segunda-feira, 25 de março de 2019

Paradoxos contemporâneos



O copo com autofluxo de Robert Boyle preenche a si próprio neste diagrama





Qualquer um minimamente inteirado do modo de funcionamento do capitalismo tardio sabe que enquanto a democracia favorecia os interesses do capital ela precisava ser mantida, pois o próprio capitalismo acabava por perceber que a suposta responsabilidade do sujeito pela vida política o torna também consumidor de uma forma de vida um pouco mais complexa. Por complexidade aqui queremos dizer tanto do ponto de vista teórico, quanto do ponto de vista prático.

No entanto, assim que a democracia deixou de ser hegemônica (ou seja, dominada por uma elite extremamente seleta) dada as diversas vozes encontrando eco na democracia, por exemplo, o alcance do negros no mercado de trabalho, a questão feminina se colocando contra o domínio do patriarcado, uma classe mais pobre começando a conhecer e reivindicar seus direitos, a democracia precisou ser reconfigurada para que os interesses do capital continuassem sendo alcançados. Essa chave de leitura nos permite entender em grande medida o colapso democrático no mundo do século 21.

A tônica da reconfiguração da democracia se vê exatamente no momento em que a possibilidade de representatividade aumenta como fruto dos embates pós 1970. Para que o capitalismo se mantenha não é mais necessário que os sem voz permaneçam sem voz, mas é preciso que a sua própria voz seja transformada em produto pelo próprio modo de produção capitalista. Enquanto não se tem voz, não é possível consumir de maneira adequada, pois falta dignidade a esse comprador no mercado global, de forma que é necessário que essa voz seja ouvida, pois cada pessoa é sempre um consumidor em potencial. Se os sem voz continuam sem voz, se a democracia caminha na direção oposta, ela precisa ser reconfigurada, ou seja, ser realinhada aos interesses do capital. 

Aqui há um curioso paradoxo envolvido. As democracias sempre foram exaltadas como um modo de governo em que as minorias podiam se expressar de maneira um pouco mais enfática e ter um mínimo de representatividade nas esferas do poder. No entanto, o processo democrático moderno sempre esteve sob a tutela do modo de produção capitalista (assim como qualquer regime de governo no capitalismo) que já se mostrou funcionar sob a dinâmica do acúmulo de riqueza por uma parte cada vez menor da população. (Atualmente cerca de 2% da população domina cerca de 98% das riquezas produzidas) Dessa forma quanto mais representatividade se adquire, mais o capitalismo tardio transforma tal luta pela representatividade em objeto a ser consumido. Em última instância podemos dizer que o fortalecimento das democracias funcionam como suporte para o capitalismo enquanto os agentes envolvidos na democracia permaneçam consumidores. Claro que aqui não estamos dizendo que as lutas por representatividade não sejam importantes, muito pelo contrário. Temos a plena consciência que tais lutas são de um ganho enorme para diversas parcelas da sociedade; o que ressaltamos aqui é que no modo de produção do capitalismo tardio até mesmo as reivindicações são transformadas em produto.

É aqui que percebemos em que medida as diversas lutas das minorias se tornam abocanhadas pelo capitalismo de maneira nada velada. As pautas feministas, negras, homoafetivas se tornam produtos a serem consumidos exatamente por essas minorias e também pelos próprios apoiadores das causas em questão, de forma que a crítica se torna um meio para ascender aos valores ditados pelo próprio capitalismo que faz com que a própria luta pela representatividade reforce os ideais advindos do capitalismo. Quando alguma minoria tem como maior interesse se adequar aos valores do capitalismo percebemos que a ideologia capitalista já está sedimentada de forma quase que acabada.

Tais valores penetram na vida do sujeito de maneira tão sutil que simplesmente o sujeito se sente empoderado pela noção de poder dada pelo próprio sistema econômico que o colocou como minoria. Isso é um paradoxo que faz com que as lutas, por mais importantes que sejam, se tornem inócuas do ponto de vista sistêmico. É preciso sim a luta das minorias, no entanto penso que elas não devam ser um fim em si mesmo, mas ser um degrau para que os valores do capitalismo sejam substituídos por outros valores em que o humano seja o mais importante e não o capital.

Dessa forma conseguimos traçar uma dinâmica extremamente sutil do capitalismo tardio. As lutas pelas representatividades típicas do nosso tempo, por mais importantes que sejam são transformadas como fim em sim mesmo e dessa forma perpetuam o sistema que permitem que elas ocorram, uma vez que as lutas são pautadas pelos valores dados pelo próprio sistema que visa combater. Para além das lutas pelas representatividades diversas, penso ser necessário que tais pautas não sejam um fim em si mesmas, mas levem o sujeito a ascender aos lugares de poder ditados pelo capitalismo como forma de minar por dentro o próprio sistema. A luta das minorias é uma luta hercúlea que facilmente acaba sendo desviada em nome dos valores do sistema econômico. É preciso, no entanto, não perder o foco da luta para que ao invés de meras performances inócuas tenhamos de fato uma mudança no status quo. 



quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

O frágil sujeito contemporâneo e sua atividade passiva.





Não há nada mais frágil que o sujeito contemporâneo. Tudo o fragiliza, tudo é motivo para que ele se sinta ofendido, magoado, rejeitado, etc. É como se de alguma forma esse sujeito não se sentisse fixado a nada, como se ele estivesse sempre pairando sobre um vazio sem  nenhum tipo de apoio a não ser os micro-apoios que cria para si através de pautas cada vez mais genéricas, ("Vamos acabar com a fome no mundo". "Quero um mundo sem guerras") ou pautas ultra-específicas. ("Sou contra usar coleira em cachorro", "não podemos comer verduras porque elas pensam", etc.)

Curiosamente esse sujeito contemporâneo é o que mais assume para si "causas". Todo dia aparece alguém lutando por algum novo motivo urgente que PRECISA ser debatido, que precisa ser dialogado, que precisa ser "coletivizado". No entanto, uma dinâmica muito interessante é que na maioria das vezes não há nenhum tipo de ação efetiva no mundo para a mudança de absolutamente nada. Com o avanço das redes sociais, o que mais se vê é o já famoso "ativismo online" em que o sujeito se mostra super engajado (mas apenas nas redes sociais), super crítico (mas apenas nas redes sociais), disposto a refletir (mas apenas nas redes sociais) e tudo isso permeado de discursos, compartilhamentos de entrevistas, compartilhamento de outros compartilhamentos ad nauseam sem que isso altere em absolutamente nada a vida nem mesmo a vida do seu vizinho, quem dirá do mundo.

Por incrível que pareça, o sujeito contemporâneo totalmente aberto a tudo e a todos padece de um mal diagnosticado por Marx lá no século XIX ao criticar a esquerda hegeliana. Marx afirmava que a esquerda hegeliana tinha a ideia (ainda iluminista) de que à medida que as pessoas fossem esclarecidas dos seus problemas, esclarecidas do que estava acontecendo, elas mudariam a sua forma de viver, elas agiriam diferente, e só não agem porque desconhecem as coisas. E aí entraria o papel do filósofo, pois ele seria aquele que esclareceria o sujeito ignorante para que ele pudesse agir corretamente. Marx compara esse tipo de ideia a um homem que está se afogando e tenta se salvar se puxando pelos próprios cabelos. Ou seja, totalmente inútil essa atitude "esclarecedora" da esquerda hegeliana, e é nesse contexto que Marx diz a famosa frase "não é a consciência que determina o modo de existência, mas as condições materiais de existência que determinam a consciência." Se algo precisa ser mudado não é a forma de pensar das pessoas, mas sim as condições que fazem as pessoas pensarem como elas pensam. 

Essa crítica de Marx lá no século XIX pode ser transposta para os dias de hoje de maneira quase que direta, só que com um pequeno agravante; hoje não são os filósofos que pensam assim, mas basicamente todo mundo na era das redes sociais pensa assim, de forma que a única atitude vislumbrada por esse sujeito é o que? "Esclarecer os outros". A aposta ainda é algo como "fulano age assim porque não sabe isso ou aquilo, então, o meu papel como alguém que supostamente sabe algo é, na medida do possível, ajudá-lo para que ele saia da ignorância e aí ele vai agir diferente." Obviamente que em algumas situações esse "Approach" pode até ser interessante e profícuo, no entanto o que vemos é que via de regra o sujeito contemporâneo só está disposto a fazer isso mesmo. Tudo aquilo que extrapole o seu papel de "esclarecedor" está fora de cogitação, afinal, "o mundo é assim né? Fazer o quê?"

Neste sentido percebemos que o ativismo online funciona como um suporte ideológico muito grande para que no excesso de agito tudo continue exatamente do mesmo jeito. Na época dos "stories críticos", "stories elucidativos", "stories educativos", "stories reflexivos", o sujeito de fato acredita piamente que está mudando de alguma forma a vida de alguém, ou de fato lutando por alguma causa que considera justa, digna, etc. sendo que na realidade o que está sendo feito é apenas uma performance para que o outro o veja como alguém "elucidativo", "reflexivo", "educador", "crítico", etc. Claro que pode haver algum tipo de benefício nisso, e com certeza algumas pessoas podem de fato refletirem, se esclarecerem a partir dessa dinâmica, mas do ponto de vista da realidade nua e crua como ela é, esse tipo de dinâmica se mostra uma espécie de placebo para que nesse torpor o sujeito se sinta realizado sem fazer absolutamente nada. 

Essa nova relação com a "atividade" está no cerne da dinâmica do capitalismo tardio que pode continuar funcionando perfeitamente enquanto o agito online apenas faz barulho, mas impacta muito pouco na efetividade da vida das pessoas. É este o ponto que a meu ver acaba por fragilizar ainda mais o sujeito contemporâneo, pois na realidade esse sujeito não passa de uma grande performance, não disposto a se entregar por nada que não seja ele próprio. Até mesmo as grandes causas que sempre são debatidas como "racismos", "feminismos", "movimentos homoafetivos" entram nessa mesma dinâmica. Dificilmente a luta se dá de maneira efetiva, mas é diariamente performada nas redes sociais, mas sem que isso encontre raiz suficiente para que o sujeito se ancore em tais causas. 

Nesta atividade passiva o sujeito se angustia cada vez mais, pois o que ela performa online cria para ele ao mesmo tempo a demanda por ação maior, (o pensamento de que "eu devia estar fazendo mais", "olha como sou uma farsa", etc.) mas também o apazigua no mesmo instante (o pensamento de que "poxa, já estou fazendo o que posso", "eu tenho contas a pagar, não posso largar tudo e me dedicar a uma causa", "poxa, mas se cada um fizer um pouquinho a coisa melhora", etc.) e neste movimento pendular, como não se ancora em absolutamente nada, o sujeito vai se tornando cada vez mais perdido e oscilante em suas ponderações, criando cada vez mais para si pequenas micro-regras para o orientar, mas sem saber que com isso se perde cada vez mais. 

Triste a situação do sujeito contemporâneo oscilando de um lado para outro, de um extremo a outro, sem norte, desbussolado, tentando a todo custo encontrar algo pelo qual anima viver, mas ao mesmo tempo com medo de parecer "intransigente" se escolher um valor para si pelo qual a sua vida valha a pena. 

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Meus primeiros passos com Freud






Esse texto foi a primeira coisa que escrevi sobre Freud em 2006 quando fazia a matéria de estética na UFMG. Encontrei esse texto (que era a resposta a uma questão de prova da disciplina) e compartilho com vocês. 

A pergunta era: " Explique como Freud articula os conceitos de inconsciente, resistência e recalque."


Segundo Freud, o recalcamento ocorre quando as aspirações morais do ego entram em conflito com a maneira de satisfação da libido. Devido a isso, ocorre a separação entre a representação e o afeto.
A representação sofre o recalque e é enviada para o inconsciente onde é esquecida. Isso não acontece com o afeto que fica livre na consciência.
Já a resistência para Freud surge após o recalcamento e é uma força que se opõe a volta do conteúdo recalcado à consciência.
Para ele, a sua manifestação se dá de várias formas, dentre elas pode-se citar a resistência intelectual, e a resistência onírica que pode ser encarada como “censura” que são temas trabalhados por Freud em outras conferencias também.
Para Freud a resistência e recalcamento estão sempre ligados.
Só se tem a resistência porque houve um recalque em alguma hora. A experiência do recalque quer se tornar consciente e não consegue por causa da resistência que a impede.
O conceito de Inconsciente é fundamental dentro da Teoria Freudiana.
Não tem como conceber a teoria freudiana sem entender o inconsciente. Esse é um termo chave da teoria e representa a parte do aparelho psíquico que o eu não tem acesso. Os conteúdos presentes no inconsciente não podem ser representados de forma direta e só se mostram após terem passado por um trabalho de deformação.
O inconsciente é também uma instância psíquica que pode ser determinada através de três pólos: um econômico, um dinâmico e outro topográfico.
Freud articula esses conceitos afirmando que o inconsciente armazena o objeto recalcado e cria ele mesmo a resistência para que este não volte à consciência.

Depois desse texto muita coisa já escrevi sobre Freud que todos sabem é um autor por quem tenho um interesse especial. Caso queiram ler outros textos meus sobre Freud aqui abaixo segue alguns links de artigos já publicados. 






sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

O hábito da Filosofia: ou Sobre a arte de lidar com minhocas.




Foto da Glowworm caves na Nova Zelândia. As luzes são emitidas pelas minhocas que habitam a caverna.  
Disponível em https://paraondefor.com.br/glowworm-caves-caverna-das-minhocas-brilhantes/


Nós, os filósofos, temos uma certa "tara" por minhocas. Cultivamos diversos tipos delas nos mais diversos solos e nas mais diversas condições climáticas. Para mim, uma condição necessária para se ser um bom filósofo é meio que gostar de cultivar minhocas. 
No entanto, nossas minhocas são um pouco diferentes daquelas do pescador, daquelas das pessoas que aram a terra, adubam, etc. As nossas minhocas passam por questões que várias vezes nem sequer existem, mas passam a se colocar como problemas porque nós as elegemos como tais. 

Obviamente que todos nós, não somente os filósofos, cultivamos minhocas de vez em quando. Aquela sensação de algo vai dar errado, aquela sensação de que alguma coisa não está certa quando tudo está normal, aquela sensação de que somos feios, gordos, desinteressantes, que ninguém nos amará, que somos barrigudos, que somos uma farsa ambulante, que somos o pior dos seres humanos sobre a face da Terra, que não somos bons em nada, que nossa profissão não é o que gostaria de fazer, que minha vida não tem sentido, etc. tudo isso é o que aqui chamo de minhocas e que tenho certeza que qualquer leitor desse texto já cultivou alguma em algum período da vida. 

Claro que algumas dessas minhocas são mais frequentes em épocas pontuais da nossa vida. A questão da aparência é típica da adolescência e todos os traumas advindos dessa fase nebulosa; as questões referentes aos laços mais sólidos é típica da fase infantil, em que as relações basilares da vida do sujeito estão sendo construídas, etc. A questão do se sentir uma farsa tem muito a ver com a idade adulta e o discurso do capitalismo tardio em que nunca se está com conhecimento suficiente, nunca se é bom o bastante, etc. Não preciso dizer, entretanto, que isso não é "rígido"; ou seja, dependendo da vivência de cada pessoa, algo que seria comum acontecer durante a infância passa a acontecer na adolescência, na fase adulta, etc. Cada caso é um caso quando se trata de criação de minhocas. 

No caso específico de nós filósofos, as minhocas desempenham  um papel crucial para o exercício da nossa função, afinal, é com elas que trabalhamos. Não nos aventuramos a mexer com quase nada que não sejam minhocas. No entanto, nossas minhocas são várias vezes criadas e cultivadas por nós mesmos e debatidas e compartilhadas entre nós mesmos. Quem mais sofre quando se convive com um cultivador profissional de minhocas são os mais próximos. Afinal, são eles que tem que nos lembrar diversas vezes que nossas minhocas nem sequer existem na realidade, e que se caso fôssemos cultivar minhocas seria muito mais proveitoso cultivar minhocas reais do que minhocas imaginárias. Não é raro vermos os próximos de nós propor uma espécie de "giro wittgensteiniano" para nos dizer que na realidade o que estamos tratando são falsos problemas e trazer a questão para o plano da "realidade". Nem sempre esse giro resolve o problema, mas tem sido uma prática bastante utilizada por pessoas próximas a cultivadores de minhocas. 

No entanto, nem tudo são ônus para os que convivem com cultivadores de minhocas. Como cultivamos vários tipos de minhocas e como as cultivamos por muito tempo e em diferentes solos, somos experts em identificar as minhocas quando elas aparecem naqueles que nos são próximos. Neste sentido, os amigos dos cultivadores de minhocas se beneficiam bastante dos nossos saberes, pois as identificamos muito facilmente e somos capazes de arrancar as minhocas dos solos alheios com certa destreza. Eu na minha experiência de vida já transitei por diversas terras cheias de minhocas e fui capaz de arrancá-las de maneira bastante hábil. Ainda hoje retiro minhocas de terrenos quase que semanalmente e de diversas pessoas. 

Mas como diz aquele velho ditado (talvez o meu segundo ditado preferido, pois o primeiro é "enquanto houver cavalo, São Jorge não anda a pé") "em casa de ferreiro, o espeto é de pau", ou seja, nós, tão hábeis em arrancar minhocas alheias, encontramos uma dificuldade assombrosa em arrancar as minhocas em nossa própria propriedade; pelo contrário, ao invés de arrancá-las, nós as cultivamos, alimentamos, as transformamos em verdadeiros monstros que quase nos dominam de forma assombrosa. O grande desafio para nós, os cultivadores de minhocas profissionais, é de fato não deixar que as minhocas dominem o nosso terreno, mas que nós as dominemos. Obviamente que nem sempre somos capazes de fazer isso sozinho, e é exatamente nessas horas que os amigos aparecem, pois eles são capazes de (talvez por já nos ter visto atuando em algum momento) retirar habilmente as minhocas de nossas terras. Os métodos variam de amigo para amigo. Alguns são mais incisivos e as retiram a machadadas no melhor estilo nietzscheano e sua filosofia do martelo, outros procuram um viés um pouco mais sutil, cercando o terreno, vislumbrando o deslocamento delas para depois as retirarem de forma bastante delicada; os estilos são tão variados quanto são os amigos que lidam com isso conosco. Nesse contexto também temos outros profissionais que lidam especificamente com minhocas alheias (embora acredite que eles também possuem certas dificuldades em lidar com suas próprias minhocas) que são os psicólogos, psicanalistas, professores, etc. 

Como já deve ter ficado claro, lidar com minhocas é algo que todos nós fazemos e podemos dar nomes clínicos para diversos dessas minhocas com as quais lidamos. Algumas são reais e demandam remédios, outras são imaginárias, outras são meio que reais, meio que imaginárias, mas em todo caso sabemos que nem toda minhoca é "em si" um problema, mas o problemático é a forma como resolvemos lidar com elas, o espaço que deixamos elas ocuparem em nosso terreno, o que as deixamos fazer em nossa terra. Saber cultivar e arrancar minhocas é uma tarefa árdua até para os profissionais, quem dirá para o leigo.  De toda forma, caso necessite de alguém que trabalhe com minhocas, lembre-se que nós, os filósofos, somos experts nesse tipo de problema e somos capazes de resolver uma boa parte dos problemas com minhocas em terras outras, mas temos muitas dificuldades para resolver em nossas próprias terras. Para resolver em nossas próprias terras sempre precisamos de amigos, psicólogos, psicanalistas, professores, etc. etc. etc. 

Caso você esteja enfrentando sérios problemas com minhocas procure ajuda. Um psicólogo, um psicanalista, um psiquiatra, um filósofo, cada um com seu método de tratamento. No caso do filósofo será muito mais um auxílio por meio de uma boa conversa do que propriamente um "tratamento". No caso de tratamento recomendo mais um psicólogo, um psicanalista, talvez um psiquiatra, tudo dependendo sempre do tipo de minhoca que anda transitando em suas terras. E claro, às vezes um amigo da Letras, um amigo da Música, um amigo das Artes também podem ser de grande valia, pois te ajudará a perceber facetas que nem sempre você foi capaz de perceber enquanto cultivador de minhocas profissional.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

A doçura de caráter - O ceticismo de Pirro



Fonte da imagem: https://veja.abril.com.br/revista-veja/a-licao-de-pirro-para-2018/



Pirro de Élida, foi um dos grandes filósofos da antiguidade, que trouxe uma novidade no pensamento grego antigo. Mesmo sendo considerado um cético pelos escritores posteriores à sua época como exemplo de Cícero, Sexto Empírico, dentre outros , a sua filosofia pode ser considerada como cética no sentido em que aquilo que Pirro defendia era a suspensão do juízo e a busca da ataraxia através da adiaforia. Pirro por si só não escreveu nada, a não ser uma poesia dedicada a Alexandre . O que nos chegou de Pirro foi escrito por seu discípulo mais próximo Timão, que fez um relato das idéias e dos ensinamentos de seu mestre.

Pirro, viajou com Alexandre pelo Oriente, e isso fez uma grande diferença em seu pensamento, uma vez que entrou em contato com o pensamento do Oriente, especialmente com os gnosofistas, (ordem de provável origem indiana que se dedicavam ao estudo da ética e da física como prática da virtude)  e segundo se falam, Pirro presenciou a morte de Cálamo, que mesmo enquanto estava sendo queimado, mostrava-se tranqüilo em relação a situação que estava vivendo. Claro que não podemos esquecer da influencia de Demócrito de Abdera e de Anaxarco que o ensinaram muitas coisas e influenciou bastante seu pensamento como também Brison, do qual Pirro foi discípulo.

A principal característica de Pirro, era duvidar de tudo e ser indiferente a tudo, (adiaforia) esse era o ceticismo de Pirro. Para Pirro a epoché ( suspensão do juízo) é caminho que o sábio deve fazer para alcançar a paz de espírito ou ataraxia. A dúvida cética não se referiria às aparências ou fenômenos que são evidentes, mas em relação às coisas que nos são ocultas. A Pirro é também atribuída os dez tropos, ou razões da dúvida, dos quais neles se inserem as contradições do sentido.

A vida de Pirro se caracterizou pela sua total indiferença em relação às coisas, o seu principal propósito era a ataraxia e a busca de uma boa regra de conduta. Segundo Pirro, para que essa ataraxia fosse alcançada, o sábio deveria suspender seu juízo sobre as coisas. A epoché e adiaforia são as principais características de Pirro e que ele tentou passar a seus discípulos. Pirro se negava a discutir com os filósofos de sua época; a sua única resposta é que ele não sabia nada, e assim o fazia para viver uma vida isenta de preocupações, e viver tranqüilo e feliz. Pirro fez da dúvida, um instrumento de sabedoria, moderação e firmeza.

Os relatos sobre a vida de Pirro, mostram que ele vivia com seu espírito inabalável, mesmo quando as situações adversas lhe aconteciam. Sua uniformidade de alma era inalterada e praticava com serenidade a indiferença que ensinava. Era venerado por seus discípulos por viver de acordo com aquilo que pregava, e era isso que dava autoridade a seu discurso.

Concluindo, ao contrário das religiões em sua forma mais comum, nos quais se abandonam as coisas da vida na espera de uma recompensa, (quer tal recompensa seja pensada como reencarnação, lei de causa e efeito, vida eterna, etc.) a vida de Pirro era de indiferença, não por causa dessa espera, mas porque via nisso uma forma de viver feliz, era como se fosse algo de sua própria natureza essa indiferença. Algo que fica bem notado é a influência que o pensamento oriental e gnosofista teve na vida de Pirro juntamente com os pensamentos de Buda. A vida de Pirro foi portanto um exemplo para os seus seguidores, podemos afirmar que em Pirro se manifesta a ideia de que a doçura de caráter é a última palavra do ceticismo. 

terça-feira, 27 de novembro de 2018

José e Maria indo para Belém.







O individualismo político como grande paradoxo do mundo globalizado nos mostra que a proposta de uma aumento da liberdade no domínio do capitalismo não passa de uma ideia abstrata e falaciosa. Quanto mais se advoga liberdade, mais se vê o recuo do sujeito contemporâneo alheio a qualquer forma de empatia para com o próximo.  Este cenário se tipifica de maneira visível no excesso de protecionismo econômico e no excesso de muros que cada vez mais cercam os territórios como forma de proteção contra o próximo visto como ameaça. É neste contexto que se coloca a questão dos imigrantes na Europa, a questão mexicana nos Estados Unidos, os Venezuelanos no Brasil e vários outros exemplos mundo afora. 

Talvez aqui esteja o cerne da proposta de Jesus tipificada nos evangelhos, uma liberdade que não passa pelo individualismo contemporâneo, mas uma liberdade que tem na comunidade a sua única condição de possibilidade. É talvez por isso que podemos dizer sem sombra de dúvida que a proposta comunitária de Jesus e dos discípulos no início do cristianismo vai na contramão da proposta do capitalismo tardio do individualismo exacerbado. Trava-se uma luta entre uma visão comunitária do humano e uma visão individualista em que nada além do sujeito importa. O que fica claro para nós é que esta dinâmica são totalmente relacionadas.  De um lado a aposta em uma possibilidade da vida comunitária para além da lógica do capital, do outro lado o individualismo como resposta última que esvazia o sujeito de todo vínculo para além de si. Claramente uma se coloca como grande antítese da outra, em que a primeira é esvaziada em seu núcleo mais íntimo e o que sobra seria apenas a sua face performática tipificada nas novas agremiações, pseudo-pautas, etc.  

Neste contexto podemos perceber porque hoje os novos espiritualismos chegam com força no nosso meio, pois eles apenas reforçam o individualismo numa busca incessante de reforçamento do eu e um esquecimento do outro.  Da mesma forma percebemos porque o discurso neopentecostal encontra grande repercussão social, pois ele apenas reflete de maneira material aquilo que os espiritualismos contemporâneos manifestam do ponto de vista majoritariamente performático.  A lógica da performance é a lógica do capitalismo tardio, e por isso que é fácil de perceber como que as duas facetas que mais crescem na religião contemporânea são facetas também performáticas, afinal essa  é a lógica defendida pelo capitalismo tardio da produção incessante. O que se produz incessantemente neste contexto é a busca de si, a visão econômica, quantitativa, performática do sujeito em que ele é avaliado pela própria dinâmica da produção incessante de si, da busca incessante do "mistério", do "novo", etc. 

Não dizemos mais que a religião é o "ópio do povo" ou "o suspiro da criatura oprimida" como Marx gostava de falar, mas dizemos que hoje a religião (pelo menos a institucionalizada) [sobre esta diferenciação crucial, leia aqui] é o sintoma do sujeito desbussolado dominado pelo capitalismo tardio. Restaurar o núcleo duro da religião talvez seja a tarefa mais árdua para os dias atuais, pois uma religião que se alia ao poder advindo do modo de produção já perdeu em grande medida a sua condição de possibilidade de alterar o status quo. O que resta para ela é apenas a reprodução cega da desigualdade, ou medidas paliativas que em nada atingem a estrutura social.  E aqui percebemos de forma fundamental a falácia do discurso da liberdade. De certa forma se é livre para se adequar ao modo de produção, mas nunca para o subverter. A partir do momento que a própria religião institucionalizada funciona como modo de perpetuação dessa dinâmica, percebemos claramente como que uma coisa se une a outra na contemporaneidade. 

Se observarmos os evangelhos percebemos que Jesus nos ensina a construir casas, nos ensina a plantar, nos ensina a dividir, mas em hora nenhuma ele propõe a construção de muros, pois a proposta cristã em seu núcleo mais íntimo nunca foi a proposta da segregação, da separação, do "nós contra eles", mas sempre foi a do acolhimento, da hospitalidade e do amor para com o próximo. Este é talvez o núcleo esquecido do cristianismo que, quando relembrado, poderá restaurar a sua importância em um mundo secularizado. 


segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Camarotização, Individualismo. De Lipovetsky de volta para Marx.





Para entendermos o tema da camarotização acho que seria muito legal pegar a ideia do Gilles Lipovetsky que ele trabalha no livro Felicidade paradoxal (2007) no qual ele define as três grandes fases do consumismo no ocidente.

A primeira fase seria aquela do início da revolução industrial em que apenas uma pequena parcela tinha acesso aos bens de consumo porque todos eram muito caros. É a época que segundo ele iria de 1870 a 1930, e se caracterizava pelo pequeno acesso da população aos bens do consumo.
A partir da década de 1930, Lipovetsky aponta que houve uma melhora na economia e pelo menos nos EUA o surgimento de um revitalizar econômico (que no brasil é o período de Getúlio e o ganho de renda e questões trabalhistas, se quiser contextualizar) que permitiu que mais pessoas pudessem consumir. Esse período iria dos anos 1930 a 1960 e caracterizaria a segunda fase do consumismo na visão de Lipovetsky. Nesse período há uma maior possibilidade de consumo por parte de uma camada maior da sociedade. Dessa época é que surgem os Wallmarts da vida e as grandes lojas de departamento para tentar dar conta das novas demandas das camadas mais baixas da população. O corolário desse processo é o conhecido “American way of life” típico das décadas de 1950 e 1960.

Após da década de 1970 com os movimentos contestatórios e a queda dos chamados metarrelatos (LYOTARD, 1984), o que se começa a perceber é que o consumismo começa a ganhar novas formas e novos produtos. Essa seria a terceira fase para Lipovetsky que culminaria naquilo que vivenciamos hoje de forma extremamente visível. Nesta fase, segundo ele, o que se consome é extremamente “tudo”, ou seja, o consumismo passou a dominar todas as esferas da vida, e isso se dá a partir do momento em que o que se almeja consumir não é mais apenas um produto, mas sim uma “experiência”. O que importa mais não é tanto a aquisição de uma mercadoria, mas muito mais a “experiência diferenciada” ao lidar com aquela mercadoria. E neste sentido, para além de querer uma mercadoria, o que se quer é em última instância a experiencia. Daí que hoje em dia estar em voga a aquisição de viagens, noites em spas, suítes personalizadas, voos em cabines executivas, etc.

É neste contexto que acho interessante colocar a camarotização. Ela só é possível com o avanço do capitalismo de forma que tudo vira objeto de consumo. Ao mesmo tempo em que se perde a noção de “comum”, uma vez que tudo passa a adquirir um preço em que apenas uma pequena parcela da população seria capaz de ter acesso. Na promessa da camarotização o que está em jogo é que se é possível comprar uma experiência diferenciada. Esta proposta só é possível dentro de um individualismo ferrenho em que vivemos na contemporaneidade. Neste sentido, uma das formas de sair disso é reinventar o conceito de algo “comum” (e aí a proposta do Pierre Dardot e do Christian Laval em seu livro com o título “Comum. Ensaio sobre a revolução no século XXI se torna extremamente interessante). Para esses autores é reinserindo no ocidente a noção de comunidade (quer seja de interesses, quer seja de afeições físicas, etc) que será possível sair da noção de que tudo pode ser objeto de consumo, sair da dinâmica individualista mortificadora do sujeito e restaurar a dimensão do “Bem público” como algo ao qual devemos zelar por ele.

O efeito da camarotização representa esse cenário de um individualismo crescente aliado à diferença estrutural que sempre houve no Brasil entre ricos e pobres. No entanto, percebemos a partir dos textos motivadores que isso não é uma questão meramente brasileira, mas mundial. À medida que o capitalismo avança (E isso é interessante uma vez que o capitalismo hoje não seria tanto de consumo, mas muito mais de especulação) a ideia de que será possível consumir de forma diferente atrai a elite na tentativa de se diferenciar das classes mais pobres. Neste sentido podemos encontrar vários fatores psicológicos envolvidos nessa tentativa de diferenciação por parte da elite. Se por um lado a camarotização aponta para uma questão social/estrutural no contexto brasileiro, ela também aponta para ausência de referências sólidas para o sujeito contemporâneo que acaba se definindo por sua posição social, ou acesso às coisas.

Aqui comprovamos o que Marx já colocava lá no seu “O capital” de que o fetichismo da mercadoria sempre traz consigo “artimanhas teológicas” de forma que se é enfeitiçado por elas constantemente, a sacralizando. Neste sentido evidenciamos que a era do capitalismo tardio (especulativo, do consumo desenfreado) é a época do fetichismo da mercadoria de forma extremamente sutil, mas poderosa.

Referencias:

Gilles lipovetsky - Felicidade paradoxal (2007)
Jean-Luc Lyotard - A condição pós-moderna (1984)
Pierre Dardot e Christian Laval - Comum. Ensaio sobre a revolução no século XXI (2017)
Slavoj Zizek - Em defesa das causas perdidas (2011)