terça-feira, 30 de agosto de 2016

Enquanto assistia ao Discovery Home & Health





A guerra aparentemente é algo que sempre acompanhou a história humana, de forma que podemos dizer sem sombra de dúvida que ela faz parte da própria humanidade. A não ser que mantenhamos uma espécie de ilusão em uma época em que todos viviam em paz e segurança, temos que aceitar que a guerra sempre se fez presente. 

Como toda disputa, a guerra, sendo a pior de todas, deixa extremamente marcada a posição do vencedor e do vencido. Ao primeiro é dado toda a glória, o direito aos despojos, os bens, etc. Ao segundo grupo é dado a vergonha, a humilhação, a morte, a tortura, etc. 
Inúmeras guerras poderiam ser lembradas por nós, mas  acredito que nenhum de nós gostaríamos de ter vivenciado alguma guerra in loco; isso porque por excelência a guerra é algo que gera dor, desgraça e grande destruição. 

Outro dia comentei com a Pri que acho extremamente curioso o fato de hoje haver inúmeros programas televisivos que fazem alusão ao caráter bélico. No Discovery Home & Health são vários programas culinários que trazem esse tom.

"Batalha dos cozinheiros"
"Guerra dos cupcakes"
"Guerra dos Donuts"
"Esquadrão da moda"
"Missão em família"

Apenas para citar alguns. 

Fiquei pensando em como talvez essa dinâmica bélica não seria uma forma "soft" de lidar com a constante ameaça de guerra que assola o mundo como um todo, e os Estados Unidos de maneira particular. (Cito os Estados Unidos porque todos esses programas citados acima são produzidos lá.)
Não podemos pensar que o tom bélico em programas culinários não seria uma tentativa de trazer a tona de forma "humorada" um medo que assola o inconsciente ? 
E se for assim, a presença massiva da dinâmica da guerra  em programas que deveriam ser relaxantes não evidenciaria que há algo de incômodo em toda essa dinâmica que não cessa de ser dito e re-dito, mas apenas pela via do simulacro?
Como se de alguma forma estar constantemente vivenciando a experiência de estar em guerra fosse capaz de mitigar o medo latente de que de fato uma grande guerra ocorra.
O caráter administrado do programa de TV possibilita que, por mais tensa que seja, a simulação não fuja do controle, garantindo assim uma sensação de segurança e provisoriedade que mantém a ideia do programa viva. 

A cada novo episódio se estabelece uma nova "missão" que logo terá fim e permitirá que se conheça rapidamente vencedor e derrotado. Mas tanto o vencedor quanto o derrotado não sofrem de fato as consequências da guerra; ela é apenas um simulacro, e por isso pode servir como forma de canalizar o medo latente de que o real da guerra irrompa na realidade.

Se a nossa ideia estiver correta, podemos pensar que o jogo possui uma grande vantagem como forma de nos fazer lidar com aquilo que nos incomoda. Ao transformar em jogo uma determinada dinâmica, ou uma determinada situação, fazemos com que aquilo adquira um sentido provisório que revela a minha limitação em tratar do tema, mas ao mesmo tempo evidencia um caráter defensivo diante do estranho diante de mim. 

As constantes batalhas, missões, guerras funcionam como uma tentativa frustrada de esconder nosso incômodo revelando-o sob a forma de jogo. O jogo, como bem nos lembra Huzinga no seu conhecido livro "homo ludens", é uma forma criativa do homem lidar com a natureza, lidar com a própria vida. O jogo faz parte do ato criador de novas realidades, ele mostra que por algum motivo há de se negar o medo e tentar transformá-lo em outra coisa. 
Essa via "positiva" do jogo, a meu ver, esconde talvez algo de recalcado no sujeito contemporâneo. O medo constante da guerra de todos contra todos, o medo de que a guerra saia do caráter lúdico e invada a realidade. Mas ao mesmo tempo o constante reviver por meio do simulacro da situação que nos causa horror não evidencia algo que Freud já nos anos 20 do século passado nos apontou e chamou de pulsão de morte?

Não estaria a pulsão de morte por trás da satisfação encontrada no simulacro da guerra transformada em jogo? 

Essas foram algumas inquietações que tive assistindo ao Discovery Home & Health outro dia a noite aqui em casa. 

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

O que há entre Atenas e Jerusalém?




Quid ergo Athenis et Hierosolymis? Quid academiae et ecclesiae? Quid haereticis et chrsitianis? 
“O que há de comum entre Atenas e Jerusalém? Entre a academia e a Igreja? Entre os heréticos e os cristãos?” (TERTULIANO. Traité de la prescription contre les hérétiques. Livro VII,9. 1957. p.98 em tradução livre)

Um dos aspectos principais da filosofia medieval é o debate entre a fé e razão. Desde os padres apologistas do primeiro século da era cristã até meados do século 15 essa será a tônica de diversos textos escrito por padres, filósofos, teólogos. A frase que abre esse texto é de um desses padres apologistas chamado Tertuliano (160-220 d.C).  Assim se exprime Tertuliano diante das diversas heresias que enfrenta no século II da era cristã. Tertuliano optará por acentuar mais as diferenças entre a fé cristã e a filosofia grega do que acentuar o que elas teriam em comum. Algo interessante a se ressaltar é que o debate entre Atenas e Grécia será algo que dará corpo à teologia cristã em seu desenvolvimento no ocidente. Embora diversos dos padres apologistas dos primeiros séculos do cristianismo tivessem feito um esforço hercúleo para conciliar os pressupostos da fé cristã com as matrizes gregas, sempre houve algo nesse debate que provocava uma espécie de cisão. É como se de alguma forma Jerusalém nunca pudesse ser completamente incorporada por Atenas. Sempre haveria algo que escapava a essa tentativa de assimilação completa.

Apenas esse tema já daria um trabalho enorme para ser elucidado, ainda mais por ser um tema extremamente debatido em toda a filosofia medieval. Mas algo que gostaria de apontar é que podemos dizer que a ruptura estrutural entre o mundo grego e o mundo cristão se dá a partir da noção de criação.
No mundo grego essa noção é completamente estranha, ou seja, por mais geniais que tivessem sido Platão ou Aristóteles e diversos pré-socráticos antes deles, a concepção de que o mundo tivesse um começo causado por um agente externo que não tinha nada diante de si soava extremamente estranha. O universo para os gregos (em linhas bem gerais sem nos ater às inúmeras diferenças entre os diversos filósofos) era eterno, ou seja, sem princípio nem fim, mas onde, de alguma forma, o movimento estaria presente fazendo com que uma coisa se tornasse outra coisa.

Desde Platão com o Demiurgo que contempla as formas puras e molda a matéria, até os primeiros motores de Aristóteles (ele chega ao número de 55 na sua "Física") como causa primeira e ato puro, a causa do que há estaria ela mesma presente no universo que é gerado, ou seja, o movimento que faz com que uma coisa se transforme em outra está presente na própria estrutura das causas primeiras.
Mesmo o Demiurgo platônico (que talvez mais se aproximaria de uma visão cristã sobre Deus no mundo grego) serviria de explicação para o "como" o mundo veio a existir, mas não explicaria o porquê de tal mundo existir, ou seja, ele não é quem "cria" o mundo, mas apenas aquele que molda a matéria pré-existente a partir das ideias contempladas por ele. Nem o deus platônico, e nem o deus aristotélico criam as coisas, mas agem a partir de coisas pré-existentes.

O cristianismo rompe estruturalmente com o mundo grego ao afirmar que apenas o Deus é o ser, ou seja, apenas nele seria possível conciliar a essência e a existência de forma plena. Essa dedução não teria sido ensinada pelos gregos, mas por Moisés lá no livro do Êxodo. (Ex 3,14) "E disse Deus a Moisés: Eu sou o que sou. Assim dirás ao povo de Israel: EU SOU me enviou a vós". Nesse texto, Deus, ao se nomear como aquele que é, se identifica ao ser e dessa forma se coloca como pleno, ou seja, como alguém que não depende da ninguém além de si mesmo. A metafísica do Êxodo será lido e comentado por diversos padres apologistas no decorrer da história do cristianismo. Se o Ser é o nome próprio de Deus, para o cristianismo, as outras coisas só serão porque seriam criadas por Deus que lhes doa a existência; e o faz por meio de sua vontade. Vincular todo o mundo à noção de criação faz com que a relação entre o homem e o mundo mude drasticamente. Ele não é mais fruto de uma razão imanente, ou fruto de um movimento de uma matéria pre-existente, nem fruto do acaso (como afirmava o epicurismo e sua noção de clinamém), mas fruto de uma vontade criadora que lhe dá a existência.

Jerusalém rompe com Atenas, mas continua lhe sendo extremamente devedora em diversas formulações posteriores, ou seja, a ruptura se dá de maneira estrutural, mas isso em hora nenhuma faz parar o diálogo incessante e interminável entre as duas visões de mundo. Diálogo esse que este brevíssimo texto faz menção.











terça-feira, 9 de agosto de 2016

Da estabilidade à mobilidade (um argumento do senso comum)






Uma característica bastante visível dos nossos tempos hipermodernos é em que medida a noção de "viajar" se tornou uma espécie de objetivo de vida. Se há algum tempo atrás o ideal de uma vida "plena" se ligava à noção de estabilidade em que o ideal de grande parte das pessoas era o de fixar-se em algum lugar, quer seja no emprego, adquirir uma casa, um carro, etc. hoje em dia tal ideal se tornou para muitas pessoas aquilo que mais deve ser evitado diante das inúmeras possibilidades que se abrem no mundo globalizado. 

Nesse contexto nada exemplifica melhor esse novo ideal do que a noção de que o maior objetivo da vida do indivíduo deva ser o de conhecer o maior número de lugares diferentes durante a sua vida. 
O viajar se transforma em um ideal a ser alcançado, o objetivo último do ano de trabalho, o motivo pelo qual vale todo sacrifício. Explorar novos lugares, conhecer novas culturas, se encarar como pertencente a um mundo sem fronteiras em que cada ano se está em um lugar diferente se tornou um movimento muito comum entre o sujeito hipermoderno. 

A noção de "estabilidade" (que em várias medidas é também ilusória) dá lugar à noção de mobilidade, dá lugar à noção de "não-pertença" no qual o que importa é o constante "novo lugar" habitado provisoriamente pelo sujeito. Nenhum tipo de amarra, nenhum tipo de pertença, nenhum tipo de ancoragem; tudo deve fluir para que a vida seja vivida na sua totalidade. Esse sujeito desenganchado remete muito à já famosa ideia do homem líquido de Bauman.

Obviamente que em um mundo regido pela dinâmica do capital a própria noção de "viajar" é facilmente transformada em status, de forma que ostentar os lugares visitados se torna para muitas pessoas o objetivo principal que excede até mesmo a própria viagem. A noção de "acumulação" se torna a tônica. O que passa a importar é o número de lugares visitados, o número de países diferentes, o número de cidades diferentes, etc. De certa forma é como se o capital se diluísse e o antigo "acúmulo de capital" fosse substituído pelo "acúmulo de experiências novas em lugares diferentes". Quanto mais experiências novas em lugares diferentes, mais "rico" seria esse sujeito.

Se há algum tempo atrás o objeto ostentado se vinculava à noção de estabilidade, ou seja, a nova casa, o novo carro, o sítio adquirido para onde poderá ir quando se aposentar; hoje faz muito pouco sentido qualquer uma dessas coisas. 
Quantos de nós já não ouvimos alguém comentando que se pudesse largaria tudo e viveria viajando? Que o maior objetivo da vida dela era o de poder estar a cada mês em um país diferente? Esse tipo de ideal para a existência é algo que permeia cada vez mais a nossa cultura pautada pela mobilidade excessiva. 
O viajar dessa forma marca a mentalidade do homem hipermoderno que vê na suposta estabilidade um grande inimigo a ser combatido. É como se ele aceitasse apenas "estabilidades mínimas", tipo uma "renda fixa", ou "um relacionamento fixo" para que pudesse viver (ilusoriamente) como "alguém sem amarras". 
Tal movimento extremamente ilusório me faz lembrar um texto de Sêneca em que o filósofo comenta, dentre outras coisas, algo sobre as constantes viagens.

"Daí empreender peregrinações vagas e percorrer litorais e, ora no mar, ora na terra, experimentar a mobilidade sempre inimiga das circunstâncias presentes: "Vejam-se regiões selvagens, exploremos os Brutios e as florestas da Lucânia". Entre esses desertos, busca-se, todavia, algo ameno, em que os olhos lascivos aliviem-se da longa aspereza dos lugares horrendos: "Que se dirija a Tarento e se lhe louve o porto, o clima hibernal de céu mais doce e a região ainda bastante opulenta para sua antiga turba... Logo então retornamos a Roma: demasiado tempo os ouvidos estão carentes do aplauso e do fragor; apraz agora gozar também do sangue humano". Uma viagem sucede a outra e espetáculos são trocados por espetáculos. Como diz Lucrécio: - Deste modo cada um sempre foge de si. 
Mas que aproveita, se não foge? Ele segue a si mesmo, e o molesta o mais pesado companheiro. E assim devemos saber que não é dos lugares o mal de que sofremos, mas de nós: fracos somos para suportar tudo, e não somos pacientes quanto aos trabalhos nem quanto aos prazeres nem quanto a nós mesmos, nem quanto a coisa alguma por mais tempo." (SÊNECA. Sobre a tranquilidade da alma. Nova Alexandria. São Paulo. 1994. p. 26-27)

Sêneca lá no século I d.C já aponta um pouco para essa noção das constantes viagens como uma espécie de fuga de si em que a busca constante do novo apontaria apenas para um ausente no sujeito que não cessa de clamar por ser preenchido. 

Obviamente que não há aqui nenhuma intenção de condenar pessoas que viajam, que tem condições para tal, etc. O objetivo dessa pequena reflexão é apenas mostrar como que nessa dinâmica se evidencia um caráter fulcral desse homem hipermoderno que cada vez mais se evapora na busca de novas experiências cada vez mais rápidas com uma dinâmica cada vez mais acumulativa. O capitalismo ganha asas cada vez maiores, e nele, cada vez menos, somos capazes de voar. 



sexta-feira, 22 de julho de 2016

A Toast - Para Allana e Hélio !








"[...] Vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito." (Pv 4,18)

Poderia falar muitas coisas sobre o "casal do ano". Tive o prazer de acompanhar de perto todo o processo de construção desse relacionamento. Desde o primeiro momento até o dia de hoje em que celebramos o início de uma nova fase. Não poderia estar mais feliz por todo o desenvolver de um relacionamento que já começou tão lindamente. Poder presenciar o desenvolvimento, o amadurecimento de vocês dois tem sido algo espetacular e hoje mais do que nunca podemos dizer que o caminho traçado por vocês até o momento é um reflexo daquilo que o texto de Provérbios nos aponta. Cada dia que passa podemos perceber o brilho de vocês aumentando, podemos ver novos rumos sendo traçados, podemos ver o caminho em direção ao "dia perfeito". A conquista de vocês muito me alegra e tenho certeza que alegra a tantos outros que já foram abençoados pela presença de vocês.

Espero de coração que nessa nova fase que se inicia na vida de vocês, vocês possam se conhecer melhor, possam aprender a amar um ao outro a cada dia, possam aprender a lidar com os problemas que virão. 

Que vocês aprendam a cada dia a beleza de se poder compartilhar a vida com alguém disposto a fazer o mesmo. Que aprendam que nem sempre é preciso estar com a razão, que nem sempre a sua opinião tem que valer. Que estar em paz é melhor que estar certo em muitos casos. Que vocês aprendam a dividir o tempo para que sempre haja um lugar para a presença do outro. Que os afazeres do dia a dia nunca seja mais importante que a companhia do outro. 


Que vocês aprendam que o amor tem muito pouco a ver com autoritarismo, com cuidado excessivo, com ciúmes, mas tem muito mais a ver com liberdade, serenidade, paciência. Como diria o Riobaldo do Grandes Sertões Veredas, "Deus é paciência, o resto é o diabo". 

Que vocês possam ter paz, alegrias; que as palavras que serão ditas entre vocês possam ser palavras que tragam vida, palavras que fortaleçam os fracos. Palavras que encorajam os desanimados, palavras que tragam alento aos corações angustiados. 

Que vocês possam ser um. Realmente um. Uma mente, um só coração, um só objetivo. Mas ao mesmo tempo que vocês sejam dois. Pessoas singulares que mantém sua individualidade, que não se anulam em prol do outro. E que vocês sejam muitos; que a vida de vocês seja exemplo para todos aqueles que para ela olharem.

Desejo que vocês compreendam a cada dia que amar significa deixar o outro livre, significa cuidar na medida certa, nem excesso de protecionismo, nem desleixo, pois onde reina o amor ali há sempre liberdade, e onde há liberdade sempre há pressuposto um cuidado. 


Que nunca falte entre vocês a amizade, o sentar à mesa para apreciar uma refeição, um momento de diálogo em que os corações se abrem e a presença divina se mostra no afeto e na acolhida que proporciona esperança.

Que tudo de bom aconteça com vocês. Esse é o meu desejo !

Sigo junto com vocês nessa caminhada ! Sempre juntos !

"Então a nossa boca se encheu de riso e a nossa língua de júbilo" (Sl 126, 2)

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Candomblecistas, Umbandistas, Evangélicos, uni-vos !




Algo interessante a se notar no meio evangélico é a sua dificuldade na forma de lidar com aquilo que é diferente de suas concepções de mundo. Do ponto de vista da própria formação do discurso evangélico esse tipo de dificuldade é muito facilmente compreendido dado a sua "tara" com a noção de certeza. 
Em diversas vezes lemos ou ouvimos alguém dizer algo nesse meio que remete a uma posição segura e infalível de sua crença, das suas concepções de mundo, etc. Esse tipo de relação vai se mostrando pior à medida que o outro discurso vai se afastando de suas concepções. 

Um lugar onde tal discurso se mostra de forma extremamente estranha é na relação estabelecida entre as igrejas evangélicas e as religiões de matriz africana ou também chamadas de religiões afrobrasileiras. Para além de toda discriminação envolvendo as pessoas negras e suas culturas, que no caso brasileiro diversas vezes é associado a algo ruim, (o que é muito sintomático dada a presença maciça da população africana na constituição do povo brasileiro) há ainda a questão ontológica/metafísica envolvida que para algumas pessoas torna qualquer tipo de diálogo impossível. 

Em via de regra, para o evangélico comum, a relação é muito simples e pode ser resumida a formulação de que  "tudo associado a religiões de matriz africana pode ser demonizado e deve ser evitado a qualquer custo." Não há nenhuma possibilidade de diálogo entre os dois ramos religiosos. Tudo associado a Orixás, Nkises, Voduns deve ser evitado sob a constante ameaça disso "abrir portas" para o mal sobrevir à pessoa ou à sua família. Em diversas igrejas há os chamados "cultos de libertação" em que se visa "expulsar os demônios" e em vários casos os nomes dados a esses demônios são nomes retirados da própria tradição de religiões africanas. Nomes como "tranca-ruas", "pomba-gíria", "preto velho" são transformados em demônios que precisam ser expulsos da vida do sujeito pelo fato de serem eles que estariam causando todo o mal. A relação se dá de forma muito direta e isso é um fator interessante de se notar da discriminação envolvida em relação às religiões de matriz africana. 

É necessário aqui ressaltar a diferença que fazemos entre protestantes e evangélicos que já falamos em diversos outros textos. No meio protestante a postura dialogal se mostra um pouco melhor que no meio evangélico (embora várias vezes meio "truncado") e há diversos movimentos de trabalhos conjuntos entre o protestantismo e as religiões de matriz africana. Eu mesmo já participei de alguns encontros em que líderes de religiões afrobrasileiras se encontravam presentes e o clima dialogal se fez presente de maneira muito cordial e respeitoso. No entanto, tal prática ainda não se mostra a tônica nem mesmo entre os chamados protestantes. Um movimento interessante do diálogo entre as igrejas protestantes e as religiões de matriz africana, caso alguém tenha algum interesse, é a Fundação Luterana de Diaconia (de onde sai a imagem que ilustra esse texto)


Algo importante a se ressaltar é que as Religiões afrobrasileiras celebram a natureza e respeitam a diversidade e são ícones de uma cultura ancestral. É preciso salientar, por exemplo, que a figura do diabo não existe nas religiões afro-brasileiras e a associação dele ao candomblé e Umbanda pode ser entendida como uma estratégia de um discurso de dominação bem implantado por parte dos opressores. Ou seja, a hierarquia ontológica se mostra devedora das relações de poder do mundo material.

O candomblé é uma  religião que cultua divindades da natureza, que são os Orixás, Nkises, Voduns, nome que varia de acordo com  a nação que a casa pertence, se Kêtu, Angola, ou Jêje respectivamente. No candomblé, o canto, a dança são muito presentes nos cultos e são elementos importantes na atração da energia espiritual que se cultua. Ele  pode ser entendido também como uma prática religiosa ligada aos costumes das tribos antigas africanas, na medida em que tudo o que se faz é muito ligado à uma tradição e que se propaga ,sobretudo através da oralidade. As formas de culto e as nomenclaturas são  bem particulares seguindo sempre sua nação e raiz de origem. Isso justifica as diversas formas desse culto no Brasil, cujo  formato é organizado em xirês ,que são as ordens em que são apresentados os Nkisses, Orixás ou Voduns nos cânticos de um toque para essas divindades.

As nações do candomblé são, por assim dizer, o “lugar” dessa organização de ritos, nomenclatura, fundamentos, cantos, história das divindades e articulações simbólicas referentes a elas. Embora possua, na sua essência a reverência a várias divindades ligadas à natureza, o candomblé  é uma religião monoteísta, ou seja, que cultua um único Deus – Nzambi (Nação Angola) -  Olorum (Nação Ketu) dentre outras possíveis nomenclaturas. Nesse contexto, as divindades, são entendidas em alguns casos como espíritos que auxiliam a Deus no governo do mundo, uma espécie de força da criação divina. Entendendo a ideia do culto a essas divindades como ela é realizada, é possível dizer  então, que o candomblé cultua ritualisticamente a energia da natureza em suas múltiplas manifestações, das nuances mais belas à intensa devastação a que nos submetem.

A Umbanda é a única religião genuinamente brasileira, surge aqui e é fruto da miscigenação e da mescla de cultura e tradições que nos caracterizam. Tem os orixás como guia máximo entre as divindades assim como o candomblé, mas os louva em Português, enquanto candomblé  cultua usando cânticos em yorubá (Ketu) ou Bantu (Angola). Os umbandistas tem seus fundamentos fruto da rica mescla entre candomblé e os valores do cristianismo. Pode-se dizer que a premissa básica desta religião é a caridade e tem os ensinamentos de Cristo como referenciais importantes de conduta na terra. Importante ressaltar que tais religiões não têm a Bíblia como um livro sagrado, mas partem principalmente da oralidade para compor a sua ontologia. Dessa forma afirmar que tais religiões estão "contra a verdade bíblica" incorre ao mesmo tempo em um grande desconhecimento do que poderia ser chamado "verdade bíblica" e ao mesmo tempo um desconhecimento em relação ao funcionamento das religiões em questão.

Podemos perceber que as religiões de matriz africana, como toda religião, buscam o contato com a esfera do sagrado e para isso se organizam de uma determinada forma dado o seu contexto cultural. Nesse sentido podemos dizer que do ponto de vista do objetivo das religiões afrobrasileiras o que está em jogo é o mesmo objetivo do cristianismo, ou seja, o contato com aquilo que consideramos sagrado. Há obviamente uma diferença ontológica (do que é considerado existente) nas formulações cristãs e nas formulações de outras religiões. A ontologia cristã não aceita essa personificação da natureza proposta por algumas religiões afrobrasileiras, não aceita a existência dos chamados "orixás" e outras coisas, assim como as religiões afro não aceitam a existência do "diabo", "demônios" com essa nomenclatura, coisa que para o evangélico comum é tido como de  "indubitável existência". A diferença ontológica/metafísica, no entanto, não deve ser motivo para a demonização das religiões afrobrasileiras. O fato destas religiões não compactuarem com aquilo que consideramos existentes não as tornam algo a ser combatido, não as tornam algo a ser "evitado", mas muito pelo contrário, algo a ser conhecido e respeitado por qualquer pessoa ou religião.

Obviamente que a questão a que se propõe este texto não é o de "igualar" todas a religiões afirmando que todas elas servem ao mesmo Deus, etc, o que seria um desrespeito às especificidades de cada formação religiosa, uma afronta à própria concepção de Deus evidenciada em cada religião. Mas o que se pretende antes de tudo é mostrar que a demonização feita por grande parte das igrejas evangélicas em relação às religiões de matriz africana tem mais a ver com uma discriminação de cunho social e ideológico do que com uma questão ontológica/metafísica. Claramente que a primeira é condicionante da segunda na nossa opinião, mas há sempre aqueles que pensam que a segunda é a causa da primeira, e esse tipo de pensamento é o que leva a diversos fundamentalismos de ambos os lados, embora a presença do fundamentalismo pelo lado evangélico se sobressaia, dada à nossa própria configuração social.

Tem havido um grande avivamento das religiões afrobrasileiras e cada vez mais pessoas tem-se assumido praticantes destas religiões rompendo estigmas e tendo que lidar diariamente com a discriminação advinda dessa tomada de postura. Em diversos momentos se assumir pertencente a uma religião de matriz africana se mostra como um grande protesto e ao mesmo tempo um afirmar de uma identificação com outra forma religiosa que não as cristãs ocidentais. Por incrível que pareça, mesmo as religiões orientais (budismo, taoísmo, etc.) possuindo uma ontologia mais afastada da ontologia clássica cristã, elas são mais aceitas no ocidente, o que a meu ver aponta para a discriminação social/ideológica das religiões de matriz africana que leva à discriminação e à demonização das mesmas por parte de diversas denominações evangélicas. 

O candomblé, a Umbanda e diversas religiões afrobrasileiras são ricas em cultura, função social e são também pilares que constituem nossa sociedade há muito tempo e precisam ser respeitados como quaisquer outras práticas religiosas. 




Esse texto só foi possível dada a contribuição substancial do caríssimo Washigton Luís, irmão do Candomblé que contribuiu na elaboração deste texto principalmente na parte das características das religiões afrobrasileiras.


 
Washington Luís Santos oliveira é candomblecista , formado em Comunicação Social / Jornalista atuou como repórter e apresentador nas Rádios Alvorada e Band News FM. Membro do Conselho executivo do Instituto Bambare de valorização da cultura Afro-Brasileira e membro da Rede Ecumênica de Juventude REJU.


Fabiano Veliq é Filósofo graduado em Filosofia pela UFMG. Mestrado em Filosofia da Religião pela FAJE. Especialista em Teologia Sistemática pela Faculdade Batista de Belo Horizonte. Doutor em Psicologia pela PUC Minas. Possui pós-doutorado em Psicanálise pela PUC Minas. 



 

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Aquele segundo evanescente: A Eternidade homeopática






Ah, se ali atrás daquela serenidade fosse permitido ver todo o peso do mundo carregado sobre aqueles ombros caídos. Se diante dos outros pudesse aparecer as chagas de um coração várias vezes triste e desolado diante da falta de alegria do mundo. Não fossem os olhos, que alguns dizem ser a janela da alma, a denunciarem tamanha incompletude, ninguém diria que ali bate como um martelo uma dor dilacerante. Não fosse os pequenos sinais dados a conhecer a apenas alguns mais próximos, ninguém desconfiaria. 

Como um Sísifo que vai subindo a montanha tendo a pedra sobre seus ombros; Empurra-a montanha acima como quem sabe ser a sua única tarefa. Empurra-a sobre seus ombros como quem está fadado a repetir ad infinitum tamanho desgosto. Mas até Sísifo por algum momento é capaz de esquecer a dor do mundo e a dor de ser quem se é. Até ele é capaz de se sentir orgulhoso por estar ali fazendo aquele trabalho sem sentido. 
Naquele momento, ali quando se esquece, naquele segundo evanescente, é como se tudo se fizesse novo e até o peso da grande pedra é esquecido. Naquele momento a eternidade se faz presente, pois o que define o momento eterno nunca é a sua duração (inconsistência puramente lógica, mas de caráter poético), mas o desejo de que aquilo permaneça para sempre. Aquele segundo, por mais rápido que seja, alivia Sísifo que agora é capaz de voltar à sua labuta inglória. 

"Num abrir e fechar de olhos" (I Cor 15,52) é a versão cristã do que chamamos acima de segundo evanescente, ou seja, em um mero ir e vir das pálpebras pode ser dita toda a esperança cristã até mesmo para o apóstolo Paulo, pois é  em um segundo evanescente que, segundo o texto, seremos capazes de esquecer todo o sofrimento do mundo para adentrarmos na eternidade. O abrir e fechar dos olhos (que é um movimento involuntário do corpo) parece apontar para a curiosa teologia da graça cristã. Graça que a todos abarca. Ali, onde não temos domínio sobre o executar, ali ela se revela mostrando-se como salvação vinda de Deus, como dom imerecido dado a todo homem. 

O segundo evanescente que nos faz esquecer do sofrimento diário é o momento buscado por nós todos os dias, o tempo todo, e que o conceito de "ressurreição" no cristianismo visa dar conta dessa busca de uma vez por todas. Assim como o piscar de olhos, o segundo evanescente de Sísifo também dura pouco, mas mesmo assim acredito que nunca nos cansaremos de esperar por ele, ou para os mais ativos, fazê-lo acontecer diante de nós. Como aquela árvore que Jó nos diz ser melhor que o próprio homem, pois com o cheiro das águas ela pode brotar, assim também aquilo que chamamos de segundo evanescente pode se colocar como aquele cheiro das águas que traz consigo a possibilidade do renovo diante de todo aparente  absurdo do mundo.



quarta-feira, 15 de junho de 2016

Did God send the shooter?







Recebi o seguinte pedido de uma pessoa muito querida: 

"Oi, Fabiano! Gostaria de provocá-lo a escrever um texto sobre os crimes gerados pela intolerância e o julgamento do outro. Devido aos últimos acontecimentos, penso que a humanidade caminha em círculos. Um abraço!" 

Esse texto é um esforço de responder a esse pedido. 




Vós não sabeis de que espírito sois ? (Lc 9,55)

Diante do cenário vivido por nós em que a religião ganha cada vez mais espaço na vida pública é interessante pensarmos em que medida algumas ações estariam ou não ancorados nos princípios defendidos por estas religiões. Os seus textos sagrados, quando lidos de forma atenta, parecem nos mostrar outra coisa que não os discursos de ódio propagados todos os dias entre nós. Um caso que teve muita repercussão recentemente foi o caso do atirador em Orlando que matou cerca de 50 pessoas em uma boate gay nos EUA. 

O crime já foi caracterizado tanto como "homofobia" quanto como "atentado terrorista", o que obviamente não impede que sejam as duas coisas ao mesmo tempo. É bem plausível pensar em um ataque terrorista promovido por uma pessoa homofóbica e é interessante pensar quais os interesses envolvidos em classificar um ato bárbaro como esse como uma opção ou outra. Curiosamente qualquer que seja a "motivação" aceita para o crime, ambas podem ser justificadas como sendo "vontade divina" de um deus que não consegue lidar com as diferenças, ou melhor, vontades de um deus intolerante. 

Se adotarmos a questão do ponto de vista do "ataque terrorista" fica claro que o atirador tinha em vista uma noção deturpada da Jihad islâmica e muito provavelmente agiu em nome dessa noção deturpada se colocando como mártir contra os infiéis exercendo a "justiça divina". Da mesma forma se pensarmos que se trataria de crime de motivação homofóbica a mesma dinâmica se repete e o atirador se sente como uma espécie de "enviado de deus" para exercer justiça contra os que praticam "coisas abomináveis aos olhos de Deus". Novamente uma leitura deturpada só que agora não da noção de Jihad e vontade de Alá, mas do texto bíblico e a suposta vontade do deus cristão. Percebe-se que as duas motivações  propostas para o crime (ato terrorista, homofobia) desembocam no mesmo lugar que é a noção de que se exerce algo em nome da chamada "vontade divina", e isso aponta para  a dificuldade de compreender o que está por trás das mensagens dos textos sagrados, o que ele visa nos revelar, fazendo assim um uso privativo de tais textos por meio de leituras fundamentalistas.

Aqui é interessante notar como que as religiões monoteístas e sua visão linear da história tem uma propensão a um caráter bélico. No judaísmo e no islamismo isso se mostra muito facilmente, ao passo que no cristianismo tal proposta se mostra de forma um pouco mais velada, mas ainda assim aparece. Basta lembrarmos os diversos apocalipses escritos no primeiro século para isso se mostrar nitidamente para nós. À medida que o tempo for passando e o fim for se aproximando mais e mais o mal mostrará a sua face e as intervenções divinas serão vistas de forma mais nítida. Talvez aqui esteja uma possível justificativa para o apoio encontrado entre alguns evangélicos do acontecido em Orlando. A visão compartilhada sobre o desenrolar da história corroboraria atos violentos... (estranho, mas possível...)

O versículo que propus para abrir essa pequena reflexão aponta para um evento em que, depois de saírem da experiência da transfiguração, Tiago e João se encontram diante de uma aldeia de samaritanos que se recusam a receber Jesus que estava indo para Jerusalém. Diante de tal recusa, Tiago e João propõem uma saída bastante enérgica e perguntam a Jesus: "Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma, como Elias também fez?" Jesus obviamente acha aquela pergunta muito estranha e lhes pergunta: "Vós não sabeis de que espírito sois?" Ou seja, há uma diferença enorme entre a concepção de Deus proposta por Elias e a concepção de Deus proposta por Jesus. Jesus nessa hora ensina a tolerância, lhes afirma que "o filho do homem não veio para destruir a vida dos homens mas para salvá-las." (Lc 9,56), ou seja, o Deus que Jesus procura anunciar não está interessado em eliminar os inimigos, mas em salvá-los.

Na contemporaneidade a noção de tolerância se torna uma faca de dois gumes, pois ao mesmo tempo que se fala cada vez mais de tolerância, mais se vê atos que demonstram que tal noção se dá apenas em um nível discursivo e muito pouco no nível "prático". Em nome de uma suposta tolerância universal o que se vê é um novo tipo de fanatismo que dialoga de forma constante com a intolerância, pois o discurso da tolerância universal aponta apenas para a vacuidade hipermoderna que não dá conta de lidar com o diferente e no lugar disso propõe uma homogeneização das formas de pensar. Como diria Sponville, não se pode tolerar os intolerantes, pois isso aponta para o fim da própria tolerância. Na dinâmica da suposta "aceitação de tudo e de todos" evidencia-se de forma cabal a nossa dificuldade atual de lidar com o diferente. Isso demonstra uma cultura da indiferença tipicamente hipermoderna, onde a dimensão do Outro só entra quando de alguma forma corrobora a mim mesmo. Um narcisismo levado às últimas consequências, ou melhor (na expressão da Colette Soler), um narcinismo misturado com um relativismo cético.

Para além das "motivações de caráter sexual e suas repressões" já propostas por diversos jornais, o caso do atirador em Orlando aponta para uma intolerância em lidar com essas posturas diferentes, que longe de demonstrar uma "indisposição meramente no nível das ideias", demonstra mais uma intolerância em relação a qualquer um que pense diferente. Quando esse tipo de postura encontra uma justificativa em algum texto sagrado (Bíblia e Corão nesse caso) o cenário se torna extremamente propício para que o atirador se sinta justificado diante das medidas extremas que pretende tomar. Um fato curiosíssimo foi a igreja batista de Westboro sair às ruas com cartazes cujos dizeres o título desse texto faz menção. O fato de uma igreja evangélica se colocar a favor de tais atos nos mostra que tais leituras que motivaram o atirador não são "casos isolados", mas se mostram cada vez mais frequentes tanto na religião cristã quanto na religião islâmica. O fundamentalismo religioso pode ser encarado como uma forte tendência hipermoderna e pode ter como possível explicação a ausência de referenciais simbólicos a que estamos submetidos em nossa "sociedade líquida". 

O nosso cenário atual é extremamente conturbado. De um lado há um certo discurso normativo de uma tolerância universal aliado a um relativismo moral que afirma que todas as posições devem ser aceitas pelo simples fato de serem posições de um indivíduo dotado de razão e qualquer tipo de crítica ou juízo de valor devem ser evitados. Por outro lado temos os fundamentalismos religiosos que com suas leituras herméticas dos textos sagrados e suas  pregações de caráter bélico encaradas como verdades reveladas por deus motivam crimes em diversos países. Nesse cenário fica extremamente complicado emitir um juízo sobre nossa situação a não ser que elejamos um valor pelo qual estejamos dispostos a lutar, e tal cuidado na maior parte das vezes não é levado em conta de forma que julgamentos precipitados são emitidos toda hora. Talvez a ânsia de dar uma explicação para eventos que nos atormentam leve a emitir juízos várias vezes tão rasos e sem a devida reflexão. 

Analisar a época em que se vive é extremamente complexo, pois nos encontramos no olho do furacão com tudo girando ao nosso redor de forma que o distanciamento necessário para uma leitura mais "isenta" se torna impossível, no entanto, não podemos nos eximir de tentar compreender os fatos que nos cercam, mas sempre evitando julgar precipitadamente o que não conhecemos. Quando o assunto envolve temas religiosos os julgamentos precipitados são quase a tônica. Basta acontecer algum evento ligado à religião para que apareçam discursos de ódio generalizando as religiões afirmando que elas são "ópio do povo", que "todas deveriam acabar", etc. E curiosamente esse tipo de discurso não vêm de pessoas não esclarecidas, mas geralmente é no meio acadêmico que tais discursos simplistas encontram maiores moradas. Não acredito que tais julgamentos precipitados sejam uma boa resposta para problemas tão complexos. É preciso indagar diversas coisas, e uma delas, com certeza, é o papel da religião no mundo contemporâneo e ao mesmo tempo, o que se pode entender por religião no atual cenário. 

O acontecido em Orlando é, de fato, muito triste e deve nos fazer refletir sobre o impacto do discurso religioso na nossa época. A religião entendida como uma forma do homem se colocar diante do mundo, entendida como um possível norte para o sujeito, entendida como algo capaz de balizar o indivíduo diante das intempéries da vida não deve ser justificativa para atos que atentem contra a vida, mas infelizmente o que vemos é uma deturpação da religião promovendo discursos que incitam a violência e o menosprezo pelo diferente. Ao invés de celebrar a vida e promover a alegria, os discursos religiosos vão promovendo a morte e a tristeza. Que religião é essa que se alegra com a morte do planeta e dos seres humanos? Não é a religião islâmica e nem a religião cristã. Ambas são religiões pacíficas que com certeza condenam atos como o acontecido em Orlando.

Did God send the shooter? Absolutamente não.