terça-feira, 27 de novembro de 2018

José e Maria indo para Belém.







O individualismo político como grande paradoxo do mundo globalizado nos mostra que a proposta de uma aumento da liberdade no domínio do capitalismo não passa de uma ideia abstrata e falaciosa. Quanto mais se advoga liberdade, mais se vê o recuo do sujeito contemporâneo alheio a qualquer forma de empatia para com o próximo.  Este cenário se tipifica de maneira visível no excesso de protecionismo econômico e no excesso de muros que cada vez mais cercam os territórios como forma de proteção contra o próximo visto como ameaça. É neste contexto que se coloca a questão dos imigrantes na Europa, a questão mexicana nos Estados Unidos, os Venezuelanos no Brasil e vários outros exemplos mundo afora. 

Talvez aqui esteja o cerne da proposta de Jesus tipificada nos evangelhos, uma liberdade que não passa pelo individualismo contemporâneo, mas uma liberdade que tem na comunidade a sua única condição de possibilidade. É talvez por isso que podemos dizer sem sombra de dúvida que a proposta comunitária de Jesus e dos discípulos no início do cristianismo vai na contramão da proposta do capitalismo tardio do individualismo exacerbado. Trava-se uma luta entre uma visão comunitária do humano e uma visão individualista em que nada além do sujeito importa. O que fica claro para nós é que esta dinâmica são totalmente relacionadas.  De um lado a aposta em uma possibilidade da vida comunitária para além da lógica do capital, do outro lado o individualismo como resposta última que esvazia o sujeito de todo vínculo para além de si. Claramente uma se coloca como grande antítese da outra, em que a primeira é esvaziada em seu núcleo mais íntimo e o que sobra seria apenas a sua face performática tipificada nas novas agremiações, pseudo-pautas, etc.  

Neste contexto podemos perceber porque hoje os novos espiritualismos chegam com força no nosso meio, pois eles apenas reforçam o individualismo numa busca incessante de reforçamento do eu e um esquecimento do outro.  Da mesma forma percebemos porque o discurso neopentecostal encontra grande repercussão social, pois ele apenas reflete de maneira material aquilo que os espiritualismos contemporâneos manifestam do ponto de vista majoritariamente performático.  A lógica da performance é a lógica do capitalismo tardio, e por isso que é fácil de perceber como que as duas facetas que mais crescem na religião contemporânea são facetas também performáticas, afinal essa  é a lógica defendida pelo capitalismo tardio da produção incessante. O que se produz incessantemente neste contexto é a busca de si, a visão econômica, quantitativa, performática do sujeito em que ele é avaliado pela própria dinâmica da produção incessante de si, da busca incessante do "mistério", do "novo", etc. 

Não dizemos mais que a religião é o "ópio do povo" ou "o suspiro da criatura oprimida" como Marx gostava de falar, mas dizemos que hoje a religião (pelo menos a institucionalizada) [sobre esta diferenciação crucial, leia aqui] é o sintoma do sujeito desbussolado dominado pelo capitalismo tardio. Restaurar o núcleo duro da religião talvez seja a tarefa mais árdua para os dias atuais, pois uma religião que se alia ao poder advindo do modo de produção já perdeu em grande medida a sua condição de possibilidade de alterar o status quo. O que resta para ela é apenas a reprodução cega da desigualdade, ou medidas paliativas que em nada atingem a estrutura social.  E aqui percebemos de forma fundamental a falácia do discurso da liberdade. De certa forma se é livre para se adequar ao modo de produção, mas nunca para o subverter. A partir do momento que a própria religião institucionalizada funciona como modo de perpetuação dessa dinâmica, percebemos claramente como que uma coisa se une a outra na contemporaneidade. 

Se observarmos os evangelhos percebemos que Jesus nos ensina a construir casas, nos ensina a plantar, nos ensina a dividir, mas em hora nenhuma ele propõe a construção de muros, pois a proposta cristã em seu núcleo mais íntimo nunca foi a proposta da segregação, da separação, do "nós contra eles", mas sempre foi a do acolhimento, da hospitalidade e do amor para com o próximo. Este é talvez o núcleo esquecido do cristianismo que, quando relembrado, poderá restaurar a sua importância em um mundo secularizado. 


segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Camarotização, Individualismo. De Lipovetsky de volta para Marx.





Para entendermos o tema da camarotização acho que seria muito legal pegar a ideia do Gilles Lipovetsky que ele trabalha no livro Felicidade paradoxal (2007) no qual ele define as três grandes fases do consumismo no ocidente.

A primeira fase seria aquela do início da revolução industrial em que apenas uma pequena parcela tinha acesso aos bens de consumo porque todos eram muito caros. É a época que segundo ele iria de 1870 a 1930, e se caracterizava pelo pequeno acesso da população aos bens do consumo.
A partir da década de 1930, Lipovetsky aponta que houve uma melhora na economia e pelo menos nos EUA o surgimento de um revitalizar econômico (que no brasil é o período de Getúlio e o ganho de renda e questões trabalhistas, se quiser contextualizar) que permitiu que mais pessoas pudessem consumir. Esse período iria dos anos 1930 a 1960 e caracterizaria a segunda fase do consumismo na visão de Lipovetsky. Nesse período há uma maior possibilidade de consumo por parte de uma camada maior da sociedade. Dessa época é que surgem os Wallmarts da vida e as grandes lojas de departamento para tentar dar conta das novas demandas das camadas mais baixas da população. O corolário desse processo é o conhecido “American way of life” típico das décadas de 1950 e 1960.

Após da década de 1970 com os movimentos contestatórios e a queda dos chamados metarrelatos (LYOTARD, 1984), o que se começa a perceber é que o consumismo começa a ganhar novas formas e novos produtos. Essa seria a terceira fase para Lipovetsky que culminaria naquilo que vivenciamos hoje de forma extremamente visível. Nesta fase, segundo ele, o que se consome é extremamente “tudo”, ou seja, o consumismo passou a dominar todas as esferas da vida, e isso se dá a partir do momento em que o que se almeja consumir não é mais apenas um produto, mas sim uma “experiência”. O que importa mais não é tanto a aquisição de uma mercadoria, mas muito mais a “experiência diferenciada” ao lidar com aquela mercadoria. E neste sentido, para além de querer uma mercadoria, o que se quer é em última instância a experiencia. Daí que hoje em dia estar em voga a aquisição de viagens, noites em spas, suítes personalizadas, voos em cabines executivas, etc.

É neste contexto que acho interessante colocar a camarotização. Ela só é possível com o avanço do capitalismo de forma que tudo vira objeto de consumo. Ao mesmo tempo em que se perde a noção de “comum”, uma vez que tudo passa a adquirir um preço em que apenas uma pequena parcela da população seria capaz de ter acesso. Na promessa da camarotização o que está em jogo é que se é possível comprar uma experiência diferenciada. Esta proposta só é possível dentro de um individualismo ferrenho em que vivemos na contemporaneidade. Neste sentido, uma das formas de sair disso é reinventar o conceito de algo “comum” (e aí a proposta do Pierre Dardot e do Christian Laval em seu livro com o título “Comum. Ensaio sobre a revolução no século XXI se torna extremamente interessante). Para esses autores é reinserindo no ocidente a noção de comunidade (quer seja de interesses, quer seja de afeições físicas, etc) que será possível sair da noção de que tudo pode ser objeto de consumo, sair da dinâmica individualista mortificadora do sujeito e restaurar a dimensão do “Bem público” como algo ao qual devemos zelar por ele.

O efeito da camarotização representa esse cenário de um individualismo crescente aliado à diferença estrutural que sempre houve no Brasil entre ricos e pobres. No entanto, percebemos a partir dos textos motivadores que isso não é uma questão meramente brasileira, mas mundial. À medida que o capitalismo avança (E isso é interessante uma vez que o capitalismo hoje não seria tanto de consumo, mas muito mais de especulação) a ideia de que será possível consumir de forma diferente atrai a elite na tentativa de se diferenciar das classes mais pobres. Neste sentido podemos encontrar vários fatores psicológicos envolvidos nessa tentativa de diferenciação por parte da elite. Se por um lado a camarotização aponta para uma questão social/estrutural no contexto brasileiro, ela também aponta para ausência de referências sólidas para o sujeito contemporâneo que acaba se definindo por sua posição social, ou acesso às coisas.

Aqui comprovamos o que Marx já colocava lá no seu “O capital” de que o fetichismo da mercadoria sempre traz consigo “artimanhas teológicas” de forma que se é enfeitiçado por elas constantemente, a sacralizando. Neste sentido evidenciamos que a era do capitalismo tardio (especulativo, do consumo desenfreado) é a época do fetichismo da mercadoria de forma extremamente sutil, mas poderosa.

Referencias:

Gilles lipovetsky - Felicidade paradoxal (2007)
Jean-Luc Lyotard - A condição pós-moderna (1984)
Pierre Dardot e Christian Laval - Comum. Ensaio sobre a revolução no século XXI (2017)
Slavoj Zizek - Em defesa das causas perdidas (2011)




quinta-feira, 1 de novembro de 2018

[...] mas, sobre a tua palavra, lançarei a rede." Lucas 5:5





"Mestre, havendo trabalhado toda a noite, nada apanhamos; mas, sobre a tua palavra, lançarei a rede." Lucas 5:5

Uma das passagens bíblicas que gosto muito é esta passagem de Lucas em que depois de pescarem à noite toda sem conseguirem nada, os pescadores vêem entrar no barco um rabi que estava ensinando próximo ao mar. Jesus então pede para que os pescadores afastem os barcos para o mar para que as pessoas ouçam a palavra que ele proferirá. As pessoas ficaram na praia e Jesus ensinava a elas do barco.
Depois de ensinar, Jesus vira para Simão e diz para ele ir para o alto mar e lançar novamente as redes, e é nesse contexto que aparece o versículo que inicia esse texto. Simão um pouco já desanimado depois de trabalhar a noite toda sem pescar nada expressa a sua confiança na palavra do rabi. 

Esse versículo sempre me faz pensar o quanto é necessário ter em nossas vidas pessoas que se apresentam para nós e nos dizem uma palavra capaz de modificar toda uma prática que construímos ao longo da vida. Estarmos prontos para ouvir essa palavra pode trazer surpresas grandes para nós, como por exemplo trouxe para aqueles pescadores que, depois de lançarem as redes seguindo a instrução do rabi que entrou no barco, tiveram uma grande surpresa com a pescaria. Um dado que sempre me chama a atenção nesse episódio é que Jesus era apenas mais um rabi de Israel, ali nem mesmo Simão era um dos discípulos de Jesus, mas se tornará "pescador de homens" após esse episódio narrado. 

"Sobre a tua palavra lançarei a rede" aponta para mim a confiança demonstrada no outro que se mostra como alguém digno de tal confiança. Não lançamos as redes sobre "qualquer palavra", mas apenas sobre as palavras de alguns que julgamos querer o melhor para nós, sobre as palavras daqueles que nos conhecem, etc. Estar pronto para "lançar as redes" mesmo quando toda a situação parece desanimadora é um desafio diário para nós. Tem pessoas que possuem grande dificuldade em se abrir para o novo, se abrir para outras perspectivas, e isso se dá por diversos motivos, no entanto, apesar de difícil, tal mudança pode ser extremamente recompensadora, assim como foi para aqueles pescadores. 

De alguma forma a proposta de Jesus sugere uma repetição, uma espécie de "mais do mesmo", mas se pensarmos bem, a proposta de Jesus aqui se mostra extremamente subversiva do ponto de vista da prática dos pescadores. Uma espécie de corte na circularidade da situação. Se tinha alguém que poderia dizer qual o melhor horário para pescar, qual a tática correta, onde pescar, etc. não seria Jesus, mas sim os próprios pescadores. Simão, nesse sentido, abre mão do seu "suposto saber" em nome dessa nova palavra que surge para ele; evidenciando que nem sempre o nosso saber sobre as coisas nos fará ter sucesso repetindo aquilo que sabemos. 

Um grande ensinamento que acredito podermos tirar desse texto é que devemos estar sempre dispostos a lançar as nossas redes sobre as palavras daqueles em quem confiamos, daqueles que nos conhecem, daqueles que querem o melhor para nós, mesmo que isso signifique se colocar para além do cansaço da noite toda de trabalho, mesmo que isso signifique nos colocar como "não sabendo tudo" sobre a nossa área de atuação. No fundo a proposta subversiva de Jesus aponta para a humildade que devemos ter diante do que fazemos, reconhecendo que às vezes o outro pode trazer uma nova palavra. Palavra essa que realizará um milagre em nós e nos fará reencontrar a alegria de uma boa pescaria. 


segunda-feira, 8 de outubro de 2018

O Brasil é um oximoro



https://olhares.sapo.pt/oximoro


Há no Brasil coisas que desafiam nossa compreensão

O traficante evangélico!
O Liberal que vota em Estadista!
O Patriota entreguista!
O Batista que guarda sábado!
O evangélico que defende tortura!
O pobre de direita!
O negro neonazista!
O pobre liberal!
O funcionário público que defende estado mínimo!
O imigrante ilegal contra a corrupção!
O infiel a favor da família!
O psicanalista lacaniano pedindo retorno do pai da horda primeva!
O candidato democrático que defende o fim da democracia
A Igreja evangélica que apóia fascista
O morador no exterior que defende saída autoritária para o Brasil
O protesto a favor do retorno de um governo militar
A mídia comprada pela esquerda


O Brasil é um oximoro !



quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Nós, a esquerda ...







Como recentemente pontuou o Safatle, nós da esquerda ainda temos uma espécie de complacência com o outro na medida em que ainda acreditamos que o outro apenas "não entendeu" o nosso ponto, de que a questão é apenas de falta de elucidação. Pensamos que se explicarmos melhor, talvez seremos capazes de convencê-lo por meio da argumentação. No entanto, não é isso que acontece. O debate político nunca foi o lugar da argumentação, mas sempre dos jogos de poder. Lembremos de Sócrates com sua brilhante defesa na ágora que não adiantou de nada, pois a elite grega estava contra ele. Um dado curiosíssimo a ser ressaltado é que as duas acusações que fizeram a Sócrates foram exatamente sobre Deus (blasfemar contra os deuses da cidade) e sobre a família (perverter a juventude ateniense). Sócrates poderia argumentar ad infinitum que todos já tinham decidido sua sentença, pois o jogo de poder ali já estava mais que acertado entre as elites da época.
A política sempre se fez com luta permeado pelas condições materiais de existência dos sujeitos que são sobre-determinados por estruturas muito maiores que eles. Com advento da psicanálise ficamos conhecendo que vários desses processos se dão de maneira inconsciente, o que coloca a questão em um lugar ainda mais árido. Já não bastasse a estrutura cerceante, agora ainda se tem dinâmicas sobre as quais não há domínio, mas se é dominado por elas.
Dessa forma que hoje em dia, no cenário atual, não adianta tentar elucidar o sujeito, não é uma questão de elucidação. É questão de luta efetiva, luta política na mais autêntica acepção do termo, pois por meio de uma pretensa "comunicação universal", a la Habermas, nunca se mudou absolutamente nada. A questão é saber se a esquerda estará preparada para tal luta ou se continuará com o seu viés de "esquerda festiva" promotora de "diálogos" e "rodas de conversas" que resolvem muito pouco a vida prática das pessoas. A identificação com o discurso de ódio do sujeito é um processo inconsciente, não é um processo que se resolverá por uma elucidação. Não é um processo que uma espécie de "iluminismo ingênuo" resolverá.

O momento é delicado. É preciso pensar, mas é preciso agir !

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Os evangélicos neopentecostais e a política, ou como Cabo Daciolo não passa da face performática do discurso de ódio de Bolsonaro







Uma coisa interessante sobre as eleições de 2018 tem a ver com a população evangélica e principalmente a população evangélica neopentecostal. (Caso queira ver a divisão entre os diversos evangélicos, clique aqui) O povo neopentecostal (e aqui uso o termo como "qualquer denominação que aceita a teologia da prosperidade, quer seja de maneira soft, ou mais hard, ou seja, desde uma Batista Getsêmani, Batista da Lagoinha até uma Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja da Graça, etc.) conta com um candidato que exemplifica de maneira extremamente crua a sua forma de se relacionar com o mundo e com a política que é o Cabo Daciolo. 

Cabo Daciolo não faz questão nenhuma de esconder a sua filiação neopentecostal, usa os mesmos discursos que seriam feitos em qualquer culto neopentecostal, fala em línguas, canta mantras evangélicos "ad infinitum" durante vídeos, acredita piamente que o solução para o Brasil é a evangelização de todos, para que todos aceitem a palavra de Deus como única palavra de salvação, etc. Cabo Daciolo também acusa o diabo por diversos males que acometem o Brasil e acredita que por meio da oração e por meio de um jejum no monte ele fortalecerá a sua campanha e fará com que Deus o ajude para se tornar o presidente do Brasil e limpar o Brasil de todo o pecado por meio da disseminação da palavra de Deus. Cabo Daciolo tem visões, é profeta, pastor, preside uma igreja, enfim, faz tudo o que uma pessoa neopentecostal em posição de liderança é chamado para fazer.

Qualquer pessoa minimamente familiarizado e frequentador de uma igreja com o discurso neopentecostal deveria encontrar no cabo Daciolo a sua legitimação mais óbvia, ou seja, deveria ver nele uma espécie de "enviado de Deus", um "profeta levantado pelo Senhor" para fazer a obra de salvação do país. No entanto, assim como o grande problema da classe média brasileira é não se reconhecer como pobre e explorada, assim também um grande problema para o povo neopentecostal é não se reconhecer como neopentecostal. Talvez para muitos que leem esse texto agora não há simplesmente nenhuma aproximação entre a sua crença e as do neopentecostais. Muitos nem mesmo se consideram neopentecostais, pois pensam que neopentecostais são apenas as igrejas mais eufóricas, no entanto mantém a mesma prática, e em grande medida as mesmas crenças, tais quais as descritas acima. 

O que salta aos olhos, no entanto, é que vários evangélicos neopentecostais (e alguns não tão neopentecostais também) tem se manifestado de forma veemente a favor da candidatura de Bolsonaro, um candidato que, dentre outras coisas, defende tudo o que um cristão não deveria defender, como por exemplo, "tortura", "homofobia", "violência", "ditadura", "torturadores", etc. (O fato de ainda ter que explicar isso para alguns evangélicos se torna algo extremamente surreal na época em que temos inúmeras informações e vídeos disponíveis, acesso ao texto bíblico, dentre outras coisas) Para além desse caráter extremamente óbvio do porquê alguém que se diz cristão não deveria apoiar um sujeito com um proposta tão violenta e cega como a do Bolsonaro, chega a ser extremamente curiosa a preferência dos evangélicos neopentecostais pelo discurso violento do Bolsonaro, ao invés do discurso mais "profético" do Cabo Daciolo. 

Cabo Daciolo é visto como motivo de chacota para vários evangélicos (que acreditam basicamente nas mesmas coisas que Cabo Daciolo) de forma que apoiar tal candidato seria demonstração da mais pura loucura. Ou seja, do ponto de vista prático os próprios neopentecostais vêem que esse discurso que eles mesmos propagam se tornam extremamente bizarro, no entanto, ao apoiar um discurso como de Bolsonaro, os mesmos evangélicos não percebem que o que defendem é o mesmo discurso extremista de Cabo Daciolo, só que de maneira muito mais violenta e menos velada. Esse tipo de adesão só é possível porque a grosso modo a população evangélica neopentecostal se identifica em sua instância mais íntima com o discurso violento de Bolsonaro do que o discurso espiritual de Cabo Daciolo.  

De uma certa forma podemos entender que essa preferência dos evangélicos pelo discurso de Bolsonaro evidencia a face oculta daquilo que cabo Daciolo mostra, ou de maneira mais clara, aquilo que a prática evangélica neopentecostal mostra. Fica bastante claro para qualquer observador que essa performance evidenciada nos cultos neopentecostais e que cabo Daciolo expõe de forma nua e crua não passa exatamente disso, uma performance que esconde o discurso violento que Bolsonaro traz a tona. O "deus vivo" pregado pelos cultos neopentecostais não passa do "Deus violento", do "Deus que quer extirpar da face da Terra todos os que são contra as suas ideias", é aquele "Deus juiz severo" que para além de amor também é justiça. (Justiça essa que não passa de outro nome para ódio divino dentro do discurso neopentecostal). Essa performance neopentecostal, no entanto, só pode ser levada a sério, aparentemente, nos cultos, naquelas 2 horas em que o fiel se encontra no templo. Apenas naquele momento "somos todos irmãos", apenas naquelas horas do louvor que "somos corpo bem ajustados, totalmente ligados unidos em amor", mas no momento em que o culto acaba, no momento em que o êxtase travestido de "presença do espírito" passa, lá está novamente o evangélico padrão apoiando a tortura, defendendo "bandido bom é bandido morto", defendendo "violência se combate com violência", etc. 

O mesmo pastor que é capaz de gritar "santo, santo, santo" por 20 minutos durante uma música, que faz campanha de "não cortar a barba", que "prega o avivamento", que é líder de uma igreja que não vai cessar as 24 horas de oração por dia enquanto "Belo Horizonte não for do Senhor Jesus" é o mesmo que defende a candidatura de um candidato como Bolsonaro. Isso evidencia o que citamos mais acima, isto é, que cabo Daciolo é a face performática da violência que Bolsonaro evidencia, e Bolsonaro é a face oculta do que está por trás da performance do crente neopentecostal. 

Quando, por exemplo, André Valadão (pastor da igreja Batista da Lagoinha) vai de púlpito convidar a todos para ouvir uma palestra de Dallagnol e diz publicamente que apóia um candidato como Bolsonaro; quando Jorge Linhares (pastor da igreja Batista Getsêmani) apóia Bolsonaro e diz que "o conselho de pastores de Minas te abençoa", fica bastante claro que o que está em jogo é algo muito além do mero apoio político, mas o que está em jogo é como que a representatividade do ódio encontra morada dentro do próprio discurso neopentecostal. A performance neopentecostal oculta a sua própria face violenta daqueles que se sentem "mais próximos de Deus do que qualquer outra religião", daqueles que se sentem no direito de dizer "quem é, e quem não é de Deus", etc.  Essa violência nem aparece de forma tão velada assim, basta observarmos os famosos cânticos que essas igrejas entoam durante os cultos em que a face violenta do "senhor dos exércitos" se mostra nitidamente.

Do ponto de vista do discurso performático seria muito mais óbvio que a população evangélica neopentecostal (que é a maior no Brasil segundo censo do IBGE) apoiasse em massa a candidatura de Cabo Daciolo, afinal, ele se mostra um legítimo representante de toda uma categoria da sociedade, no entanto, a partir do momento que percebemos que Cabo Daciolo evidencia apenas uma performance e que a identificação do evangélico neopentecostal é com o discurso de ódio e violento de Bolsonaro, percebemos que o que está em jogo no discurso neopentecostal é apenas mais do mesmo, ou seja, um discurso violento, excludente, que simplesmente não percebeu a proposta dos evangelhos, mas se perde em êxtases narcísicos travestidas de "espiritualidade". 









quarta-feira, 5 de setembro de 2018

O perigo de se flertar com o mal




Se pensarmos bem, o conceito de tolerância é um conceito extremamente vago e geralmente utilizado com um viés ideológico extremamente problemático. Se observarmos, por exemplo, o discurso de Martin Luther King, (quem quiser pode baixar o discurso e ler online) em hora nenhuma ele menciona que deveria haver tolerância quanto ao racismo. Em hora nenhuma ele propõe um "diálogo" para resolver os problemas, pois ele sabia que em determinadas situações o diálogo não é mais possível. Ele sabia que o discurso da "tolerância" conduz não raras vezes exatamente ao oposto do que ele se propõe. É por isso que precisamos sempre deixar claro a nossa posição, é preciso ser firme contra os discursos de ódio, contra os discursos que ferem a dignidade do sujeito, quer ele seja um discurso religioso, moral, institucional, etc. Não podemos jamais permitir que esses discursos encontrem eco entre nós. Para isso não há diálogo, pois a mínima abertura para isso pode abrir as portas para o que há de pior entre nós.
É exatamente neste sentido que qualquer discurso de ódio que vem seguido da fala "foi brincadeira", ou "não quis dizer isso" deve ser imediatamente interditado. Não deve haver espaço entre nós para que tais discursos de ódio sejam minimizados, pois sob a fala do "humor" da "brincadeira" se revela uma face cruel do sujeito. 

É sabido de todos nós que ninguém nasce odiando ninguém, ninguém nasce com preconceito com ninguém, mas isso é sempre ensinado por uma cultura que tem determinados valores. Valores estes que nunca são "eternos", mas sempre criados socialmente para cumprir demandas específicas no desenvolvimento de cada comunidade humana. É neste sentido que qualquer discurso em nome de "valores eternos" não raramente costuma cair em discursos de ódio contra os semelhantes, ou contra aqueles que não compartilham de tais valores. 

É interessante notar que o discurso de ódio também é construído socialmente e vai encontrando eco à medida que é propagado, de tal forma que entre nós, em pleno mundo contemporâneo, eles se tornaram a tônica até mesmo entre os cristãos que supostamente deveriam ser os primeiros a irem contra tais discursos.  Um movimento interessante que se percebe é que começa-se apenas flertando com o ódio; isto é, começa-se com a pura negligência das questões estruturais que envolvem a situação do sujeito que acaba sendo responsabilizado sem levar em consideração toda a estrutura que o assola; obviamente que a estrutura que envolve o sujeito de forma alguma o determinará de maneira última, mas qualquer análise do comportamento do sujeito que não leve em conta o seu meio não passa de pura análise ideológica. 


Em um segundo momento, quando o sujeito assusta, já está tomado pelo ódio de uma forma tal que surgem os discursos de "penas mais duras para bandidos", "bandido bom é bandido morto", "tem que matar esses judeus todos". Assim como esse discurso não nasceu do nada, ele também não cresce do nada. De alguma forma esse discurso alimenta em grande medida um desejo do próprio sujeito, há uma espécie de identificação violenta nesse indivíduo que vê que bandido bom é bandido morto, há uma identificação violenta desse sujeito com o discurso de ódio que ele propaga. Se quisermos podemos até mesmo utilizar as palavras bíblicas  de que "a boca fala do que tá cheio o coração". Quando alguém corrobora um discurso violento, um discurso em que despreza o outro, um discurso em que torna a causa alheia uma causa não digna o que se percebe é que esse sujeito de fato pensa assim, no entanto ele não se vê pensando assim; ele pensa que de fato está corroborando uma causa justa. Como aquela criança que realmente acredita que há soluções simples para causas complexas. 

Quando esse sujeito defende a castração química para acabar com os estupros, o que ela não percebe é que essa solução pueril em nada resolve o problema, mas apenas desumaniza ainda mais um sujeito já desumanizado. Quando o indivíduo de fato pensa que "bandido bom é bandido morto" o que ele não percebe é que o conceito de "bandido" esconde para tal sujeito um enorme preconceito, pois ele tem em mente apenas um tipo de "bandido" sem em hora nenhuma levar em conta que o termo "bandido" é extremamente amplo, de tal forma, que ele mesmo poderia ser incluído como tal bandido uma vez que o discurso fosse alargado. O "bandido" para tal sujeito é apenas o negro pobre, o morador de rua, o presidiário, mas nunca o que falsifica uma carteira de estudante para entrar num show pagando meia, o que aflige a lei para propagar discursos de ódio, etc. Esse sujeito tomado pelo ódio só vê a partir do seu próprio preconceito. Se bandido é aquele que está agindo contra a lei e deve ser morto, qualquer um que desrespeita a lei deveria ser morto seguindo essa lógica, até mesmo quem propaga tal discurso, pois incitar o ódio é em si um crime. Mas por que não se pede a morte desse bandido e apenas do outro? Na realidade o que se pede é a morte do diferente, a morte daquele por quem se tem preconceito, por quem o sujeito julga ser menos humano que a si próprio de forma que pode ser tratado apenas como um animal. 


Flertar com o mal é sempre perigoso, ainda mais porque (como já dizia o mito bíblico) ele nunca chega para o sujeito com sua face má, mas travestido de promessas de segurança." Essa é a mesma tentação do jardim do Éden. A tentação de que por meio de uma ação simples, por meio de uma ação infantilizada, por meio de uma escolha do mais fácil será possível ter um poder maior, uma visão melhor das coisas, um mundo melhor, etc. É por isso que se flerta com o mal. A promessa de segurança que o discurso violento traz se mostra para o sujeito uma solução última devido ao "caos do jardim". "É certo que não morrereis" é ao mesmo tempo a promessa e a crença desse sujeito propagador do discurso de ódio. Ele acredita que ele estará isento do ódio propagado socialmente, ele acredita infantilmente que os odiadores saberão diferenciar o "cidadão de bem" do "bandido"; eles acreditam infantilmente que há uma linha divisória nítida entre eles, quando na realidade não há linha nenhuma que os separa. É neste sentido que nunca se deve aceitar os discursos de ódio sob pena de que a banalização do mal seja a tônica. Tal banalização do mal nunca deve ser a tônica de nenhuma sociedade, pois a partir do momento que ela se torna a tônica estamos à beira do colapso civilizacional. 

Uma tática conhecida do nazismo foi transformar todos os judeus em bandidos, em animais, para que a partir da desumanização deles a população não visse que estavam atacando aos seus semelhantes, mas sim a uma espécie menor, a um "não-humano", que por isso "merecia" ser tratado de forma desumanizada. E na maioria das vezes não eram pessoas "ignorantes", não eram pessoas "iletradas", "alienadas", etc. Vários oficiais da SS possuíam diplomas de curso superior, possuíam doutorados em suas áreas, mas mesmo assim aderiram ao discurso propagado de Hitler na desumanização dos judeus, dos gays, etc. O discurso de ódio é construído socialmente assim como qualquer outro discurso, e se aproveita dos momentos de agitação política para se propagar. Este é o mesmo movimento que culminou no holocausto, mas que alguns entre nós insistem em não enxergar a semelhança. É exatamente neste sentido que temos que admitir que não é uma questão de ignorância do sujeito, mas sim de uma identificação do sujeito com tal discurso, de forma que ele "de fato" pensa assim. E isso talvez seja o que mais assusta, ainda mais quando vindo de pessoas que supostamente deveriam propagar o amor ensinado por Jesus, aquele bandido segundo Roma; aquele presidiário, etc. 

É por isso que nunca devemos aceitar e nem tolerar os discursos de ódio. Devemos sim lutar contra eles e impedirem, no que depender de nós, que eles se propaguem.