo interessante que já foi falado por Weber há algum tempo atrás de como o espírito protestante favoreceu o desenvolvimento do capitalismo. Uma vez que o calvinismo não precisava ter preocupações quanto ao destino da alma, da salvação, ou qualquer coisa que viesse de Deus, uma vez que pela doutrina da predestinação, esse problema já estava resolvido, era possível que os protestantes se desenvolvessem em outras áreas. Aliado a isso o fato de que a riqueza financeira seria sinônimo da graça e da benção de Deus, o protestante então se empenhava de todo coração, alma e corpo na busca desta satisfação que o capitalismo proporcionava.
Nesse processo a sociedade ia se desenvolvendo e várias coisas iam sendo feitas para que tal desenvolvimento fosse algo visível.

A aliança entre protestantismo e capitalismo sofreu uma mudança de paradigma a partir do neo-pentecostalismo e a teologia da prosperidade. Se no protestantismo analisado por Weber ainda havia um interesse em um "desenvolvimento social" proporcionado pelo protestantismo, hoje em dia a linha evangélica está longe desse ideal.

Particularmente proponho uma divisão entre protestantes e evangélicos. Penso que atualmente não se pode colocar ambos como sinônimos, afinal as perspectivas atualmente são bem destoantes.

Cabe ressaltar que atualmente é bem difícil afirmar que existe um protestantismo único. Há diversas igrejas protestantes e o número delas cresce a cada dia. Da mesma forma há várias igrejas evangélicas e nesse grupo específico a coesão se torna algo praticamente impossível.  No entanto, mesmo com tais ressalvas, acredito que seja possível traçar alguma diferença entre o que entendo por "evangelicalismo" e o que entendo por protestantismo. (Uso o termo evangelicalismo entre aspas no texto para que não se confunda com o evangelicalismo como entendido no meio teológico) Não acredito que tais termos possam ser tomados por sinônimos, nem mesmo penso que um seja desenvolvimento do outro, como geralmente se assume.

Como é sabido, o protestantismo nasce como protesto contra a igreja católica naquilo que na visão de Lutero, destoava dos ensinamentos bíblicos. Claro que houve significantes modificações de interpretações desde a época de Lutero até os dias atuais, mas acredito o cerne do protestantismo é o protesto. Nesse sentido, não há uma assimilação direta entre protestantismo e igrejas históricas, uma vez que várias igrejas históricas se manifestam altamente conservadoras e a preocupação com a alteração do "status quo" é a última coisa que visam.

A igreja evangélica é algo mais recente que a igreja protestante no Brasil. Fruto das missões advindas dos países do norte, principalmente os Estados Unidos, a igreja evangélica se fixa em solo brasileiro com um cunho muito mais focado na "propagação da boa nova". O evangelho de missão traz consigo a ideia de que é preciso converter o maior número de pessoas o mais rápido possível, pois o fim estaria próximo.  Nesse primeiro momento já começamos a identificar algumas diferenças entre os "protestantes" (frutos direto da reforma) e os "evangélicos" (preocupados em espalhar as boas novas).

Algo interessante a ressaltar é que a tônica do movimento evangélico em solo brasileiro além da propagação da "boa nova" é a ênfase grande nas "manifestações visíveis dos dons do espírito" e daí os textos do livro de Atos dos apóstolos serem tão utilizados em diversos momentos. A ênfase nos textos que relatam o pentecostes dos apóstolos é o que dá a esse grupo o nome de "pentecostais", ou seja, é um grupo que quer ver se manifestando no meio da sociedade os dons do Espírito Santo , (entendidos obviamente de maneira mais espiritualista) assim como descritos no livro de Atos. A associação se torna quase que direta entre evangélico e pentecostal de forma que o pentecostalismo se torna quase sinônimo do que se entende no Brasil por "evangélicos" nesse primeiro momento. 

A partir da década de 60, com a chegada da teologia da prosperidade em solo brasileiro começa o movimento chamado neo-pentecostalismo em que há uma diferenciação ainda maior dentro do próprio cenário evangélico. No Brasil passa a se falar em três formas de compreensão desse setor cristão. Temos agora os protestantes (advindos da reforma, como por exemplo, os metodistas, luteranos, presbiterianos), os evangélicos pentecostais (Algumas Assembléia de Deus, algumas igrejas Batistas, Igreja Deus é amor, etc.) e os evangélicos neo-pentecostais (Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça,). Basicamente o que marca a diferença entre os pentecostais e os neo-pentecostais é a adesão ou não à teologia da prosperidade. Igrejas como Batista da Lagoinha, Batista Getsêmani que advém de igrejas de vinculação pentecostal (convenção Batista) se separam de tal movimento e adotam nos últimos anos discursos mais vinculados à Teologia da prosperidade.  

O evangélico é aquele que "anuncia a boa nova", no entanto, esta boa nova não é fruto da ação do próprio evangélico, mas vista como "ação de Deus". O evangélico dá uma ênfase muito maior na ação divina, que propriamente na ação humana. O discurso evangélico (evangélico aqui tomado nos seus moldes mais comuns, isto é, as igrejas pentecostais e neo-pentecostais) coloca Deus como o responsável pela mudança da sociedade. Se a situação não está boa, isto geralmente é entendido como "Deus querendo ensinar alguma coisa", ou "Deus está no controle da situação". (curiosamente, posição defendida por várias igrejas protestantes que acreditam na predestinação) O evangélico se coloca como passivo diante do mundo. Claro que não há uma "inércia permanente" no meio evangélico, mas há com certeza uma passividade diante dos acontecimentos.

Movimentos tipicamente evangélicos como a "marcha pra Jesus" possui um caráter de "ação", mas até mesmo nesses movimentos a ênfase na ação é jogada para Deus, e o papel do crente é orar para que Deus faça alguma coisa.

Tirando talvez uma linha mais liberal do protestantismo, (por liberal aqui entendo a linha protestante que dialoga com um criticismo literário do final do séc XIX e séc XX) tanto os evangélicos como os protestantes aceitam basicamente a mesma metafísica subjacente. A meu ver a diferença se dá na forma como cada um dos grupos se coloca diante da sua tarefa no mundo. Enquanto o protestante se coloca como ativo, o evangélico se coloca como passivo. Enquanto o protestante assume a responsabilidade da mudança, o evangélico joga o principal desta mudança em Deus.

Uma outra diferença que cabe ressaltar também é que no protestantismo há uma leitura mais assídua do texto bíblico de uma forma mais sistemática que na igreja evangélica. (o que em várias igrejas históricas leva a uma postura mais fundamentalista) Na igreja evangélica a leitura bíblica é mais "instrumental", ou seja, ela é feita por alguém no culto para embasar uma preleção, ou como introdução a um cântico no louvor, etc. Dentro das igrejas evangélicas neopentecostais a bíblia geralmente não é lida.

O protestantismo atualmente acredito pode ser visto mais presente em algumas igrejas históricas, embora como afirmado acima é difícil achar uma coesão completa entre as próprias igrejas protestantes, enquanto que o "evangelicalismo" pode ser visto mais nas igrejas pentecostais e neopentecostais.

O "evangelicalismo" hoje, muito por conta da teologia da prosperidade não tem mais uma preocupação social, mas apenas individual. A riqueza é vista como "benção de Deus", mas ela se torna um fim em si mesmo. O importante é o indivíduo adquirir aquilo que ele quer de Deus.

Algo curioso a se ressaltar é que Deus e instituição são tomadas como sinônimos nesta relação, mas apenas na hora do "sacrifício do membro". Afinal, quando se oferta, oferta-se para Deus e não para a instituição, embora saibamos que quem recebe e usa esse dinheiro (e as vezes usa-se muito mal) é a própria instituição na figura dos seus líderes. Agora, a própria instituição e seus líderes se eximem de providenciar aquilo que o membro pediu, afinal de contas, ele pediu e deu a oferta para Deus, então a "responsabilidade" para se conceder o "pedido" cabe a Deus, e não à instituição. A dinâmica portanto se mostra muito perversa para o membro e muito cômoda para o líder institucional.

Se o pedido do membro for atendido, a honra é do líder que incentivou o membro a ofertar, agora se o membro não adquire aquilo que pediu, o diagnóstico é sempre a falta de fé do membro. Ou seja, se der certo, mérito do líder, se der errado, culpa do membro.

Se, no princípio do protestantismo, como atestado por Weber, há um "ir pra fora" em um incentivo ao acúmulo de riqueza que impulsiona o capitalismo, no "evangelicalismo" esse "ir pra fora" é traduzido em um "vir para dentro", e a dinâmica do capital proporciona apenas um "bem-estar" ao líder da instituição e não se traduz em benesses sociais, a não ser quando estas beneficiam os próprios líderes destas instituições.

Casos comuns são os vistos hoje com a bancada evangélica no congresso brasileiro que apenas corrobora grande parte do que falamos aqui.

O assunto como pode ser visto é muito amplo e o que pretendemos aqui foi apenas um panorama da atual situação do protestantismo e do "evangelicalismo" brasileiro. Claro que tal panorama se dá aqui de forma limitada por se tratar de um blog, mas é algo que com certeza merece outros posts para trabalhar vários apontamentos dados aqui.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Sobre 08 de Março - Dia internacional da Mulher



É claro que hoje no dia 08/03 as mulheres devam ser parabenizadas pelo seu dia, afinal é uma questao de "direito adquirido". No entanto, é sempre bom lembrar que apenas em uma cultura extremamente machista há esta possibilidade de reservar "um dia"para lembrar e tentar compensar todo o descaso que se há com elas neste tipo de sociedade. A dinamica social acaba por criar meios paleativos de "homenagear" quem é esquecida quase todos os dias pelos mesmos meios que hoje criam tal dinamica social. Enfim, Parabéns pelo dia das Mulheres, mas nao esquecamos que todos os dias devem ser dia das mulheres, dia da igualdade de gënero, dia da igualdade de oportunidades, dia da valorizacao da mulher, dia da nao-vulgarizacao da mulher, dia de ve-la nao como "objeto sexual" (dadas as inúmeras propagandas que vemos hoje em dia nesse sentido, tais como cervejas, cigarros, roupas, etc), só assim, acredito que poderemos felicitar as mulheres todos os dias e nao apenas um dia no ano.

A dinâmica evidenciada no parágrafo acima se mostra tão perversa a ponto de transformar toda a comemoração em algo meramente comercial, e se o princípio regulador será o comércio, nada melhor que transformar o "objeto homenageado" como mercadoria, que é geralmente o que é feito. Percebe-se dessa forma a completa degradação tanto do valor da comemoração quanto do próprio mecanismo social.
Neste sentido, tudo pode ser transformado em mera mercadoria de consumo. Esta apropriação tanto social quando midiática foi muito bem ilustrada por Marx e vários outros depois dele, é algo que até hoje merece nosso questionamento.

A dinamica relacional também se mostra deturpada nesta relacão criada pelos meios de comunicação. Em uma sociedade em grande medida narcísica, o outro enquanto alguém diferente de mim tende a ser visto como mera projeção minha. A dinamica do Eu-Tu tão bem ilustrada por Feuerbach perde lugar para a relação Eu-Isso tão bem ilustrada por Martin Buber. Neste dia 08 de março todas estas relações aparecem de forma muito escancarada e apenas quem não tem olhos para ver que não veem.

Feuerbach muito bem nos mostrou e nesta linha também seguiu Buber que o Tu sempre se coloca ao Eu como limite. Na presença do Tu eu me vejo como ser finito, como ser incompleto e ao mesmo tempo como um ser-diferente-do-outro. O Tu portanto se mostra como necessário para me ver como indivíduo. Se não houvesse o Tu, todas os outros seriam como que "iguais" a mim e eu mesmo não me diferenciaria de ninguém. Por isso que a relação Eu-Tu se mostra como paradigma da relação do indivíduo com o mundo.

A relação Eu-Isso evidenciada por Martin Bubber evidencia que ao estabelecer a relação com o Isso não há um envolvimento de caráter pessoal. O "Isso" é apenas um objeto para mim e dessa forma toda relação se pauta apenas na necessidade imediata com determinado objeto. Ele é algo a ser apenas "estudado", com o qual eu não me relaciono humanamente, mas apenas como objeto de conhecimento, uma relação onde o caráter humano, o caráter de encontro se perdeu.

A Mulher, homenageada hoje, tida como o Tu essencial, da qual todos os outros homens dependem é vista no resto do ano como um "Isso", como mero troféu por parte da mídia, como enfeites nos programas de auditórios. Há algo que se perde nessa dinamica, e é exatamente o caráter personalíssimo do indivíduo, e neste caso específico, da mulher.

Diante dessa degradação, o Tu sendo transformado em um Isso não há como esperar uma relação diferente da comercial em dias de comemoração como pretendem fazer hoje. E esta dinamica voltará a acontecer no dia das mães, dos pais, natal, etc..

Muito poderia ser dito, mostrar como que esta crise da identidade carente de um Tu influencia em nossos relacionamentos líquidos de hoje, para usar a expressão do Zygmunt Baumann, mas por hora fiquemos por aqui...

domingo, 4 de março de 2012

Quando ninguém te encontrava, te encontrei...


Quando ninguem te encontrava, te encontrei.

E a partir daí comecamos a caminhar juntos pelos caminhos da vida. Não que estivesse a procura de algo ou alguém, simplesmente aconteceu.

Vicissitudes do capital.

Por que nos aproximamos para além da relação capitalista e empregatícia não conseguimos entender, apenas fomos vivendo e como que por um milagre, aquilo que era meros encontros casuais se solidificou e cresceu e nos tornamos próximos, confidentes e cúmplices.

Na alegria e na tristeza, nas celebrações e nas angústias, assim, leve como toda amizade deve ser nos encontramos e vamos caminhando.

Quando os dias são alegres, conseguimos nos alegrar um com o outro, quando são tristes, conseguimos nos entristecer juntos.

Afinal, a amizade pressupõe a cumplicidade, a cumplicidade pressupõe o cuidado, o cuidado pressupõe o amor.

E nesse viver de cada dia, nos aproximamos cada vez mais, e isso nos faz feliz.

Quem dera que com essa felicidade da cumplicidade todos os outros problemas fossem amenizados, resolvidos, tornados inexistentes... Mas infelizmente não é assim que a coisa acontece.

Nossa cumplicidade não resolverá os problemas, mas nos consolará quando os dias não forem bons, quando as nuvens insitirem em impedir o brilho do sol.

Às vezes o consolo virá pela simples presença, no silêncio da companhia, virá sentado em algum lugar tomando alguma coisa, comendo um pão na relação de trabalho, na conversa na companhia do ar condicionado.

A única certeza que temos ao nos tornarmos amigos e cúmplices de alguém é a certeza da presença do outro nos momentos difíceis, e esta talvez seja a única coisa que precisamos para nos sentirmos capazes de sobreviver aos dias maus e alcançar a paz de espírito em momentos onde a bonança é inexistente.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Fé e crédito - Observações de Giorgio Agamben









Para entender o que significa a palavra "futuro", é preciso, antes, entender o que significa uma outra palavra, que não estamos mais acostumados a usar, senão na esfera religiosa: a palavra "fé". Sem fé ou confiança, não é possível futuro. Só há futuro se pudermos esperar ou crer em alguma coisa.

Sim, mas o que é fé? David Flüsser, um grande estudioso da ciência das religiões – também existe uma disciplina com esse estranho nome – estava justamente trabalhando sobre a palavra pistis, que é o termo grego que Jesus e os apóstolos usavam para "fé". Um dia, ele se encontrava por acaso em uma praça de Atenas e, em um certo momento, levantando os olhos, viu escrito em caracteres capitais, à sua frente: Trapeza tes pisteos. Estupefato com a coincidência, olhou melhor e, depois de alguns segundos, se deu conta de que se encontrava simplesmente diante de um banco: trapeza tes pisteos significa, em grego, "banco de crédito".

Eis qual era o sentido da palavra pistis, que ele estava tentando entender há meses: pistis, "fé", é simplesmente o crédito do qual gozamos junto de Deus e do qual a palavra de Deus goza junto de nós, a partir do momento em que acreditamos nela.

Por isso, Paulo pode dizer em uma famosa definição que "a fé é substância de coisas esperadas" [ou, segundo a versão da Bíblia Pastoral, "um modo de já possuir aquilo que se espera"]: ela é o que dá realidade àquilo que não existe ainda, mas em que acreditamos e confiamos, em que colocamos em jogo o nosso crédito e a nossa palavra. Algo como um futuro existe na medida em que a nossa fé consegue dar substância, isto é, realidade às nossas esperanças.

Mas a nossa época, como se sabe, é de escassa fé ou, como dizia Nicola Chiaromonte, de má-fé, isto é, de uma fé mantida à força e sem convicção. Portanto, uma época sem futuro e sem esperanças – ou de futuros vazios e de falsas esperanças. Mas, nesta época muito velha para crer realmente em alguma coisa e esperta demais para estar verdadeiramente desesperada, o que será do nosso crédito, o que será do nosso futuro?

Porque, olhando bem, ainda há uma esfera que gira totalmente ao redor do eixo do crédito, uma esfera em que acabou toda a nossa pistis, toda a nossa fé. Essa esfera é o dinheiro, e o banco – a trapeza tes pisteos – é o seu templo. O dinheiro nada mais é do que um crédito, e sobre muitas notas de crédito (sobre a libra esterlina, sobre o dólar, mesmo que não – sabe-se lá por que; talvez deveríamos começar a suspeitar disso – sobre o euro) ainda está escrito que o banco central promete garantir esse crédito de algum modo.

A chamada "crise" que estamos atravessando – mas aquilo que se chama de "crise", isso já está claro, nada mais é do que o modo normal em que funciona o capitalismo do nosso tempo – começou com uma série insensata de operações sobre o crédito, sobre créditos que eram descontados e revendidos dezenas de vezes antes que pudessem ser realizados. Isso significa, em outras palavras, que o capitalismo financeiro – e os bancos que são o seu órgão principal – funciona jogando sobre o crédito – ou seja, sobre a fé – dos homens.

Mas isso também significa que a hipótese de Walter Benjamin, segundo a qual o capitalismo é, na verdade, uma religião e a mais feroz e implacável que jamais existiu, porque não conhece redenção nem trégua, deve ser tomado ao pé da letra. O Banco – com os seus funcionários pardos e especialistas – tomou o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito, manipula e gerencia a fé – a escassa e incerta confiança – que o nosso tempo ainda tem em si mesmo. E o faz do modo mais irresponsável e sem escrúpulos, tentando lucrar dinheiro com a confiança e as esperanças dos seres humanos, estabelecendo o crédito de que cada um pode gozar e o preço que deve pagar por isso (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram à sua soberania).

Desse modo, governando o crédito, ele governa não só o mundo, mas também o futuro dos seres humanos, um futuro que a crise torna cada vez mais curto e a prazo. E se hoje a política não parece mais possível, isso se deve ao fato de que o poder financeiro sequestrou de fato toda a fé e todo o futuro, todo o tempo e todas as expectativas.

Enquanto essa situação durar, enquanto a nossa sociedade que se acredita laica permanecer subserviente à mais obscura e irracional das religiões, será bom que cada um retome o seu crédito e o seu futuro das mãos desses tétricos pseudosacerdotes, banqueiros, professores e funcionários das várias agências de rating. E talvez a primeira coisa a fazer é parar de olhar apenas para o futuro, como eles exortam a fazer, para, ao contrário, voltar o olhar para o passado.

Apenas compreendendo o que aconteceu e, sobretudo, tentando entender como pôde acontecer, será possível, talvez, reencontrar a própria liberdade. A arqueologia – não a futurologia – é a única via de acesso ao presente.

Artigo de Giorgio Agamben publicado no jornal La República em 16/02/2012.
Disponível no link http://www.ihu.unisinos.br/noticias/506810-quando-a-religiao-do-dinheiro-devora-o-futuro-artigo-de-giorgio-agamben