sexta-feira, 30 de março de 2018

Idealizações e decisões.







Às vezes o caminho será árduo, vislumbraremos apenas pequenos raios de luz. A neblina encobrirá o nosso caminho, e cada passo que tentarmos dar será sempre um ato de fé. Nesses momentos é preciso muito mais que confiança em nós mesmos, é preciso que para além da confiança em nós haja um algo a mais, uma força que nos permitirá agir de forma que cada passo se transforme não apenas em uma continuação da caminhada, mas sim uma decisão.

O lugar para onde caminhamos será sempre incerto. Quem dera de antemão tivéssemos a ciência do exato lugar para onde iríamos. Várias vezes isso pode ser considerado uma benção, mas não raras vezes ficamos como os ciclopes enganados por Zeus vislumbrando apenas o dia da nossa morte, o futuro que se abriria para a esperança se fecha para o fim de todos em um vislumbre que é pura ilusão sem sentido. Não seria isso uma forma interessante de idealização? Não estaria no cerne de toda idealização apenas o vislumbrar da morte da própria idealização impossível na crueza da realidade? Nós, os hipermodernos, que não acreditamos em mais nada ainda mantemos em nós diversas idealizações sobre as nossas realizações. 

Idealizamos o trabalho como o lugar em que de alguma forma eu serei reconhecido, farei algo útil, darei sentido à minha vida e a dos outros. Idealizamos o nosso relacionamento afetivo na esperança que ele seja sempre o melhor relacionamento possível, de que seremos capazes de sobreviver a qualquer tormenta, contando que exista amor entre as partes. Idealizamos um mundo em que não haja a necessidade da guerra, da desordem, mas que tudo se harmonize dentro da melhor concepção de mundo possível. Em última instância podemos dizer que todos nós idealizamos as coisas. Aquele que caminha vislumbra que quando chegar até à sua casa estará a salvo de todas as intempéries, e por isso segue caminhando mesmo contra toda a prova. O risco que ele corre é enorme, afinal, não há nenhuma garantia que dentro da casa haverá o conforto que ele procura, nem mesmo se a casa resistirá às intempéries que lhe serão acometidas. No entanto, a única coisa que se pode fazer é caminhar em direção à casa e torcer que tudo dê certo.

O mundo contemporâneo acaba demandando de nós que tenhamos todo o controle sobre todas as coisas o tempo todo, no entanto, essa demanda se mostra impossível pela própria condição do homem e a condição da natureza que se mostra alheia a toda tentativa de padronização. Neste sentido o mesmo mundo que gera em nós a tara pela idealização, pelas causas que "podem ser diferentes" provoca em nós a culpa por não podermos atingi-las. Nesta espiral crescente cada vez mais o sujeito se sente como quem anda sozinho, como que em meio às suas relativizações constantes o único abrigo que encontra é a si mesmo. Quem dera, no entanto, que esse sujeito fosse pelo menos "senhor na sua própria casa" (para usar a expressão de Freud), se se sentisse de fato no controle de suas ações, mas nem isso hoje mais é acreditado pelo sujeito contemporâneo esclarecido. Curiosamente em uma sociedade em que cada vez mais a noção de responsabilidade é alargada (responsabilidade pelo que come, pelo que veste, pelo que fala, pelo a forma como deve agir, etc.), mais o sujeito se mostra na tentativa de se eximir de tal responsabilização por meio de constantes determinismos a que se impõe (social, econômico, teológico, etc.). Neste tortuoso caminho em direção a um lugar onde possa descansar, o sujeito não sabe mais o que o espera. 

Um triste diagnóstico desse homem que caminha sozinho em meio a neblina na esperança de alcançar um lugar seguro. Às vezes é hora de aceitar o fato de que não existe mais lugar seguro, não existe mais um meta-relato que sustentará o seu mundo, não existe mais um discurso totalizador que organizará tudo em um universo de sentido, mas o que existe é apenas um caminhar, um ato, uma decisão do sujeito que insiste em criar diariamente o seu caminho em meio à neblina; e nesse caminho vai se descobrindo e descobrindo outros que assim como ele caminha na busca de um lugar onde possa se abrigar para resistir às intempéries. Quem sabe não encontrará um sentido provisório naquela casa que tanto visa alcançar? 

A foto que ilustra esse texto foi tirada por um meteorologista russo que viveu em uma expedição no Ártico por 30 anos. Dele não se sabe o nome, não se sabe onde está. Se sabe apenas das fotos. Não seria ele o protótipo do funcionário padrão da atualidade em que a única coisa que importa é o seu produto e nunca a sua identidade?


quinta-feira, 8 de março de 2018

"Nós lutaremos até vencer!"




Dia 08 de março se comemora o dia internacional da mulher; é um dia para lembrar as lutas de várias mulheres do passado e ainda lembrar que há muito para ser conquistado no presente em relação a direitos, oportunidades, etc. Neste sentido que a tônica contemporânea de celebração desse dia deixou de ser a mera felicitação pelo dia das mulheres, mas a constante lembrança de que é preciso urgentemente mudar a forma como as mulheres são tratadas dentro de uma sociedade machista. Obviamente que já podemos perceber alguns avanços, que mesmo sendo extremamente parcos do ponto de vista do todo ainda assim acredito que devam ser celebrados como um trilhar ainda modesto em direção a um outro tipo de sociedade. 

A meu ver, algo interessante a se notar é que como já notaram diversas pessoas, a crítica à sociedade machista deve necessariamente incluir uma crítica às condições materiais de existência que fundamenta uma sociedade machista. Neste sentido é bem óbvio para todos nós que o capitalismo em suas diversas acepções é extremamente machista, e mais que isso, se pauta por uma lógica machista da totalidade, do Todo. Aqui seria interessantíssimo pensar como que a própria noção de "Capital" remete à essa dimensão de totalidade ao colocar tudo em função de si, o que gera uma articulação espectral interessante entre o mundo das coisas e uma espécie de "totalidade onipresente do capital". Algo que a psicanálise lacaniana nos ajuda a entender é exatamente essa diferenciação na relação do sujeito com o mundo que é submetido em última instância à dinâmica da sexuação. Lacan vai propor aquilo que ficou conhecido como "tábua da sexuação" que nada mais é que tentar explicar como se daria a sexuação em homens e mulheres para além de uma questão meramente biológica. A ideia é que a sexuação masculina, por orbitar o falo (o falo aqui entendido não como o órgão masculino, mas como significante que organiza a relação do sujeito com o mundo) se pautaria pela noção de totalidade, ou seja, se pautaria pela tentativa constante de apreender a totalidade e organizar o mundo a partir dessa noção. No caso da sexuação masculina "Existe pelo menos um homem para quem a função fálica não incide", ou seja, esse é o Pai de Totem e Tabu que não está submetido a nenhuma lei. É neste sentido que dizemos que a lógica masculina seria a lógica do todo. 

Do lado feminino a sexuação se daria pela lógica inversa, ou seja, a lógica do Não-Todo. Neste sentido que Lacan é capaz de dizer que a Mulher é não-Toda, e até mesmo que "A mulher não existe", ou seja, se pelo lado masculino haveria a figura do pai primordial, o pai que funciona como espécie de "modelo" para a ação, para quem a lei da castração não incide; já do lado da Mulher não existe uma Mulher primeva a quem a castração não incide; Ou seja, não existe uma mulher ideal, e isso inviabiliza falar de "todas as mulheres".  A mulher neste sentido é sempre construída individualmente, sem nenhuma ponte que a liga à mulher ideal-não-castrada-exceção-à-regra. Neste sentido que dizemos que a Mulher é não-Toda, ou seja, a lógica feminina é a lógica da individualidade e não da totalidade. 

Neste sentido, a partir da tábua da sexuação de Lacan, é interessante pensar que algumas demandas tipicamente do universo feminista tem em sua prerrogativa aquilo que chamamos de "lógica masculina".  Os conceitos como "sororidade", "direitos fundamentais", etc. partem do pressuposto de que é possível pensar uma espécie de "mulher ideal" ou até mesmo "direitos ideais" que deveriam valer para "todas as mulheres". O que está por trás disso é aqui uma lógica da totalidade, ou seja, uma lógica tipicamente masculina. A partir do momento que se assume que a mulher se constitui sempre na individualidade, que a mulher é sempre uma construção caso-a-caso as noções de "sororidade" e "direitos fundamentais" necessitam serem repensados para que possam entrar como ponto de insurgência contra a estrutura que gera o machismo e não meramente a sua reprodução sob uma ótica feminina. O alcance dessa lógica feminina é enorme, pois ela inverte noções caras ao ocidente e possibilita um reconfigurar da própria estruturação social. As noções de "Deus", "religião", "direito" e vários outros que sustentam uma sociedade de lógica machista, quando repensados sob uma ótica feminina se reconfiguram drasticamente. É neste sentido que penso que as pautas feministas se tornam uma arma importantíssima de crítica social, pois tocaria na estrutura que gera uma lógica machista sendo capaz de inverter isso a partir de dentro, ou seja, a partir da própria constituição que possibilita uma lógica machista. Sem dúvida alguma a revolução, a instauração de uma nova ordem mais justa deverá necessariamente ser feminina.

O dia internacional da mulher mostra-se como um símbolo de que é possível inverter uma lógica que se pauta pela totalidade, é possível, partindo da especificidade de cada mulher, propor uma mudança na estrutura social que seja capaz de reconstruir um mundo em que as mulheres não sejam exploradas, subjugadas, diminuídas, estigmatizadas, etc. Neste dia de luta que possamos lembrar de que cabe não apenas às mulheres a transformação da sociedade, mas cabe a todos nós lutarmos por uma sociedade mais justa e digna. Claro que às mulheres, enquanto parte que mais sofre, cabe o protagonismo pela mudança, no entanto, não nos esqueçamos que em prol de uma causa justa, todo tipo de ajuda se torna bem vinda e estabelecer divisões ao invés de ajuntamentos pode levar a exatamente o oposto do que se visa. 

Tenho o privilégio de ter sido criado por uma mulher maravilhosa, exemplo de luta, ser rodeadas de mulheres maravilhosas, exemplos de luta, de construção de um mundo melhor, de resignificações, mulheres que fazem a diferença por onde passam e que mostram a cada dia que é possível no caso a caso construir um mundo melhor, mais justo, mais pleno, um mundo mais igualitário para todos. A estas mulheres, a estas que na sua individualidade mudam e reestruturam o mundo são a quem dedico este texto. Que sirva como uma singela homenagem e um ponto de reflexão para a luta que é árdua, que é diária, mas por isso mesmo trará vitórias cada vez mais expressivas. Como diz o cartaz da foto "Nós lutaremos até vencer!"

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

A forma da água - Reflexões sobre um filme de Guilhermo Del Toro








Recentemente fui ver o novo filme do Guilhermo Del Toro chamado "A forma da água" e achei o filme bem interessante. Basicamente o filme conta a história de Elisa que é uma zeladora muda que trabalha em um laboratório onde uma criatura está sendo mantida em cativeiro. Quando Elisa se apaixona com a criatura, ela elabora um plano para ajudá-lo a escapar com a ajuda de seu vizinho. Nesse objetivo ela é auxiliada por sua amiga de trabalho e também por um cientista russo disfarçado que tem planos de manter a criatura viva no intuito de conhecer melhor a criatura. A história então se passa nessa tentativa de fuga e no seu desfecho ao final do filme. Algo que me chamou muito a atenção no filme foi a dinâmica desenvolvida entre a personagem principal do filme (Elisa) e o monstro (sem nome) que está preso e ao mesmo tempo está sendo estudado pelos cientistas na instalação onde ela trabalha. O filme se passa no período da guerra Fria e daí percebemos muito claramente a oposição entre Rússia e EUA.

A identificação imediata de Elisa com o monstro é muito interessante e de alguma forma é isso que leva Elisa a empreender a sua luta por salvá-lo. O fato de Elisa ser muda é de extrema importância para a trama do filme, afinal ela mantém uma comunicação muito rudimentar com as pessoas ao seu redor, da mesma forma que o monstro não consegue se comunicar muito bem com as pessoas ao seu redor. Essa ausência da comunicação de alguma forma os aproxima e faz com que Elisa veja no monstro algo de si mesmo. Neste sentido é diante desse "gap" entre Elisa e o monstro que acontece o encontro entre os dois. 

O filme traz consigo um forte apelo político do ponto de vista da "aceitação do diferente" promovido principalmente pelo cientista russo disfarçado que vê o monstro como objeto de estudo para o avanço da ciência, o que sem dúvida nos remete a toda a ideologia liberal da atualidade de tentar encontrar no outro algo com o qual eu fosse capaz de me identificar como forma de respeitar a liberdade do outro. Essa espécie de "Fator X"(para usar a expressão de Fukuyama) que se encontraria na "essência" de todo ser vivo e que por isso deve ser respeitado parece ser o pressuposto da personagem principal para se compadecer do outro que sofre. Ou seja, mesmo sendo uma criatura que não é humana, ainda assim ele teria algo com o qual nós humanos, e a personagem principal em particular, poderia se identificar, de forma que toda forma de maus tratos ou humilhação deveria ser evitada. A grande questão que penso emergir a partir do filme é: Será que é possível se importar com o outro mesmo sem essa identificação primordial? Ou o pressuposto básico de toda forma de justiça ou amor está ancorado nessa mínima identificação com o outro?  Esse tipo de noção não se ancoraria em um pressuposto pré-moderno de uma essência humana que há muito, do ponto de vista prático, não teria sido abandonado por nós? A forma da água não remeteria em última instância a tentativa de abordar o encontro com o estranho dentro de uma sociedade líquida, esse estranho que pode ser o estrangeiro, o refugiado, o pobre, o gay, etc.?

A resposta que fica latente no filme é que a identificação do outro como semelhante é condição de possibilidade para o compadecimento e é por isso que Elisa é a capaz de fazer algo por esse outro, e ao mesmo tempo é exatamente nesta ausência de identificação que permite que o comandante dos EUA continue torturando a criatura, afinal ela não é digna de respeito pelo fato de não haver nada nela com o que eu me identifique. No entanto, não será possível que o compadecimento tenha sua fonte no total vazio que eu trago em mim e de alguma forma quer ser "completado" pelo vazio do outro? O sujeito hipermoderno totalmente destituído de todo traço de essência não teria no outro apenas um fantasma com o qual tenta se aproximar na tentativa de se entender minimamente? Se for esse o caso, não seria o amor uma forma última de possibilidade para o contato com o outro que fosse capaz sem nenhum tipo de identificação? A questão levanta um curioso paradoxo hipermoderno. Ao mesmo tempo em que se procura evitar todo tipo de tradição, evitar todo tipo de universalização de qualquer coisa que seja, de forma que haja um completo relativismo sobre basicamente tudo, o sujeito hipermoderno ainda precisa apelar para algum tipo de "essência" para justificar suas pautas como a defesa das minorias, a luta pela justiça para todos, etc. 

A forma da água aparece em um momento interessante no qual questões referentes à tolerância se mostram cada vez mais emergentes. Há muito já sabemos que tolerar não significa "tolerar tudo", mas que deve haver sempre um limite para a tolerância; e geralmente colocamos esse "limite" em uma noção parca de "humanidade", ou "vida", etc. A ideia é que se pode fazer tudo, exceto aquilo que fere a dignidade do outro ser vivo. Neste sentido a atitude do comandante que tortura a outra criatura gera no espectador uma espécie de repulsa e não raras vezes atribuímos apenas à ignorância esse tipo de atitude. Mas e se nesse tipo de atitude estivesse representada exatamente a forma como nós, os hipermodernos totalmente esclarecidos, lidamos com o diferente de forma extremamente perversa em suas mais diversas facetas? Por trás do discurso liberal da aceitação de todos os modos de vida não se esconderia um forte suporte narcísico desse sujeito desbussolado da contemporaneidade?

Um ponto curioso que surge no decorrer do filme é o fato do monstro parecer possuir capacidades sobrenaturais como fazer crescer cabelo no vizinho de Elisa, e curar Elisa de sua ferida, além do fato de que é dito no filme que o monstro era considerado um Deus entre os povos da América do Sul. Neste sentido não estaria envolvido aqui uma trama teológica entre o sujeito e Deus na contemporaneidade, na qual o contato com o divino tem em vista sempre um contato direto, sem mediação institucional, apenas a partir de uma experiência particular? Movimentos como a nova Era e as novas formas de espiritualidade (tipicamente orientais) evidenciam exatamente este ponto, ou seja, o objetivo do sujeito é uma espécie de "imersão" na divindade, um abandonar-se e se unir com Deus em uma espécie de nirvana cósmico. Neste sentido podemos falar até mesmo de um contar de uma história da religião no filme de Del Toro. Desde a relação homem-Deus como Deus sendo o objeto estranho, digno de medo, passando pela relação tipicamente cristã de Deus como alguém passível de contato, alguém com quem posso me identificar minimamente e manter uma relação de troca com Ele, até a imersão espiritualista da contemporaneidade na qual esse Deus acaba sendo visto como algo no qual posso imergir e me perder nesse contato. 

Quando Elisa se identifica com o monstro e leva até às últimas consequências tal identificação não estaria ali o desejo pelo desejo do outro em sua forma mais crua? Elisa deseja que haja alguém que a compreenda de maneira muito mais íntima pela qual é compreendida pelo seu vizinho. O encontro entre ela e o monstro evidencia para Elisa a possibilidade desse encontro com o Real do outro, permite a ela experienciar de forma única aquele algo que se encontra escondido no outro, mas que se revela na ausência de palavras capaz de simbolizar tal relação. O que permite que Elisa entre em contato íntimo com o monstro é exatamente a água. O monstro precisa viver dentro da água senão ele morre e Elisa se propõe a encher o seu apartamento de água para que o encontro possa ocorrer. A água, aquela substância totalmente informe, ganha forma no gesto do encontro de Elisa com o monstro. A forma da água, nesse sentido, é a história de um encontro improvável, a história de um amor que transcende a questão física e se concentra em uma entrega que não raras vezes vale a própria vida daquele que ama.

A meu ver, o filme de Del Toro toca em questões bastante pertinentes da nossa época. A questão da tolerância, a questão do outro como diferente de mim, a possibilidade do amor entre o diferente, etc. e traz isso tudo de forma extremamente poética, de forma extremamente leve. A cena inicial do filme em que tudo "flutua" em um quarto inundado enquanto Elisa dorme remete exatamente a essa "morte" que todo ato de amor traz consigo, uma morte que traz vida e que permite que o outro renasça resignificado por mim; e nessa resignificação do outro eu mesmo me resignifico, pois me vejo como alguém que também pode ser amado pelo outro. 

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Zizek, Veliq, Stories...






"Isso nos leva ao que somos tentados a chamar de antinomia da individualidade pós-moderna: a injunção para "ser você mesmo", desconsiderar a pressão do entorno e alcançar a autorrealização, afirmando plenamente seu potencial criativo singular, acaba esbarrando cedo o u tarde no paradoxo de levar quem o obedece a sentir-se completamente isolado daquilo que o circunda, sem absolutamente nada, lançado num vazio da mais pura e simples estupidez. O avesso inerente do "seja seu verdadeiro Eu" é, portanto, a injunção a cultivar uma remodelação permanente em conformidade com o postulado pós-moderno da plasticidade infinita do sujeito... Em síntese, a extrema individualização se transforma em seu oposto, levando à derradeira crise de identidade: os sujeitos experimentam a si mesmos como radicalmente incertos, sem nenhuma "expressão própria", trocando uma máscara (imposta) por outra, uma vez que, em última instância o que está por trás da máscara é nada, um tenebroso vazio que eles tentam freneticamente preencher com sua atividade compulsiva, ou se deslocando entre hobbies e maneiras de se vestir cada vez mais idiossincráticos, a fim de acentuar sua identidade individual. Podemos ver aqui como a individualização extrema (o esforço para ser fiel ao seu Eu, fora dos papéis sociossimbólicos impostos) tende a coincidir com seu oposto, com a estranha e angustiante sensação de perda de identidade - isso não é a confirmação definitiva do insight de Lacan de que só podemos alcançar um mínimo de identidade e "ser nós mesmos aceitando a alienação fundamental na rede simbólica?" (ZIZEK, Slavoj. O sujeito incômodo. 2016 p. 393,394)

Aqui reside a meu ver algo que sempre comento a respeito das novas formas de afirmação do sujeito contemporâneo, essa tentativa frenética de se autoafirmar constantemente acaba por demonstrar uma completa fissura neste sujeito. Ele oscila constantemente entre a autoafirmação de si e a autoafirmação simbólica, ora se apegando a um, ora se apegando a outro. Neste sentido, o drama do sujeito contemporâneo se encontra em sair desse círculo vicioso. Não é de fato curioso o fato de que as redes sociais seja o lugar onde esse círculo vicioso se mostra de forma muito nítida? Ali parece haver uma espécie de "suspensão simbólica" (afinal, as relações nas redes sociais são em grande medida imaginárias), mas ao mesmo tempo uma espécie de aposta no "real de si" (a ideia de que posso livremente expressar quem sou por meio dos meus posts). Nesta estranha economia a que o sujeito contemporâneo está submetido o que está em jogo é, dentre outras coisas, o tipo de persona que será construído pelo sujeito como forma de interação (em grande medida imaginária) com o outro.

Na dinâmica das redes sociais onde tudo é extremamente fluido o fenômeno do "stories" do Instagram ou "snapchat" ganha um contorno ainda mais interessante. A meu ver nada diz mais da nossa sociedade extremamente fluida do que o número de "stories" que são contadas todos os dias nos aplicativos. A ideia de que nem mesmo as minhas ações precisam perdurar, a ideia de que há sempre alguém interessado nos mínimos detalhes da minha vida, a ideia de que posso postar os detalhes mais ínfimos da minha vida e ao mesmo tempo encontrar espectadores para tal, mas com a garantia de que aquilo não ficará mais que 24 horas disponível coloca o sujeito em uma possibilidade de "exposição controlada", ou seja, ele se sente à vontade para compartilhar a sua vida, ("verdadeira", diária, etc.) pois tem plena consciência de que aquele "momento compartilhado" em breve não estará mais ali, mas ao mesmo tempo ele tem plena consciência de que "enquanto o momento está ali" há uma chance de uma parca interação com o outro que o responderá, verá a "stories", etc. Não precisamos dizer que o que é exposto possui um caráter extremamente imaginário, visando passar uma imagem para o outro que várias vezes não corresponde em nada à realidade vivida. Ninguém obviamente publica os remédios que toma, as desavenças que tem, os dramas familiares, etc. O "acordo silencioso" (para usar a expressão de Wittgenstein) é a de que só se deve postar coisas que excitará o desejo do outro, coisas que farão o outro desejar aquilo que possuo, ou no máximo "dificuldades corriqueiras" para tentar passar a ideia de que para além da idealização pretendida ainda se é um ser humano normal, com problemas, etc.

Dessa forma fica nítida que na realidade há apenas uma relação muito espectral do sujeito consigo mesmo e aqui há uma boa pista do porquê que hoje qualquer tentativa de um contato um pouco mais íntimo com o outro se mostra na maior parte das vezes "invasivo" para o sujeito contemporâneo.
Tão acostumado a se relacionar apenas consigo mesmo, tudo que vem do outro aparece como ameaça, como intrusão, como falta de respeito à minha esfera mais íntima. Não é extremamente curioso que hoje muitas pessoas achem o fato de receber um telefonema como algo extremamente invasivo? Ou que qualquer pergunta sobre o trabalho, sobre o relacionamento, etc. soe extremamente perturbadora?
Essa perda da dimensão do outro, ou da dimensão sociossimbólica que nos permeia não nos ajuda a pensar as demandas contemporâneas como a questão gay, ecológica, feminista, dentre várias outras? Não há aqui uma boa pista para encararmos a questão da identidade contemporânea permeada pelas redes sociais e ao mesmo tempo a demanda excessiva para o cuidado de si (alimentar de forma saudável, praticar exercício, ter uma vida espiritual, etc.)?

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

" Se alguém quiser [...] renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me" Mateus 16:24







Uma das questões talvez mais interessantes em relação às diversas músicas cristãs que pregam uma espécie de abnegação do sujeito em relação a si seja o fato de que tais canções partem de pressupostos antropológicos extremamente estranhos do ponto de vista bíblico. 
A ideia de que o ser humano seria um sujeito marcado pelo pecado e que a conversão deveria ser o momento em que ele se assume como "nova criatura", deixando para trás o status de "pecador" e se tornando agora um "santo, raça eleita, etc." é algo extremamente difundido no meio cristão e ao mesmo tempo parte da noção de que, para se viver com Cristo seria preciso que o sujeito de alguma forma "eliminasse sua subjetividade", seu "eu pecaminoso", ou seja, "morresse para o pecado, para ressurgir com Cristo".

Primeiramente precisamos pensar que a proposta cristã trazida por Paulo, longe de propor a aniquilação da subjetividade do sujeito, propõe ao invés disso o assumir pleno de tal subjetividade. O cristão deve, para seguir a Cristo, se colocar como um sujeito capaz de escolher essa vida que lhe é oferecida, e o faz no gozo de suas plenas faculdades mentais. A decisão de viver essa nova vida não é algo que lhe é imputado de fora, mas deve partir de uma adesão íntima do sujeito que se sente movido a agir de tal forma. Interessante notar que no início do cristianismo um fator determinante para a conversão dos gentios eram os milagres feitos pelos apóstolos, depois, à medida que o cristianismo vai se espalhando, os milagres passam a ser menos importantes e o discurso/prática cristã ganha a proeminência que levará os gentios à conversão. Para um exemplo simples basta pegarmos o livro de Atos e perceber a diferença das primeiras conversões com o discurso de Pedro e as conversões advindas das cartas paulinas. Do elemento externo (milagres) ao elemento interno (convicção do sujeito) as conversões bíblicas no primeiro século dão a tônica do tipo de religião que o cristianismo será, ou seja, uma religião de foro íntimo, em o que está em jogo, em última instância não é nada além da intenção do sujeito. Neste sentido aqui é possível uma dura crítica à noção agostiniana de pecado original, coisa que o protestantismo se encarregou de fazer muito bem posteriormente. 

Essa mesma temática aparece em diversas parábolas de Jesus, que como sabemos, foram escritas em época posteriores à teologia paulina. Se pensarmos nas frases enigmáticas de Jesus, "Aquele que quiser vir após mim, negue a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me" (Mt 16,25) parece sugerir que de fato, o cristão, para ser seguidor de Cristo, deve de fato negar a si mesmo em uma espécie de supressão identitária para que só assim "Cristo possa de fato viver nele". No entanto, gostaria de chamar a atenção para o fato de que o contexto judaico no qual tais textos foram escritos mantém uma vinculação muito estreita entre o sujeito e sua comunidade. O sujeito é dentro da sua comunidade, ele se torna o que é, mediado pela sua comunidade. Neste sentido, negar a si mesmo tem muito mais a ver com negar a sua pertença à uma comunidade específica do que propriamente negar o núcleo da sua subjetividade. 

Neste sentido podemos entender as falas de Jesus quando propõe que os seus seguidores "deixem pai e mãe", "irmãos", etc. ou seja, o que Jesus traz consigo é uma proposta de supressão dos laços familiares em prol do Reino de Deus. Nem os laços familiares estão acima da proposta do Reino, nem a pertença à uma comunidade estão acima da proposta do Reino, neste sentido é que se pode entender que aquele que não é capaz desse tipo de renúncia não é digno de Jesus. Os laços familiares, comunitários não podem sobrepor ao Reino de Deus, Reino onde não há judeu, nem grego, nem gentio, etc. mas todos pertencem à uma comunidade universal. Para romper com esse tipo de vínculo é preciso que o sujeito se constitua independente destas estruturas, ou seja, negar a si mesmo pressupõe antes disso um assumir-se a si mesmo como sujeito disposto a aceitar a proposta do Reino. Em termos psicanalíticos, pressupõe que o sujeito assuma o seu desejo e a partir dele seja capaz de fazer sua escolha.  Basta repararmos que o próximo passo que Jesus propõe é uma escolha, ou seja, "tomar a sua cruz" é um ato de escolha do sujeito que, para tal, precisa ser antes de tudo um sujeito capaz de escolha. Se o "negar a si mesmo" fosse um abrir mão da sua subjetividade seria impossível que ele fizesse a escolha posterior de "tomar a sua cruz".

Um outro ponto que gostaria de ressaltar é o "tome a sua cruz". O "tomar a sua cruz", desde o início do cristianismo sempre foi visto como uma espécie de sacrifício que o cristão deveria fazer para que depois de sua jornada terrestre ele fosse capaz de receber a sua recompensa no mundo porvir. Diversos autores cristãos enfatizaram esse ponto e tais leituras remetem à teologia paulina em última instância. No entanto, a teologia posterior, (e talvez o nome principal aqui seja a figura de Kant) se encarregou de evidenciar o estranho mecanismo envolvido nesse tipo de "negociação". Afinal, é bastante óbvio que, se tomo a minha cruz no intuito de receber uma coroa no porvir, o que está em jogo é um mero jogo de barganha velada, ou seja, eu assumo os sofrimentos propostos pelo cristianismo, pois no final irei receber uma vida eterna, etc. Kant evidencia que esse procedimento é extremamente vinculado à lógica da retribuição, mas para além disso, tal procedimento evidencia que a própria estrutura de mundo que a proposta do Cristo visa romper não é rompida pelo cristianismo posterior. 

Mas qual é a estrutura do mundo que a proposta do Cristo visa romper? Ela nada mais é que a lógica da retribuição. Jesus, ao propor que "se dê a outra face", não está propondo aqui um mero masoquismo estúpido, mas sim evidenciando que a justiça não se dá por meio de um reequilíbrio entre as partes, mas se dá pela subversão do amor. No amor o que há é uma escolha vazia, ou seja, uma escolha que elege um objeto como coisa primordial mesmo que aquele objeto não tenha nada para lhe oferecer em troca. A justiça que se vincula ao amor neste sentido não parte da noção de retribuição, mas da noção de "doação". Daí que o "tomar a sua cruz" não deve ser visto como um "sacrifício", mas sim como "doação", evidenciando aquilo que Paulo nos advertia: "Haja em vós o mesmo sentimento que houve em Cristo". (Fp 2,8) A cruz que o sujeito deve tomar é a sua responsabilidade diante do seu desejo. Apenas quando o sujeito é capaz de assumir o seu desejo ele pode dar o passo fundamental que envolve seguir a Cristo sem que seja necessário nenhuma recompensa. Interessante que a proposta de Jesus aos discípulos começa com uma grande condicional "Se alguém quiser vir após mim", ou seja, a proposta de Jesus nunca é de uma obrigação do sujeito, não é de um viés belicoso, mas é sempre um convite gentil que cabe ou não ao sujeito aceitar. 

Neste sentido podemos entender que o "negar a si mesmo" não se vincula à negar a sua vontade, não é nunca uma recusa ao desejo do sujeito, mas muito pelo contrário, é assumir de forma responsável o seu desejo que se vincula à doação por amor a Deus. Só aquele que é capaz de negar a si mesmo é capaz do ato de doação que se vincula à prática do amor. Apenas nesse sentido é que se é capaz de fazer a próxima proposta de Jesus que é "segui-lo".  Esse "seguir" não visa algo em troca, não visa uma "coroa no porvir", mas visa apenas se manter fiel ao seu desejo de doação em prol de alguém em quem se tem fé e é esse tipo de escolha que pressupõe um sujeito responsável, que não nega a sua subjetividade, mas a assume como única forma possível de amar. 




quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

O absurdo e o suicídio - Albert Camus




"Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, aparece em seguida. São jogos. É preciso, antes de tudo, responder. E se é verdade, como pretende Nietzsche, que um filósofo, para ser confiável, deve pregar com o exemplo, percebe-se a importância dessa resposta, já que ela vai preceder o gesto definitivo. Estão aí as evidências que são sensíveis para o coração, mas é preciso aprofundar para torná-las claras à inteligência.

Se me pergunto em que julgar se uma questão é mais urgente do que outra, respondo que é com ações a que ela induz. Eu nunca vi ninguém morrer pelo argumento ontológico. Galileu, que detinha uma verdade científica importante, abjurou-a com a maior facilidade desse mundo quando ela lhe pôs a vida em perigo. Em um certo sentido, ele fez bem. Essa verdade não valia a fogueira. Se é a Terra ou o Sol que gira em torno um do outro é algo profundamente irrelevante. Resumindo as coisas, é um problema fútil. Em compensação, vejo que muitas pessoas morrem por achar que a vida não vale a pena ser vivida. Vejo outras que paradoxalmente se fazem matar pelas idéias ou as ilusões que lhes proporcionam uma razão de viver (o que se chama uma razão de viver é, ao mesmo tempo, uma excelente razão para morrer). Julgo, portanto, que o sentido da vida é a questão mais decisiva de todas. E como responder a isso? A respeito de todos os problemas essenciais, o que entendo como sendo os que levam ao risco de fazer morrer ou os que multiplicam por dez toda a paixão de viver, provavelmente só há dois métodos para o pensamento: o de La Palisse e o de Don Quixote. É o equilíbrio da evidência e do lirismo o único que pode nos permitir aquiescer ao mesmo tempo à emoção e à clareza. Em um assunto simultaneamente tão modesto e tão carregado de patético a dialética clássica e mais sábia deve, pois dar lugar - convenhamos - a uma atitude intelectual mais humilde e que opera tanto o bom senso como a simpatia.

O suicídio sempre foi tratado somente como um fenômeno social. Ao invés disso, aqui se trata, para começar, da relação entre o pensamento individual e o suicídio. Um gesto como este se prepara no silêncio do coração, da mesma forma que uma grande obra. O próprio homem o ignora. Uma tarde ele dá um tiro ou um mergulho. De um administrador de imóveis que tinha se matado, me disseram um dia que ele perdera a filha há cinco anos, que ele mudara muito com isso e que essa história “o havia minado”. Não se pode desejar palavra mais exata. Começar a pensar é começar a ser minado. A sociedade não tem muito a ver com esses começos. O verme se acha no coração do homem. É ali que é preciso procurá-lo. É preciso seguir e compreender esse jogo mortal que arrasta a lucidez em face da existência à evasão para fora da luz.

Há muitas causas para um suicídio e, de um modo geral, as mais aparentes não têm sido as mais eficazes. Raramente alguém se suicida por reflexão (embora a hipótese não se exclua). O que desencadeia a crise é quase sempre incontrolável. Os jornais falam freqüentemente de “profundos desgostos” ou de “doença incurável”. Essas explicações são válidas. Mas seria preciso saber se no mesmo dia um amigo do desesperado não lhe falou em tom indiferente. Este é o culpado. Pois isso pode ser o suficiente para precipitar todos  os rancores e todos os aborrecimentos ainda em suspensão.i

Mas, se é difícil fixar o instante preciso, o procedimento sutil em que o espírito se decidiu pela morte, é mais fácil extrair do próprio gesto as conseqüências que pressupõe. Matar-se é de certo modo, como no melodrama, confessar. Confessar que se foi ultrapassado pela vida ou que não se tem como compreendê-la. Mas não nos deixemos levar tanto por essas analogias e voltemos à linguagem corrente. É somente confessar que isso “não vale a pena”. Naturalmente, nunca é fácil viver. Continua-se a fazer gestos que a existência determina por uma série de razões entre as quais a primeira é o hábito. Morrer voluntariamente pressupõe que se reconheceu, ainda que instintivamente, o caráter irrisório desse hábito, a ausência de qualquer razão profunda de viver, o caráter insensato dessa agitação cotidiana e a inutilidade do sofrimento.

Qual é, portanto, esse sentimento incalculável que priva o espírito do sono necessário à vida? Um mundo que se pode explicar mesmo com parcas razões é um mundo familiar. Ao contrário, porém, num universo subitamente privado de luzes ou ilusões, o homem se sente um estrangeiro. Esse exílio não tem saída, pois é destituído das lembranças de uma pátria distante ou da esperança de uma terra prometida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e seu cenário, é que é propriamente o sentimento da absurdidade. Como já passou pela cabeça de todos os homens sãos o seu próprio suicídio, se poderá reconhecer, sem outras explicações, que há uma ligação direta entre este sentimento e a atração pelo nada.

O assunto deste ensaio é precisamente essa relação entre o absurdo e o suicídio, a medida exata em que o suicídio é uma solução para o absurdo. Pode-se tomar por princípio que, para um homem que não trapaceia, o que ele acredita verdadeiro deve lhe pautar a ação. A crença na absurdidade da existência deve, pois, lhe dirigir o comportamento. É uma curiosidade legítima se indagar claramente, e sem falso pateticismo, se uma conclusão de tal ordem exige que se abandone o mais que depressa uma condição incompreensível. Refiro-me aqui, é claro, a homens dispostos a estarem de acordo consigo mesmos."

(CAMUS, Albert. "O absurdo e o suicídio" em "O mito de Sísifo - Ensaios sobre o absurdo". Tradução de Urbano Tavares Rodrigues. pp. 15-17. Disponível em https://static.fnac-static.com/multimedia/PT/pdf/9789723829358.pdf acessado em 17/01/2018)



i Não deixemos passar a oportunidade de assinalar o caráter desse ensaio. O suicídio pode, de fato, estar ligado a considerações muito mais honrosas. Por exemplo: os suicídios políticos ditos de protesto na revolução chinesa. [A edição original de O Mito de Sísifo é de 1942: o autor, portanto, certamente ainda não tivera conhecimento do fenômeno Kamikase, que lhe despertaria a atenção para outros, análogos, na civilização japonesa. Sua nota, porém, antecipa a consideração do auto-sacrifício dos bonzos na antiga Saigon, hoje Ho Chi Minh, durante a guerra do Vietnã (N. do T.)]

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Uma reflexão sobre o dia do Teólogo





No dia do teólogo que é hoje estava observando e vi que já escrevi diversos textos, artigos acadêmicos sobre Deus, o que é sempre um tema instigante para se ponderar. A minha visão sobre Deus tem mudado bastante ao longo desses anos em que venho estudando mais a fundo tais conceitos, mas acredito ser esse o trabalho teologal, o refletir para que a fé vá se aprimorando, para que os conceitos possam dançar e para que dessa dança possa sair alguma luz que ilumine os outros.

Pensar sobre Deus é sempre difícil, pois acaba mexendo com questões extremamente íntimas, estruturais, mas que precisam ser pensadas por aqueles que querem ter um relacionamento com Deus. Para que tal relacionamento não seja uma mera reprodução de conteúdos ensinados pelos nossos pais e avós no processo de crescimento, mas que seja algo construído pelo próprio sujeito a partir das suas experiências com Deus e com o conhecimento possível sobre Ele(a).

Neste sentido a Psicanálise, para além da Teologia e da Filosofia tem me sido de grande valia para pensar sobre Deus. As críticas de Freud, Lacan e diversos outros teóricos sobre tal conceito são críticas que todo teólogo deveria encarar seriamente, pois elas mostram como que várias vezes a ideia de Deus surge como uma promessa vã de conforto, surge como um engodo para a infantilização do sujeito, mas ao mesmo tempo a psicanálise também mostra a partir de outros autores que é possível um relacionamento "saudável" com Deus, com a fé, com a Religião.

Como alguém que estuda seriamente estas questões há mais de 10 anos, me incomoda tremendamente o ateísmo vulgar, aquele ateísmo panfletário que quer manter uma crítica tipicamente do século 19 ignorando completamente os avanços tanto do ateísmo contemporâneo, quanto até mesmo das formulações teológicas contemporâneas que passam totalmente despercebidas por diversos ateus quando vão criticar a religião do século 21. Vários insistem em criticar a religião a partir de Marx com a sua noção de "ópio do povo", mas desconhecem a Teologia da Libertação que longe de ser "ópio" foi e é um grande instrumento de mudança social em diversos lugares do Brasil e da América Latina.

Outros insistem em utilizar a crítica feuerbachiana (a meu ver muito mais consistente que a crítica marxista), mas se esquecem do limite de tal crítica no seu conceito de projeção que é visto de maneira um tanto quanto ingênua por Feuerbach e na mesma esteira por Freud e seu conceito de ilusão. Ao focarem nesse tipo de crítica esquecem de teólogos como Karl Rahner que fez questão de responder pontualmente a crítica feuerbachiana no século 20, se esquecem do esforço de Karl Barth contra a crítica de Feuerbach também no século 20, se esquecem de Oskar Pfister e sua seríssima reflexão sobre o diálogo entre Psicanálise e Religião, diálogo esse que manteve com Freud por mais de 30 anos, e que pensou de forma muito rica as possíveis relações saudáveis do sujeito para com a religião e para com a figura de Deus. Se esquecem até mesmo de Lacan e sua visão um pouco mais "positiva" para com a religião como "Sinthome" possível para o sujeito, isso para citarmos apenas alguns exemplos que mais saltam à vista.

Penso que o ateísmo é uma postura extremamente importante, extremamente rica e é uma forma de lidar com o mundo extremamente adulta, pois não espera nada de Deus, uma vez que ele(a) não existiria. Penso ao mesmo tempo que o ateísmo levanta diversas questões sérias à teologia. Questões essas que devem ser pensadas seriamente por nós, teólogos, se quisermos ter algo a dizer no mundo contemporâneo. Neste sentido acho extremamente interessante o debate que diversos ateus fazem no século 21 com a religião. Figuras como Slavoj Zizek, Heidegger, Laclau, trazem temas importantíssimos para o debate entre ateísmo e religião que não partem da ingenuidade que vários ateus panfletários insistem em manter.

Obviamente que falta à teologia e a diversos teólogos de hoje um debate um pouco mais honesto com a psicanálise e em várias medidas com a própria filosofia, mas é inegável o avanço que a Teologia tem feito no século 20 e 21. No dia do teólogo penso ser o nosso dever repensar o nosso diálogo com as diversas áreas do conhecimento e nos propormos manter uma relação de troca mútua e saudável sempre dispostos a aprender com outros campos do saber. Se a teologia tem avançado bastante nos últimos anos é por meio do esforço de diversos teólogos que não se contentam em apenas se fecharem nos seus gabinetes e refletirem sobre um Deus etéreo, mas se colocarem como agentes modificadores do mundo. Temos diversos exemplos destas figuras no Brasil, figuras como Leonardo Boff, Rubem Alves, Dom Helder Câmara e tantos outros às vezes desconhecidos, mas que auxiliaram, questionaram, lutaram e lutam contra as mazelas sociais revelando um Deus várias vezes desconhecido por outros, mas revelado diariamente nas ações que auxiliam o outro.

Hoje celebramos o dia do Teólogo e acredito que essa função tem se tornado uma função extremamente importante diante do mundo em que vivemos. Não apenas por trazer reflexões sobre temas cada vez mais importantes para nós, mas por se colocar como discurso extremamente libertador para o sujeito contemporâneo diariamente massacrado por discursos vazios. Acredito que a grande tarefa do teólogo hoje é se mostrar aberto aos outros discursos sem pretender ter a última palavra, sem pretender ser aquele que detém a verdade que apenas deve ser "espalhada" mundo a fora. Rubem Alves, teólogo protestante brasileiro, já nos dizia que a teologia é um grande brincar com "contas de vidro", ou seja, é um brincar com coisas extremamente frágeis, é brincar com palavras como se fosse uma grande feitiçaria, pois acredita no poder criador das palavras com as quais se brinca.

Que nós enquanto teólogos possamos brincar com cada vez mais alegria com nossas contas de vidro e que nessa brincadeira possamos encantar a outros, e encantando a outros possamos revelar um(a) deus(a) várias vezes desconhecido(a) de muitos.

PS: Fiquei muito feliz com as diversas felicitações recebidas hoje por diversas pessoas. Esse reconhecimento é sempre um estímulo para prosseguir com as pesquisas e as reflexões sobre temas tão necessários na atualidade.