quarta-feira, 9 de julho de 2014

Pequena reflexão sobre o livro de Jó



Algo interessante sobre o livro de Jó e que geralmente muita gente acaba por deixar batido é que o texto em si é uma grande crítica à teologia da retribuição tão famosa entre os judeus da época. E não apenas da época, mas desde o Deuteronômio. A "segunda lei" (Deutero + nomos) é bastante enfática em vários textos sobre a doutrina da retribuição e não precisamos buscar muitos textos para corroborar isso. Remeto o leitor ao capítulo 28 de Deuteronômio que já ilustra muito bem o que digo. 

A teologia da retribuição propõe que "se formos bons, Deus nos retribuirá com  o que é bom, se formos mau, Ele nos retribuirá com o que é mau." Essa teologia está presente em vários livros do Antigo Testamento e é atualizada no Deuteronômio. 

O livro de Jó e também o livro do Eclesiastes visa romper com a teologia da retribuição mostrando que a realidade tem muito pouca coisa a ver com a proposta do Deuteronômio. O Eclesiastes chega a ser até bem enfático ao apresentar que "há justos a quem sucede segundo as obras dos ímpios, e há ímpios a quem sucede segundo as obras dos justos". (Ec 8:14), ou seja, por mais que o autor de Deuteronômio queira fazer com que o mundo seja lido mediante uma retribuição simples, a realidade insiste em ir contra tal programa. 


A datação do livro de Jó se dá mais ou menos pelo séc. V a.C, ou seja, já bem posterior ao livro do Deuteronômio (Vários teólogos exegetas debatem a datação do texto, mas vários aceitam que o Deuteronômio data mais ou menos entre o Sec VII a.C.) e onde já há uma interface hebraica com o mundo grego e também já há uma assimilação grande da cultura dos babilônios e persas por parte do mundo hebreu. Essa troca com outras culturas permite que o mundo hebraico se expanda para além de uma visão de mundo mais fechada em si mesmo para tentar observar o mundo de maneira mais ampla. 

O livro de Jó é todo ele construído como uma tentativa de romper com a teologia da retribuição. Jó, que no relato é um homem justo, passa o livro todo afirmando que não fez nada para merecer o que está sofrendo enquanto seus amigos insistem que ele "vasculhe em suas ações" para encontrar o "quando" cometeu algum pecado, pois é inconcebível que Deus traga tanto mal sobre a vida de uma pessoa se ela não tiver cometido mal algum. 

À medida que a narrativa vai caminhando vemos a mesma dinâmica se efetivando até que Jó questiona o próprio Deus para saber o motivo de seu sofrimento. Com inúmeras perguntas Jó O questiona e, no entanto, Deus o responde com mais outras perguntas das quais Jó não consegue responder. 

Vários estudiosos da literatura sapiencial aponta que o livro de Jó termina em Jó 42:6: "Por isso me abomino e me arrependo no pó e nas cinzas." E o que vem posterior a isso teria sido incluído posteriormente por um escriba. 

(Sobre o ponto acima recomendo o excelente trabalho de José Vichel Lindez chamado "Eclesiastes ou Qohelét - Grande comentário bíblico" Paulus 1999 onde Lindez traz inúmeras referências e estudos de outros pesquisadores da literatura sapiencial que corroboram tanto a datação provável do texto do livro de Jó quanto o seu final em Jó 42:6)

Para vários teólogos o que se segue após Jó 42:6 se trata de um acréscimo posterior. Se prestarmos atenção ao texto que se segue a Jó 42:6 , onde Deus restitui tudo a Jó, o que o escriba faz é deixar entrar pela porta de trás tudo aquilo que todo o texto expulsa pela porta da frente que é a teologia da retribuição. Ao acrescentar uma espécie de "restituição" a Jó no final do texto, o escriba acaba por corromper a crítica que o texto  propõe. A teologia da retribuição que é negada durante todo o texto ressurge sob a pena do escriba em todo o seu esplendor no final do livro. Percebe-se com isso que tal teologia ainda é muito forte no período da escrita do texto de Jó, e um texto que acaba tendo apenas um homem em sua angústia sem as respostas divinas, com certeza seria um texto com pouquíssima aceitação nos meios mais conservadores. A noção de uma "restituição" é completamente estranha à literatura sapiencial bíblica e isso apenas corrobora a hipótese de um acréscimo posterior no texto. 

O texto terminando em Jó 42:6 dá ao texto um caráter humano demasiado humano, pois o que temos aí é um homem com inúmeros questionamentos, sem resposta, sem nada, apenas munido de sua fé. É a situação de inúmeras pessoas nos nossos dias, que a cada dia estão mais sem perspectivas, que precisam enfrentar a solidão, a acusação dos amigos, o abandono da família, o sentimento de solidão e a angústia diante do mundo sem que ninguém apareça para lhe confortar. 

A meu ver o texto de Jó nos remete à angústia diante do sofrimento que acomete a todos em algum momento da vida. Buscamos respostas, questionamos até mesmo ao próprio Deus e às vezes o que obtemos são  mais perguntas que nos inquietam ainda mais. Ao invés de um conforto da restituição temos diante de nós apenas perguntas que nos remetem a avaliarmos a nossa própria condição diante das coisas. O que temos são perguntas das quais nós também não temos respostas, assim como o outro lado se mostra como um grande vazio que não provê respostas, mas sim perguntas. 

Diante do sofrimento sem sentido, da angústia do mundo, dos momentos difíceis, o livro de Jó nos propõe olhar para nós mesmos, investigar para conhecer os caminhos por onde andamos para que possamos manter a calma da consciência tranquila de quem nada fez para merecer o que se passa. Ao mesmo tempo o livro de Jó nos leva a olhar para a nossa realidade e perceber que às vezes pouco podemos fazer para mudar o que nos acomete. Mas isso não nos leva a uma estagnação. Jó não se estagnou. Ele questionou, ele argumentou, ele se propôs contra tudo e contra todos afirmar a sua fidelidade aos seus princípios. 

Longe de propor uma resignação diante de um mundo que aparece sem sentido, o que Jó nos propõe é um agir baseado no que se crê. Não um agir que espera uma retribuição, pois tem consciência que  ela não existe, pois tem consciência que acima de si não se encontra um Deus sádico que se regozija no sofrimento alheio, ou que aposta para ver até onde vai a sua fé , mas um agir que visa uma auto-afirmação do humano, e ao mesmo tempo uma fé em Deus que pode ser questionado porque não é um Deus sádico, mas um Deus cuja misericórdia se renova a cada dia.  

A lenda sobre Jó enquanto um homem diante da angústia se assemelha a todos nós e por isso talvez possamos tomar o seu exemplo como um bom exemplo para nós. Jó nos faz pensar em todos aqueles  dos quais também são tiradas todas as coisas, dos que se encontram à margem do mundo, lembrar dos feridos das guerras, lembrar de Gaza, Pinheirinhos, os povos indígenas, e tantos outros dos quais são tirados todos os direitos restando apenas a sua fé em algo, quando conseguem mantê-la. O exemplo de Jó nos aponta que é possível talvez manter a fé, apesar de toda situação adversa, e que para além disso, nos aponta que é possível também agir com o que se têm para tentar fazer do seu mundo um mundo com sentido. 

As perguntas de Jó são perguntas pelo sentido do seu sofrimento, mas mesmo quando as respostas não vêm, isso não o impede de agir. 

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Fragmentação de si via email ...



Por algum motivo que Horácio não compreendia, resolveu mandar um email. Pensou, pensou, rabiscou algumas coisas antes em seu caderno e depois começou a digitar. Não sabia muito bem o que escrever pois a situação lhe parecia um pouco delicada, mas ao mesmo tempo não queria tratar do assunto pessoalmente por talvez achar que seria um tanto quanto invasivo.
De toda forma, achou que o email seria uma boa alternativa e pôs-se a escrever. Achei o email bem escrito, embora meio vago em relação ao assunto. Também não fica muito claro sobre o que se trata, nem para quem é endereçado tal email, e muito menos se foi enviado ou não dada a sua última frase, mas em todo caso Horácio se sentiu aliviado por ter escrito. Honestamente espero que tenha conseguido resolver o que se propôs com o email. Espero até que tenha enviado ao seu destinatário.

Em todo caso, no email,  Horácio escreveu assim:

"Eu sei que não serão palavras que te farão mudar.
Nem sei se isso seria necessário.
Penso talvez que sua situação exija esse tipo de comportamento. Estranho talvez, mas mesmo assim, um comportamento válido. Talvez seja só comigo, embora algumas pessoas tenham comentado que você tem andado estranha.

Claro, claro, ninguém tem nada a ver com sua vida, seus problemas compete a você e a quem você quiser compartilhar. A vida é assim mesmo.

Lembro de ter te dito certa vez que se afastar é bom às vezes, mas para você tomar cuidado para não se afastar demais.

Acredito que a maioria das pessoas não percebe. Acredito que para elas, tudo está normal, como sempre esteve, como sempre estará.

Não temos o hábito de nos preocupar com os outros. Sabe como é. Vai que o outro acha que estamos com segundas intenções? Vou me preocupar pra quê? É estranho quando aparece um que faz isso. Sei lá.

Melhor viver minha vida como se nada estivesse acontecendo. Afinal, o que os outros tem com ela mesmo?

Acho tudo muito curioso. Acho tudo muito intrigante. Sei lá porque.

Tentei com minha mente encontrar talvez algum nexo, encontrar um "fio de Ariadne" que me conduzisse pra fora do labirinto. Confesso que não encontrei.

Não consigo entender onde isso te incomoda, o porque isso incomoda. Já te disse diversas vezes que são apenas gestos gratuitos. Não quero nada em troca, apenas amizade. Saber que se importa. Até onde consigo ler, sei que se importa, talvez demonstre de forma diferente, mas ainda acredito que se importa.

Por que é tão difícil aceitar esses gestos?

Como você mesmo me disse, é uma fase de transição. Ou melhor, recuperação. Sei que precisa de tempo, precisa de espaço talvez.
Desculpe minhas constantes interrupções em seu silêncio com assuntos que não servem pra nada e muito menos são do seu interesse.
Tentarei ficar mais calado ao seu lado. Se não tenho nada pra oferecer que lhe interesse no momento, então é melhor ficar calado.

Nem sei se vou te mandar isso, sinceramente não sei."





sexta-feira, 30 de maio de 2014

Reflexão sobre uma frase de Freud

Imagem: http://expressionismosidrene.blogspot.com.br/2007/04/o-andarilho-da-noite-14x20.html

"O viajante surpreendido pela noite pode cantar alto no escuro para negar seus próprios temores; mas, apesar de tudo isto, não enxergará mais que um palmo adiante do nariz." (FREUD, Sigmund. in Inibições, Sintomas e Ansiedade. 1926/2006 p. 12)

Freud, como a maioria das pessoas deve saber, era um grande entusiasta com a causa científica. Seu ardor para com a ciência foi em parte o que muito o motivou a empreender as investigações que se propôs sobre o psiquismo humano. Empreendimento esse que culminou na criação da psicanálise.
Desde o início, Freud quis que a psicanálise fosse aceita nos círculos científicos de sua época como uma ciência legítima que possuía métodos bem definidos e não mediu esforços para que isso se tornasse realidade, apesar de toda a crítica que enfrentou desde o início de seu trabalho.

Como para ele, a psicanálise deveria ser entendida como ciência, faria muito pouco sentido pensar que a psicanálise poderia formular uma "visão de mundo" (weltanschauugen) independente ou diferente da cientifica. Por princípio ela deveria adotar para si a visão de mundo científica. Nesse texto, ele até afirma que essa questão de "construir visões de mundo" poderia ser deixada aos filósofos que sempre gostam de fazer este tipo de coisa, mas que isso estava longe de ser o objetivo da psicanálise. Muito pelo contrário, a psicanálise, por se basear na clínica, na experiência dos casos, no "um a um", estaria sempre disposta a rever os seus conceitos se as experiências clínicas assim a exigisse.

Essa noção de uma "infinita construção" que Freud atribui à psicanálise é algo digno de respeito e nota em relação à utilização do método científico. A construção deve se dar seguindo o método científico por excelência. Não adianta queremos subterfúgios que nos levarão para longe do trabalho árduo que a ciência exige. Daí o contexto da frase que abre este texto. Ou seja, o fato de cantarmos para negar os nossos medos durante a noite, não nos ajuda a enxergar melhor. Se não formos pacientes na nossa pesquisa, e estivermos dispostos a rever nossas constatações a todo momento, dificilmente chegaremos a um resultado sólido que trará benefícios à ciência.

Freud, nessa frase está fazendo novamente uma crítica à religião e mais especificamente ao "catecismo da igreja" que para ele, deveria ser substituído pelo método científico. Apenas o método científico poderia tirar este homem da noite em que ele se encontra e levá-lo para outro lugar, mas enquanto isso, ele insiste em "cantar alto no escuro" perpetuando a sua condição. (Para quem não sabe, Freud fazia duras críticas à religião e a via como uma grande ilusão da humanidade na tentativa de lidar com seu desamparo estrutural. Tentativa essa fadada ao fracasso)

O cientificismo de Freud é algo louvável enquanto método de pesquisa, mas a meu ver, Freud deixa de lado nesta metáfora que usa, o fato de que aquele que canta para negar os seus temores, já não se coloca na noite da mesma forma. Ao cantar ele é outro, ele é um homem que não aceita a imposição da noite sobre ele, mas quer fazer com que a sua experiência na noite adquira um sentido. Ele, ao cantar, busca algo que transcende a sua condição. Busca algo que o método científico não é capaz de lhe dar por mais que tente. Com isso, esse novo homem não está "criando uma nova realidade", mas re-significando a sua experiência a partir do seu desejo. É por experienciar a realidade na sua forma mais crua que o homem se recusa a viver da mesma forma e ousa cantar para que a noite possa ser mudada.

A ciência nada pode ajudar este homem que começa a cantar. Mas esse homem também não precisa da ciência para simbolizar e significar a sua experiência na noite. Temos que concordar com Freud que o canto daquele homem em nada o fará enxergar melhor durante a noite, mas temos que afirmar também que, apesar disso, esse homem poderá enfrentar melhor a noite que lhe sobrevém quando começa a cantar.


sexta-feira, 16 de maio de 2014

17/05/2014 - Dia de Festa... 31 anos






"Nada é mais sério do que uma festa: nada concilia e emblema melhor a dupla paixão humana pela liberdade por um lado e pelo ritual por outro. Uma festa é um dia programado para ser fora do programa, e essa contradição encarna mais do que qualquer outro aspecto da cultura os contrastes da condição humana.

Os antropólogos entenderam há muito tempo o engano que seria continuar dividindo festas populares entre sagradas e profanas, visto que cada festa que encontrou ocasião de se entremear no calendário das gentes celebra a seu modo uma entrada no domínio do que não pode ser dito, visto ou explicado: o domínio do sagrado, que só pode ser explorado indiretamente.

Uma festa é um encontro que marcamos com aquilo na experiência que não pode ser articulado de outra forma: um encontro com o que só podem expressar a deliberada pausa, o deliberado excesso, o abraço, a risada, a cantoria, a dança, o beijo, o copo erguido para o alto, o banquete, o jogo, a fantasia, a música, a máscara, o cortejo com o caos, a dança com a morte, o balé da alegria de todos os fins e de todos os recomeços. Uma festa é a encenação ritual de um final feliz, e os seres humanos não esboçaram tema ou motivo mais sagrado."

Paulo Brabo http://www.baciadasalmas.com/2014/o-mundo-ao-reverso-e-outros-versos/


Festejemos a sacralidade da vida, 
os momentos felizes, 
os anos que se vão. 

Festejemos o tempo que passou
a lágrima que caiu
os amigos e os irmãos

Festejemos a esperança no porvir

Festejemos! Pois assim nos renovamos
Para o novo ano que se inicia. 

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Reflexões a partir do Getsêmani






Hoje pela manhã conversando com a Laurinha falávamos sobre a experiência de Jesus no Getsêmani pouco antes de iniciar sua prisão e todo o processo que culminou na sua crucificação. Momentos difíceis encarados por Jesus, que precisou enfrentar momentos de tão grande angústia sem o auxílio dos seus próximos. Para exemplificar, basta lembrarmos que os discípulos estavam dormindo enquanto ele orava, que Pedro o negou enquanto ele era julgado, que o povo que o seguiu durante algum tempo foi a voz decisiva que gritava "crucifica-o!" em alto e bom som.

Aquilo que enfrentou Jesus nesse período tão curto, mas tão derradeiro de sua vida, se mostra paradigmático para pensarmos a nossa condição humana, várias vezes extremamente solitária, sem socorro e sem perspectiva de nada. Jesus, como todo homem, sentiu em sua pele a experiência do abandono e o sofreu como quem "chora gotas de sangue". É geralmente nesta hora que a maioria das pessoas acabam por se voltar à uma visão  infantil a respeito de Deus.

Claro que não há nada de errado em clamar a Deus nos momentos de angústia, clamar a Ele durante a solidão, quando todos nos abandonam e ver Nele o auxílio bem presente na hora da angústia. Isso é algo que o próprio Jesus fez. A sua oração no Getsêmani exemplifica este ponto. "Passe de mim este cálice", pediu Jesus. Mas ao invés do alívio veio apenas o silêncio de Deus. Entender o silêncio de Deus é algo que muita gente não consegue. Acostumados a ver a Deus como um pai que sempre está presente, o silêncio de Deus incomoda, e o simples fato de pensar que Deus pode se fazer ausente já atemoriza os mais infantilizados.

Se Deus aparece apenas como a projeção do pai, realmente ele não passa de uma ilusão que deve ser abandonada com o desenvolvimento do homem. É a esta conclusão que Freud chegou ao tratar a questão religiosa. Por isso que para ele era muito fácil considerar a religião como uma grande ilusão, pois o crente se coloca como criança diante de um pai que tudo pode e se recusa a encarar a realidade do mundo de forma adulta. É como se precisasse que o pai estivesse sempre presente pois não consegue andar sozinho. Estabelece-se sempre uma relação ambivalente em relação a Deus para o crente infantil. Ele ama a Deus pois ele o protege, o guarda, etc. mas ao mesmo tempo ele odeia e teme ao pai porque ele o pune e está sempre o vigiando. Deus aparece então como esse ser que não passa das projeções mais infantis do ser humano em relação aos pais.

Jesus nos mostra uma outra relação com o pai. Para além do drama edípico, para além de toda ambivalência em relação ao pai, Jesus encara a Deus como um Outro que não precisa ser temido, que não precisa ser pensado dentro de uma estrutura punitiva, mas também que não precisa ser visto como alguém que sempre está lá. O Deus de Jesus é um deus que é amor, mas por ser amor, é capaz de silenciar diante da dor para que o homem possa experienciar a realidade do mundo por si só. O Deus de Jesus não é um deus sempre presente, mas um Deus que aparece como grande ausência para além de toda projeção. Apenas um deus que ama é capaz de permitir a vivência do outro sem interferência; é capaz de permitir que o homem se responsabilize para com suas decisões sem aparecer como "muleta psicológica" (para usarmos a expressão de Bonhoeffer).

O silêncio de Deus é talvez o grande paradigma desse Deus que é  presença de uma ausência. Um deus que não responde, mas permite a dor, o sofrimento, mas também permite a alegria e o riso sem interferências de nenhum tipo, sem milagres, sem metafísica. Um deus que se faz enquanto "sentido para a existência" e por isso mesmo, amor para além de toda ambivalência. O deus de Jesus se mostra talvez como um grande vazio, mas que por isso mesmo é sempre buscado como "a corça anseia por água".

Diante do silêncio de Deus,  Jesus  poderia simplesmente se negar a continuar o seu martírio, poderia voltar atrás sem precisar sofrer tudo o que sofreu, mas resolveu seguir pois acreditava a ponto de morrer por aquilo. Acreditava tanto, que mesmo diante da morte, da hora mais sofrida de sua vida, foi capaz de dar o salto de fé e dizer "em tua mão entrego o meu espírito", ou seja, mesmo nada ouvindo, mesmo sem nenhuma intervenção, mesmo sem nenhum milagre, mesmo no abandono, Jesus é capaz de se render àquele Deus em que acreditava,  um Deus que não via dentro de uma estrutura ambivalente de amor e ódio, a quem podia chamar Aba Pai, pois não era simplesmente uma projeção paterna, mas um Aba Pai que transcendia uma estrutura edípica e culminava em um amor que não se manifesta enquanto representação, mas enquanto ação para com o outro.

Jesus nos mostra que a relação com Deus deve ser uma relação adulta e não uma relação infantil. Que nossa relação com Deus deve ser capaz de compreender que mesmo no abandono de Deus somos capazes de dar o salto de fé e nos lançarmos em direção a esse Deus, que por ser amor, nos acolherá. Mesmo que nada garanta esse acolhimento, Jesus nos ensina que vale a pena nas mãos de Deus entregar o nosso espírito.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Silencio-me

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             




















                                                                                                         Silencio-me.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

A proposta de Jesus para construção de casas



Jesus certa vez disse aos seus discípulos que "todo aquele, pois, que escuta estas minhas palavras, e as pratica, assemelhá-lo-ei ao homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha;
E desceu a chuva, e correram rios, e assopraram ventos, e combateram aquela casa, e não caiu, porque estava edificada sobre a rocha.
E aquele que ouve estas minhas palavras, e não as cumpre, compará-lo-ei ao homem insensato, que edificou a sua casa sobre a areia;
E desceu a chuva, e correram rios, e assopraram ventos, e combateram aquela casa, e caiu, e foi grande a sua queda. Mateus 7:24-27

Gosto de pensar que nestes versículos temos um ensinamento bastante interessante para tempos tão hipermodernos. Basicamente Jesus coloca duas possibilidades para a construção de uma casa. Ou se constrói sobre a rocha, ou se constrói sobre a areia. A vantagem de se construir sobre a rocha é o fato de que ela suporta as adversidades enquanto a que é construída sobre a areia não. Ou seja, é muito mais vantajoso construir a casa sobre a rocha se quisermos que tal casa permaneça apesar das intempéries. 

Um dado que penso ser curioso é o fato de que a areia das praias é formada à partir da abrasão marinha (força que as ondas exercem sobre as rochas), que é uma espécie de processo erosivo, que deposita seus sedimentos (grãos de areia) na sua planície de inundação (que é a praia). Ou seja, a areia da praia é constituída por pequenas partes de rochas que são "lascadas" pelo tempo e pelo mar, ou seja, pela intempéries que atingiram a rocha e a fizeram ser depositada na praia. 

O que quero dizer com isso é que podemos construir nossas relações tanto com os outros quanto com Deus dentro de uma dessas perspectivas. Podemos construir sobre a areia, ou seja, em alguns aspectos que aparentemente são sólidos, mas que não resistem à nenhuma intempérie, como por exemplo quando nos relacionamos com Deus visando algo em troca, ou quando apoiamos nosso relacionamento naquilo que supostamente Deus pode ou não fazer por mim, se ele fez ou não um milagre em determinado momento, etc. Estas coisas mesmo tendo um aspecto de "certeza indubitável", não fazem com que a casa construída sobre ela resista às intempéries que a vida traz para o sujeito. Essas construções estão sobre a areia. 

Da mesma forma, vários relacionamentos na contemporaneidade se fundam no mesmo princípio. Como tudo precisa ser muito rápido, não se dá tempo para que algo seja construído sobre a rocha, mas as demandas sempre urgentes fazem com que os relacionamentos se baseiem em pequenos pontos de apoio. Esses pontos de apoio dão a impressão de que o relacionamento está sendo construído sobre uma base sólida, mas a própria dinâmica da vida será capaz de mostra que tal empreendimento tem apenas a aparência de se estar sobre a rocha. Obviamente que a preferencia pela construção sobre a areia é devido à facilidade de tal construção. Construir sobre a areia demanda menos esforço, é mais rápido, às vezes até mais barato que uma construção sobre a rocha, o que torna tal empreendimento muito mais atrativo. No entanto, sabemos que a tendência é que este relacionamento construído sobre a areia da praia não resista às intempéries que lhe sobrevém. O imediatismo da construção é diretamente proporcional ao imediatismo da ruína. 

Dentro do contexto eclesiástico vi várias casas construídas sobre a areia, sobre emoções, sobre "experiências espirituais". Era tudo muito rápido, era uma espécie de arrebatamento que tomava o sujeito e ele se transformava da noite para o dia. Uma nova casa a cada noite. Com o passar do tempo veio as intempéries e a casa construída rapidamente logo veio abaixo pois estava construída sobre a areia. A mesma coisa já vi acontecer com relacionamentos fora do contexto eclesiástico. Tudo acontecendo muito rápido, sem sedimentação, sem diálogo, apenas uma grande "passagem ao ato" típico de um comportamento psicótico. Uma espécie de loucura visando sempre um gozo imediato, mesmo que perpassado por um discurso de "valor do outro" que a meu ver várias vezes é esquecido no processo. Novamente uma casa construída sobre a areia que quando é atingida pelas intempéries não tem onde se apoiar e cai. A liquidez tão aclamada pelo Bauman se mostra aqui também. Em uma sociedade líquida, tudo que é sólido realmente se desmancha no ar. Não há tempo para que algo sólido seja edificado.

A construção sobre a rocha se mostra como espécie de subversão em uma sociedade líquida. A proposta de Jesus de uma construção sobre a rocha propõe subverter, dentro do contexto eclesiástico, todo tipo de moralismo que sempre dá um ar de estar firmado em terreno firme, mas se mostram ancorados na areia da praia, ou seja, em fragmentos de rocha. Talvez por isso o critério para saber se algo está na rocha ou na areia seja a "prática". Ou seja, aquele que ouve e pratica está sobre a rocha, quem ouve e não pratica não está. Apenas pela prática é que é possível ver onde está ancorada a casa. Tal proposta já é explicitada nos versículos 16 ao 21 do capítulo 7 de Mateus. 

Quando penso nos relacionamentos tanto para com Deus quanto outros tipos de relacionamento, sempre penso que seria muito bom se todos fossem construídos sobre a rocha, ou seja, de forma calma, serena, bem fundamentados, em uma dinâmica que não exigisse pressa, não exigisse "provas", mas a partir do diálogo, a partir de ouvir a palavra, tanto divina, quanto do outro. Um relacionamento baseado em uma troca dialogal que não precisa correr para nada pois sabe que todo trabalho bem feito demanda tempo, demanda esforço. 

A proposta de Jesus realmente parece bem estranha dentro de uma sociedade contemporânea e com certeza vários a acharão "difícil de praticar", mas a meu ver, Jesus nos incita a nos posicionarmos como aqueles dispostos a não sucumbir à dinâmica do "tudo rápido", mas a tomarmos a dimensão temporal como aspecto fulcral da nossa relação com o mundo e não apenas a dimensão espacial onde tudo ocorre sem a presença do tempo. 

Que possamos construir nossos relacionamentos tanto com Deus quanto com os outros sobre a rocha. Este é o convite !