quinta-feira, 9 de abril de 2020

2 Coríntios 5,21 - Um texto para a Páscoa






"Deus tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado, para que nele nos tornássemos justiça de Deus." (2 Cor 5,21)

Esse texto é extremamente interessante a meu ver e coloca aspectos muito bons da teologia paulina . A perícope que se inicia no versículo 11, se estendendo até o primeiro versículo do capítulo 6 é  um belíssimo texto que tem como ênfase a proposta do amor de Cristo que nos constrange, pois a princípio isso seria completamente "injusto". Um que morre por todos. 

No versículo específico que abre esse texto se evidencia um tema que é caro a Paulo que é a questão da especificidade e não-especificidade de Jesus. Especificidade na medida em que é em Jesus que os homens são reconciliados com Deus, não especificidade na medida em que se aplica a todos os homens. Algo interessante a se ressaltar é que não há nesse momento do cristianismo a noção de "pecado original" (conceito esse formulado só posteriormente por Agostinho). Jesus como "aquele que não conheceu o pecado" neste momento não tem em mente a noção do pecado original, como alguém que "nasceu puro" diferente dos outros homens e por isso teria feito tudo o que fez, pelo contrário, a ideia de que Jesus não conheceu o pecado tem a ver com o fato de que Jesus sempre teria feito o que é correto ao ponto de poder ele mesmo servido como redenção dos filhos de Deus.

Para além de uma "ontologia cristológica", o que o autor tem em mente aqui é muito mais atentar para o caráter do modo de vida de Jesus, que como alguém próximo a Deus foi capaz de viver sem pecado, de forma que o próprio Deus o exaltou, o ressuscitando dentre os mortos. Aqui talvez ainda esteja em jogo uma cristologia bastante "humana", por assim dizer. Jesus é um rabi de Israel que viveu de acordo com a vontade divina e por isso Deus o ressuscitou como testemunho da salvação vindoura. Na medida em que Jesus é aquele que assume a morte de cruz mesmo sem ter cometido nenhum pecado, ele o faz pecado por nós; ou seja, Jesus como aquele que aparece como mediador entre os homens pecadores e o próprio Deus. 

O que está em jogo nesse momento é afirmar que a ressurreição de Jesus coloca a sua morte sobre outra perspectiva. Na teologia paulina é a ressurreição a chave de leitura para a vida de Jesus e não o contrário. Por isso que a Páscoa é o cerne do cristianismo. É porque Jesus ressuscitou que é preciso que entendamos em que medida a sua vida fez a diferença para aqueles que o rodeiam. Por isso que Paulo pode dizer que "se Cristo não ressuscitou é vã a nossa fé." (I Cor 15,14). Para Paulo é a ressurreição que coloca um novo olhar sobre Jesus, o Rabi que andou pela Palestina no século I. É porque ele ressuscitou que uma nova pregação é possível, um novo olhar sobre o Antigo Testamento é possível. E é exatamente esse o movimento paulino que funda o cristianismo. O fenômeno da ressurreição nesse momento é crucial para que o cristianismo surja, e o próprio judaísmo surja enquanto proposta diferente do cristianismo. 

Durante muito tempo a ideia de que "Jesus se fez pecado por nós" foi entendida como Jesus como aquele que "expia" o pecado. Aquele que "oferece-se como sacrifício" dentro de uma lógica retributiva. Essa leitura é clássica em Santo Anselmo e a sua teoria da satisfação no qual um pecado da magnitude do pecado de Adão necessitaria de um sacrifício de igual magnitude, ou seja, um cordeiro santo que não pecou seria aquele que seria capaz de satisfazer o próprio Deus e para isso a justiça seria feita. No entanto, não parece ser esse o intento do autor da carta de 2 Coríntios, uma vez que a doutrina da Graça paulina vai exatamente contra uma doutrina retributiva do AT. Dentro da doutrina da Graça em que medida Jesus se torna "justiça de Deus"? 

A resposta para essa questão é dada no início da perícope em que Paulo afirma que o amor de Cristo nos constrange (2Cor 5,14), ou seja, a justiça não tem a ver com uma punição que Jesus estaria encarnando, mas um ato de amor, no qual ninguém além de Deus é o responsável. Por isso que para Paulo na morte de Jesus, Deus está reconciliando consigo mesmo os homens não levando em conta os pecados dos homens. Esse ponto é crucial. A morte de Jesus e a sua ressurreição não está envolta em uma dinâmica sacrificial em que algo é imolado para que o preço seja pago, mas está fundada simplesmente no amor de Deus que em Cristo nos reconciliou. A lógica sacrificial não opera aqui. Jesus não é alguém que está pagando um preço por nós, mas está agindo com o maior amor possível que reflete o próprio Deus, e que por isso nos constrange, por isso faz tudo novo. Por isso que para Paulo não podemos olhar mais para Jesus "segundo a carne" (v 15), mas Nele todas as coisas são "nova criação" (v.17). Deus tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado (v.21) para que nós fôssemos justiça de Deus em amor. E tal justiça é executada por nós enquanto cooperadores de Deus. Cooperar com Deus, atuar junto para que todos os homens sejam capazes de perceber o amor de Cristo que nos constrange. 

O que Paulo entende aqui é que em Jesus todas as coisas se fazem novas não por um ato retributivo, mas pelo próprio amor que reconfigura todas as coisas. A justiça de Deus não é punitivista, mas sim amorosa. O próprio evento Cristo atesta isso. Se olharmos "segundo a carne" pensaremos segundo a lógica retributiva do AT, mas se olharmos pelo olhar da reconciliação que Deus está promovendo todas as coisas se fazem novas e podemos exercer a justiça de Deus reconciliando juntamente com ele todos os homens. Isso para Paulo é crucial, uma vez que sabemos que para Paulo a vinda de Jesus era iminente. Tanto que o apelo de Paulo  na perícope faz um apelo "reconciliem-se com Deus". (v. 20), e logo em seguida outro apelo "insistimos com vocês para não receberem em vão a graça de Deus" (2Cor 6,1). Dessa forma é chegado o tempo favorável da salvação. (alusão aqui ao texto de Isaías 49,8)




quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Publicação do livro "Escritos sobre Religião. Entre a Teologia e a Filosofia"





Com muita alegria que divulgo a publicação do meu livro em que se encontram uma seleção de 100 textos publicados ao longo de 10 anos nesse blog. Os textos lá publicados versam sobre a temática da Filosofia, Teologia e Psicanálise e o diálogo dessas áreas com a sociedade contemporânea.

Caso tenham interesse em adquirir o livro, segue o link abaixo para o site da Editora.

https://aeditora.com.br/produto/escritos-sobre-religiao-entre-a-teologia-e-filosofia/

domingo, 14 de julho de 2019

Venezuela - Estivemos lá






Recentemente eu e Priscila estivemos visitando o norte do país, a cidade de Boa Vista em Roraima e aproveitamos para conhecer dois novos países da América Latina. Guiana e Venezuela.
A experiência foi belíssima e realmente o Brasil possui muitos lugares impressionantes. Sem dúvida a parte mais interessante da viagem foi a nossa presença na Venezuela.

Qualquer pessoa minimamente informada sabe que a situação venezuelana não está muito boa, a crise se aferra por lá há algum tempo e tem havido um êxodo muito grande de venezuelanos por meio das fronteiras com a Colômbia e com o Brasil. Essa situação tem trazido muito sofrimento para diversos venezuelanos e isso gera um monte de informações desconexas que são passadas pela mídia (que todo mundo sabe possui interesses específicos, visam gerar lucro para grupos específicos, etc.).

Uma preocupação que tive quando estava na Venezuela foi conversar com os diversos trabalhadores com quem encontrava durante a estadia. Conversamos com os garçons, atendentes do hotel, motoristas, e qualquer pessoa que estivesse disposta a dialogar sobre a situação do país para tentarmos entender como que, in loco, as pessoas que estavam submetidas à situação viam o problema de seu país. Acreditamos que isso possui uma dimensão muito mais ampla que qualquer "notícia" dada na grande mídia.

A primeira noção que ficou muito clara para nós e foi dito pelo garçom Ariel do hotel em que trabalhávamos é que até mesmo a classe trabalhadora sabe que o que há na Venezuela não tem absolutamente nada a ver com socialismo ou comunismo. Nas palavras do próprio Ariel:

"- Ueh, mas o socialismo não seria dividir as riquezas com todos? Aqui não há socialismo!" 

O que Ariel na sua simplicidade é capaz de colocar evidencia o núcleo duro da proposta comunista que é a igualdade entre todos e o direito a todos a todas as coisas. Para além da visão tacanha das épocas das redes sociais, o socialismo não existe na Venezuela, isso o próprio Ariel nos disse, demonstrando uma leitura muito atenta da situação.

Da mesma forma o motorista da Van que nos levou pelo passeio à Gran Sabana demonstrou um excelente conhecimento da situação do seu país e me deu uma aula sobre o período de Hugo Chávez e o movimento de transição para Maduro. O motorista sabia exatamente onde se encontrava o problema, reconhecia o avanço que Chávez trouxe à Venezuela, mas já era capaz de dizer que o grande problema do Chavismo foi o problema de qualquer governo dentro do capitalismo, ou seja, a corrupção.

Não era um problema do "sistema de governo", mas sim da própria dinâmica de qualquer governo que não consegue levar à cabo sua proposta que o levou ao poder, mas sucumbe facilmente às dinâmicas do capital. A corrupção faz parte do sistema capitalista de maneira estrutural. Não existe capitalismo sem corrupção, de forma que a agenda neoliberal com seu discurso moralizante toda hora se mostra permeada e sustentada pela corrupção.

Infelizmente em nossa época de pós-verdade pouquíssimas pessoas tem uma preocupação séria em debater os conceitos e preferem ficar presos à definições rasas, propostas de redes sociais que demonizam facilmente qualquer coisa ao invés de procurar uma literatura especializada para tratar das questões mais sérias. Às vezes são pessoas muito bem intencionadas, mas que por conta de diversos fatores (que não podemos excluir a má-fé deles) preferem utilizar de definições rasas e com isso corroboram a demonização de questões estruturais da república como "justiça social", "distribuição de renda", etc. Quando se demonizam questões que deveriam ser defendidas por todos o que se percebe é a perda da noção de sociedade e o avanço do individualismo como tônica para pensar as relações contemporâneas.

O capitalismo contemporâneo é individualista; por isso que todo tipo de pensamento que tem como foco o social é logo acusado de "socialismo", "comunismo" como forma de demonizar um pensamento social e com isso manter a estrutura segregacionista do próprio capital. O mais curioso é quando esse discurso vem dos setores cristãos, pois o cerne da própria Bíblia sempre foi social, sempre foi pensando na noção de povo, quer se leia o Antigo Testamento, quer se leia o Novo Testamento. São inúmeras as referências bíblicas possíveis para mostrar que a Bíblia é um livro que preza pela justiça social, condena o acúmulo de riqueza, preza pela solidariedade, etc. Esse tipo de "esquecimento" do texto é muito sintomático de uma época em que o individualismo se torna a tônica. Esquecer o caráter social do texto bíblico é não ter entendido uma linha do que o texto se propõe.


quinta-feira, 4 de julho de 2019

Resposta teológica à uma questão difícil





"Uma pergunta ao teólogo: qual a sua visão teológica sobre o suicídio?"

Esta é uma pergunta extremamente sutil e dentro do meio cristão fonte de inúmeras controversas e várias vezes fonte de inúmeras culpas por parte daqueles que ficam. Não sem motivo Camus afirmava que a questão do suicídio era o maior enigma da filosofia, que essa questão deveria ser a questão fundamental da filosofia, pois ali estaria toda a questão de saber se a vida tem ou não sentido. 
Durante muito tempo (e até hoje em grande parte da população cristã) a questão do suicídio sempre foi encarada como sendo uma espécie de "pecado capital", ou seja, um "pecado sem perdão" em que aquele que comete tal ato, por não ter como pedir perdão por ele, estaria de forma quase que automática, condenado à perdição eterna. No meio católico muito se pensa na ideia de um purgatório que seria um pouco mais "difícil" para pessoas que teriam cometido tal ato. Embora essas visões façam parte do senso comum e sejam bastante divulgadas, a meu ver elas fazem muito pouco sentido se considerarmos a questão do ponto de vista teológico. 

Sabemos que a visão que temos de Deus, a forma como o compreendemos altera drasticamente a forma como lidamos com as questões do mundo à nossa volta. Se compreendemos Deus como uma espécie de "dono do armazém" que contabiliza nossos erros e acertos para nos dar uma recompensa posterior acabamos entrando em uma espécie de dinâmica contabilizadora quantitativa e qualitativamente sobre os nossos atos, e isso sem sombra de dúvida nos leva à uma espécie de "escalonamento teológico dos pecados", de forma que pensaríamos em "pecados maiores" e "pecados menores", de forma que evitaríamos os pecados maiores e veríamos os pecados menores como "inevitáveis". A meu ver é esse escalonamentos de pecados baseados nessa visão de Deus que gera a grande hipocrisia cristã de condenar de maneira veemente alguns pecados e simplesmente não se importar com outros. 

Para mim a questão do suicídio se liga diretamente à questão do livre-arbítrio, ou seja, ela no final das contas acaba sendo um ato livre de um sujeito que por algum motivo acredita que aquela é a melhor saída para a situação vivenciada. Nunca teremos como saber se seria um ato de coragem ou um ato de covardia do sujeito, pois apenas o sujeito ali, no momento da decisão, é capaz de dizer do que se trata. Dessa forma é impossível generalizar (como geralmente se faz) sobre a questão. Cada caso é um caso, cada situação uma situação.
Sendo fruto do livre-arbítrio do sujeito se liga diretamente à liberdade concedida por Deus e por isso tal ato deve ser entendido como um ato de escolha do sujeito em determinada situação. Dar cabo da sua vida em determinado momento é sempre uma atitude última, uma tentativa de resposta última à questão do sentido da vida para si.

Dentro do cenário cristão a pergunta sobre a salvação do sujeito sempre aparece. Para mim a graça de Deus é radical e a salvação independe das nossas ações, das nossas atitudes, das nossas intenções, pois a salvação é fruto da graça que é fruto do amor de Deus que a todos alcança. A pessoa que comete suicídio também é alcançada pela graça radical de Deus e dessa forma é salva por Ele, pois Deus não deseja que nenhum de seus filhos se perca.
Pelo que pontuei acima já deve ter ficado claro que para mim o suicídio não é um pecado, não é um "ato contra Deus", não é algo que Deus não perdoa "porque o sujeito não tem como pedir perdão"; muito pelo contrário, para mim, o Deus em que acredito é um Deus que sempre é amor, e por isso sempre quer que seus filhos estejam juntos de si. Se entendemos a questão da salvação como fruto da graça de Deus, e exclusivamente da graça de Deus que é amor, penso que isso pode nos servir de consolo no momento da precariedade que a morte revela.

O momento é de extrema dor, o consolo parece impossível, mas aquilo que cremos, o "como" cremos pode nos ajudar a passar pela fase difícil de maneira um pouco mais inteiros.

Triste momento esse que vivemos nesses dias em que um querido amigo se foi. Compartilhamos a dor daqueles que são mais próximos e sofremos muito com eles. Nessas horas não tem muito o que podemos dizer para consolar os que ficam. Apenas podemos oferecer o nosso carinho, o nosso cuidado, as nossas lágrimas, compartilhar a dor, se fazer presente para o que for necessário, mas nunca haverá palavras no mundo capaz de dizer o que sentimos nessas horas. 

Para os que são mais próximos a dor dilacerante é muito maior, a ausência de norte é muito maior, a busca pelo sentido de tudo se mostra muito mais veemente e a dor se mostra várias vezes insuportável. Nessas horas não há manuais a seguir, não há regras a serem cumpridas, há apenas indívíduos que precisam lidar com a perda e reorganizar a vida sabendo que a partir de agora as configurações serão outras, os desafios serão outros. Acredito que se compartilharmos a dor o fardo será mais fácil de ser carregado e a nós enquanto amigos não há outro lugar que queremos estar senão ao lado de vocês. 


quinta-feira, 16 de maio de 2019

Ética contemporânea - Um relato de aula








Recentemente, em uma das minhas aulas estávamos falando sobre ética contemporânea. A princípio propus um recorte mais histórico para entendermos uma espécie de "quando" poderíamos propor uma espécie de "virada ética" no ocidente e resolvemos tomar como marco o pós-guerra e o declínio dos discursos iluministas/positivistas e os discursos religiosos institucionais, o que daria origem, em grande medida, à ascensão de um existencialismo de cunho mais ateu. (Lembrando que o existencialismo já existia desde o século 19 com Kierkegaard, mas ainda muito vinculado à religião cristã). A partir desse marco precisávamos também analisar as mudanças sociais advindas do mundo pós-guerra e o impacto do início da globalização na vida desse sujeito ao mesmo tempo que precisávamos entender o avanço do capitalismo no pós-guerra, o que com certeza geraria impactos cruciais na vida dos sujeitos. 

No meio desse debate um aluno faz uma pergunta que a princípio não tem muita coisa a ver com a discussão, mas ele pergunta: "professor, qual a diferença entre "esquerda" e "direita"?" A pergunta que aparentemente soava sem sentido foi um excelente complemento para o nosso debate. Na hora me lembrei do texto de Hannah Arendt "As origens do totalitarismo" em que ela faz uma excelente análise de como que um movimento totalitário pode ser apropriado tanto por governos ditos de esquerda e governos ditos de direita. A partir desse texto comecei respondendo que a noção de "direita" e "esquerda" tem origem na França em que as alas mais conservadores ficavam à direita, enquanto a ala mais progressista ficava à esquerda, o que deu origem ao termo, mas que no entanto, hoje ninguém se referia mais a essa diferenciação quando usavam o termo.

Em seguida, seguir de perto a proposta de Deleuze que sempre afirmou que não há governo de esquerda, pois o máximo que pode haver são governos favoráveis a pautas da esquerda, mas nunca um governo de esquerda, pois para isso seria preciso que toda uma estrutura de poder fosse desfeita, o que até hoje não aconteceu. A partir disso propus uma categorização primeira de afirmar que a proposta da direita envolveria um aspecto mais conservador enquanto a esquerda propunha um aspecto mais progressista. O aluno então propõe uma pergunta pertinentíssima que coloca em xeque essa primeira categorização que é o fato de alas ditas de direita são extremamente a favor de um liberalismo econômico, liberdade do indivíduo, etc., enquanto alas mais à esquerda não raras vezes se mostravam mais a favor de um Estado mais forte, etc. Esse novo questionamento nos levou a uma segunda categorização, que talvez seja até mais interessante para pensar tal dinâmica dentro do capitalismo tardio.

Propus que para termos uma definição mais interessante poderíamos falar que dado o avanço do capitalismo no pós-guerra ter sido de maneira global, o mercado se transformou em grande medida em um grande déspota que sobrepõe às categorizações antes vigentes entre "esquerda" e "direita", e por isso seria interessante pensar uma outra forma de pensar essa diferenciação e até mesmo checar se tal diferenciação não teria se tornado anacrônica do ponto de vista da categorização. Propus então a diferenciação de que enquanto a direita propõe uma ênfase sobre o indivíduo, o elegendo como critério máximo na escala de valores de forma que tudo que contrarie o indivíduo deve ser visto como forma de limitação da sua liberdade (um neoliberalismo na sua forma mais hard), a esquerda propõe que o indivíduo não é esse critério máximo, mas sim a sociedade em seu conjunto que deve ser eleita como tal critério, de forma que é por isso que enquanto a direita defende um estado mínimo (pois o Estado nessa visão seria um limitador da liberdade do sujeito), a esquerda propõe um Estado mais amplo de forma a garantir um acesso a um número maior de pessoas à coisas que o indivíduo não consegue por si só dada a uma série de fatores. 

Como esses fatores são dados pelo sistema econômico, uma vez que eles determinam em grande medida a forma como o sujeito vai se relacionar no mundo, é interessante percebermos que acima dessa divisão entre esquerda e direita há um mercado global que transcende em grande medida tais divisões. Neste sentido, em época de capitalismo global podemos pensar em outra forma de categorização de direita e esquerda, de forma que talvez aqui aponte para algum anacronismo nessa categorização. Direita e esquerda teriam a ver com o quanto essas visões estariam dispostas a ceder ao mercado. A direita disposta a ceder muito (daí a proposta de um estado mínimo e o indivíduo eleito a critério último de valores), enquanto a esquerda disposta a ceder menos (daí a noção de um Estado mais forte capaz de garantir à sociedade, e não apenas ao indivíduo possibilidades, em suma, a sociedade eleita como critério último).

No entanto, algo que percebemos aqui é que nem a direita (por motivos óbvios) e nem a esquerda (por motivos não tão óbvios) estão dispostos a romper com a lógica do mercado, mas no máximo proporem uma espécie de "capitalismo humanizado" (outro anacronismo) capaz de atender as demandas sociais em segundo plano enquanto primam pelo lucro de um número cada vez menor de pessoas. A meu ver uma proposta de uma esquerda "true" deveria ser a proposta de um novo sistema econômico capaz de dar contas dos disparates criados pelo capitalismo. A primeira aposta da esquerda em um socialismo/comunismo de Estado não deu certo, pois muito rapidamente a ideia se perdeu em nome de uma maximização estatal que acabou funcionando como "novo detentor dos meios de produção" mantendo as mazelas que visava combater. No entanto, não é pelo fato da primeira tentativa ter dado errado que isso signifique a esquerda deva abrir mão de propor novos modelos de funcionamento da economia em que a sociedade e a humanização do sujeito sejam as prioridades. 

Um aluno então comenta algo que encerrou a aula com chave de ouro, pois tínhamos estudado antes o texto "homo sacer" do Giorgio Agamben em que o filósofo define o homo sacer e explora o conceito para o nosso tempo. A fala do aluno foi: "então, professor, vc está dizendo que no atual cenário mundial, ou você está no mercado, ou você é um homo sacer?" Eu respondo: "É exatamente isso. Você entendeu exatamente o ponto, e a meu ver, um sistema econômico que condena mais da metade da população mundial à condição de homo sacer não pode ser algo que podemos ver como algo que "funciona". É preciso de alguma forma pensar e repensar modelos econômicos capazes de re-humanizar o sujeito e ter neste e na sua vida em conjunto o critério último para uma ética e não o mercado. É a partir desse contexto que podemos pensar uma ética contemporânea que tentaremos iniciar na próxima aula. 



quarta-feira, 17 de abril de 2019

Resposta à uma questão sobre o movimento e o repouso em Aristóteles






Como Aristóteles resolve o problema entre movimento e o repouso no ser?

A questão que Aristóteles se propõe a resolver é antiga e remonta desde Heráclito com o problema do movimento e repouso.
Aristóteles migra esse problema para tentar explicar o ser. “O ser está em constante mudança,” era o que afirmava Heráclito. Mas para que algo mude é preciso que haja alguma coisa no ser que permaneça imóvel.
Aristóteles  para resolver o problema distingue no ser o que é ato, e o que é potência. Por ato, Aristóteles entende como aquilo que já existe no ser desde o princípio, e por potência, ele entende como aquilo que o ser tem possibilidade de ser.
Seguindo essa linha, Aristóteles afirma que o primeiro motor que move todas as coisas é um ser incorruptível e o é assim em essência. Pois é o primeiro que move os outros e se quisermos um movimento perfeito é necessário que o primeiro motor seja perfeito pois dele partirá os outros movimentos.
O problema de como princípios iguais geram seres corruptíveis e incorruptíveis é respondido a partir das idéias de substância e acidente. Por substancia, Aristóteles entende aquilo que é essencial do ser, e por acidente aquilo que é atributo circunstancial e não-essencial do ser.
Juntamente com a ideia de ato e potência Aristóteles afirma que o ser se diz de várias formas, e portanto , o fato de ter os seres os mesmos princípios não garante que o ser possuirá as mesmas características; isso porque no percurso podem haver “acidentes” que conduzirá o ser por outro caminho. A noção de potência  também é levado em conta pelo fato do ser ter a capacidade de vir-a-ser várias coisas no decorrer do tempo.
A causa disso, segundo Aristóteles está no fato do ser poder ser dito de várias formas. Essa foi a forma que Aristóteles encontrou para resolver o problema do movimento e do repouso.
Existe algo no ser que é imóvel, e outras coisas neste mesmo ser que são móveis, o que dá ao ser essa dualidade e resolve em si o problema do movimento e do repouso.
O fato de haver pessoas corruptíveis e incorruptíveis não está portanto ligado à parte imóvel do ser, ou àquilo que ele é em essência, mas sim ligado à sua potência, e aos acidentes que determinam como esse ser agirá. Assim o papel do primeiro motor é simplesmente mover o ser, mas não em determinar se ele será corruptível ou incorruptível.
Os acidentes pertencem ao ser, mas não são necessários para a natureza dele. Os acidentes ajudam a determinar como que o ser irá agir em determinada situação, definindo-o assim como corruptível ou incorruptível.


Esse texto foi escrito em 2005 enquanto cursava o segundo período de Filosofia na UFMG.



segunda-feira, 25 de março de 2019

Paradoxos contemporâneos



O copo com autofluxo de Robert Boyle preenche a si próprio neste diagrama





Qualquer um minimamente inteirado do modo de funcionamento do capitalismo tardio sabe que enquanto a democracia favorecia os interesses do capital ela precisava ser mantida, pois o próprio capitalismo acabava por perceber que a suposta responsabilidade do sujeito pela vida política o torna também consumidor de uma forma de vida um pouco mais complexa. Por complexidade aqui queremos dizer tanto do ponto de vista teórico, quanto do ponto de vista prático.

No entanto, assim que a democracia deixou de ser hegemônica (ou seja, dominada por uma elite extremamente seleta) dada as diversas vozes encontrando eco na democracia, por exemplo, o alcance do negros no mercado de trabalho, a questão feminina se colocando contra o domínio do patriarcado, uma classe mais pobre começando a conhecer e reivindicar seus direitos, a democracia precisou ser reconfigurada para que os interesses do capital continuassem sendo alcançados. Essa chave de leitura nos permite entender em grande medida o colapso democrático no mundo do século 21.

A tônica da reconfiguração da democracia se vê exatamente no momento em que a possibilidade de representatividade aumenta como fruto dos embates pós 1970. Para que o capitalismo se mantenha não é mais necessário que os sem voz permaneçam sem voz, mas é preciso que a sua própria voz seja transformada em produto pelo próprio modo de produção capitalista. Enquanto não se tem voz, não é possível consumir de maneira adequada, pois falta dignidade a esse comprador no mercado global, de forma que é necessário que essa voz seja ouvida, pois cada pessoa é sempre um consumidor em potencial. Se os sem voz continuam sem voz, se a democracia caminha na direção oposta, ela precisa ser reconfigurada, ou seja, ser realinhada aos interesses do capital. 

Aqui há um curioso paradoxo envolvido. As democracias sempre foram exaltadas como um modo de governo em que as minorias podiam se expressar de maneira um pouco mais enfática e ter um mínimo de representatividade nas esferas do poder. No entanto, o processo democrático moderno sempre esteve sob a tutela do modo de produção capitalista (assim como qualquer regime de governo no capitalismo) que já se mostrou funcionar sob a dinâmica do acúmulo de riqueza por uma parte cada vez menor da população. (Atualmente cerca de 2% da população domina cerca de 98% das riquezas produzidas) Dessa forma quanto mais representatividade se adquire, mais o capitalismo tardio transforma tal luta pela representatividade em objeto a ser consumido. Em última instância podemos dizer que o fortalecimento das democracias funcionam como suporte para o capitalismo enquanto os agentes envolvidos na democracia permaneçam consumidores. Claro que aqui não estamos dizendo que as lutas por representatividade não sejam importantes, muito pelo contrário. Temos a plena consciência que tais lutas são de um ganho enorme para diversas parcelas da sociedade; o que ressaltamos aqui é que no modo de produção do capitalismo tardio até mesmo as reivindicações são transformadas em produto.

É aqui que percebemos em que medida as diversas lutas das minorias se tornam abocanhadas pelo capitalismo de maneira nada velada. As pautas feministas, negras, homoafetivas se tornam produtos a serem consumidos exatamente por essas minorias e também pelos próprios apoiadores das causas em questão, de forma que a crítica se torna um meio para ascender aos valores ditados pelo próprio capitalismo que faz com que a própria luta pela representatividade reforce os ideais advindos do capitalismo. Quando alguma minoria tem como maior interesse se adequar aos valores do capitalismo percebemos que a ideologia capitalista já está sedimentada de forma quase que acabada.

Tais valores penetram na vida do sujeito de maneira tão sutil que simplesmente o sujeito se sente empoderado pela noção de poder dada pelo próprio sistema econômico que o colocou como minoria. Isso é um paradoxo que faz com que as lutas, por mais importantes que sejam, se tornem inócuas do ponto de vista sistêmico. É preciso sim a luta das minorias, no entanto penso que elas não devam ser um fim em si mesmo, mas ser um degrau para que os valores do capitalismo sejam substituídos por outros valores em que o humano seja o mais importante e não o capital.

Dessa forma conseguimos traçar uma dinâmica extremamente sutil do capitalismo tardio. As lutas pelas representatividades típicas do nosso tempo, por mais importantes que sejam são transformadas como fim em sim mesmo e dessa forma perpetuam o sistema que permitem que elas ocorram, uma vez que as lutas são pautadas pelos valores dados pelo próprio sistema que visa combater. Para além das lutas pelas representatividades diversas, penso ser necessário que tais pautas não sejam um fim em si mesmas, mas levem o sujeito a ascender aos lugares de poder ditados pelo capitalismo como forma de minar por dentro o próprio sistema. A luta das minorias é uma luta hercúlea que facilmente acaba sendo desviada em nome dos valores do sistema econômico. É preciso, no entanto, não perder o foco da luta para que ao invés de meras performances inócuas tenhamos de fato uma mudança no status quo.