segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Teologia Apofática - A chamada Via Remotionis







A teologia negativa, ou teologia apofática é um campo da teologia iniciado por Dionísio Pseudo-Areopagita que afirmava que sobre Deus não haveria discurso possível, ou seja, sobre Deus não há nada que possa ser dito, e para tentar explicar isso a filosofia medieval cunhou o termo que ficou conhecido como "Via Remotionis".

A via remotionis é o modo de falar negativamente a respeito de Deus o que difere do conceito de negação. A função da negação é excluir determinado objeto de um campo predicativo podendo com isso definir determinada coisa a partir do que ela não é. A diferença entre a negação e a via remotionis é ilustrada a partir da figura do escultor que trabalha com um bloco; o trabalho do escultor é feito de forma a possibilitar que o material trabalhado crie a forma desejada, e essa forma é dada a princípio, ou seja, toda escultura é em si uma imitação de um objeto. O que há ali é a "remoção" daquilo que não é a escultura e ao remover o que sobra da pedra algo ali vai se delimitando.

A música, por exemplo, não pode ser esculpida por não ter uma forma que se adeqüe a um bloco de mármore . A função da via remotionis é mostrar que nada pode ser dito a respeito de Deus. A via remotionis mostra que não existe campos predicativos aos quais Deus e seus atributos se encaixem. Se tentamos colocar Deus dentro de campos predicativos através de negações sucessivas o que se segue é o esgotamento de todos os campos predicativos inteiros. Falar de um objeto, é colocá-lo dentro de um campo predicativo. Com Deus isso é impossível. E é exatamente isso que a via remotionis vem mostrar. 

Deus não é um objeto dizível, e por isso qualquer tentativa de explicação Dele deve obrigatoriamente levar ao silêncio, pois podemos falar de objetos que estão no mesmo plano do dizível, e dentro de um campo de predicação, e Deus não está neste plano e nem em nenhum outro pois está acima de todas as coisas e por isso o dizível não se aplica a Ele. Portanto, assim como para esculpir algo, o escultor precisa de um objeto a ser imitado, para falarmos algo a respeito de alguma coisa, precisamos ter um campo de predicação desse objeto que lhe seja pertinente. Deus não está em nenhum campo de predicação, por isso assim como uma música não pode ser esculpida em um bloco de mármore, não podemos falar nada a respeito de Deus pois Deus não é um objeto dizível.

A mesma ideia de uma teologia apofática é evidenciada muitos séculos depois na proposta de Wittgenstein em seu famoso "Tractatus logico-philosophicus" que se encerra com as palavras: "Sobre o que não se pode falar, deve-se calar", ou seja, a via proposta por Wittgenstein acaba por se resumir ao silêncio sobre o místico, incluindo aí a figura de Deus. Na mesma esteira podemos também colocar o pensamento de Mariah Corbi em que o que restaria a respeito de um discurso sobre Deus seria apenas o silêncio. A teologia apofática também é bastante comum nos textos de teólogos ortodoxos advindos do antigo império bizantino tais como Nikolai Berdiaev e mais recentemente Mikhaill Epstein e sua proposta de Religião mínima. 

A teologia apofática até hoje continua inspirando diversos autores e a sua fecundidade aponta para os limites da nossa linguagem ao tentar dizer algo sobre Deus. Nessa impossibilidade se evidencia a possibilidade de uma mística e de uma postura diferente em relação a isso que chamamos Deus que estaria para além de toda predicação. 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Édipo sem complexo - Pequena reflexão sobre o Édipo Rei de Sófocles



A história do Édipo Rei de Sófocles é um clássico da tragédia grega e foi muito utilizado por Freud para expor sua teoria, embora muito contestada a forma como ele utiliza este mito. O mito do Édipo Rei de Sófocles, se insere dentro do cenário da tragédia grega antiga e reflete exatamente como que ela era vista pelos gregos dessa época. A tragédia grega se destaca por colocar o herói em uma situação que lhe é contrária àquilo que se espera, deslocando portanto o foco da trama. Segundo aponta Jean Pierre Vernant em seu livro o herói na tragédia grega é tipo como pego pela palavra, assim como acontece na história do Édipo Rei.

Algo que é identificado no facilmente é a questão da ambigüidade e da reviravolta, que  é algo que todos os trágicos gregos recorriam como meio de expressão e modo de pensamento. Essa ambigüidade reflete-se segundo uma tensão de valores que se tornam inconciliáveis a despeito de sua igualdade. Segundo Vernant em  seu livro "Mito e tragédia na Grécia Antiga." (1999 p. 75) a ambiguidade se refletia em cada herói em seu universo próprio, e ele era como que pego na palavra que proferiu, e isso era algo recorrente e ele o chama de ironia trágica. Essa ironia, consistia no fato de que àquilo que era dito pelo herói acabava retornando para ele mesmo, como uma forma de punição dos deuses, pela falta de conhecimento por parte do herói sobre o que era a verdade dos fatos. Isso é muito bem visto na história do Édipo, quando àquilo que ele deseja que aconteça ao personagem central da trama volta-se a ele mesmo no decorrer da peça.  A mensagem trágica torna-se-lhe inteligível na medida em que arrancado de suas incertezas e de suas limitações antigas percebe a ambigüidade das palavras, dos valores, da condição humana.

Vernant trata também dos subentendidos utilizados de forma consciente, e isso depende de um certo conhecimento anterior por parte dos espectadores da peça, que já iam para o teatro com todo um conjunto de informações que seriam necessários para a compreensão da tragédia.
A verdade na tragédia grega, está sempre presente, só que na maior parte dela de forma oculta, de forma que, só os espectadores que no caso de estar assistindo os dois lados da história se assemelham aos deuses, que conseguem conhecer todos os discursos e prevê o que vem à frente. A diferença é que ao contrário dos deuses, os espectadores não interferem no desenrolar da peça, já os deuses, sempre são recorrentes nas tragédias gregas. Édipo mesmo atribui aos deuses o seu afortunado destino. Quando Édipo fala o que será feito ao assassino de Laio, ele se coloca como juiz de si mesmo, pois o que ele deseja ao malfeitor, irá acontecer a ele também. Essa é a forma como a tragédia se desenvolve normalmente, mas no Édipo- Rei ela não acontece como uma oposição dos valores nem em uma duplicidade de personagens , mas diverte-se com a vítima. No caso de Édipo, é ele quem é o joguete em toda a trama. É a sua vontade de descobrir o assassino e desmascarar o culpado, mesmo tentando ser impedido por Jocasta, Tirésias e o pastor , achando com isso que está cumprindo seu papel diante da cidade é o que o leva de herói para vilão, pois ao descobrir o assassino de Laio, Édipo se descobre na trama. 

Essa atitude Édipo faz parte de sua personalidade. Ele não é homem de desistir das coisas, gosta de ir até o final mesmo que com isso possa descobrir algo que não lhe agrada que é o fato de saber que é ele mesmo o joguete do início ao fim. Édipo é portanto duplo, quando ele fala, acontece-lhe dizer outra coisa contrária ao que ele está dizendo. Ele é portanto um enigma que só se resolve quando ele mesmo descobre que o que ele tinha por verdade não o é mais. Édipo portanto não escuta o discurso que ele mesmo diz sem saber, e é exatamente essa a verdade que está oculta; a única coisa autêntica.

Essa verdade oculta só é compreendida por quem tem o dom da dupla escuta ou da dupla visão como é o caso do adivinho Tiréisias. O discurso de Édipo se distingue entre o humano e o divino que irão se encontrar no final da peça, quando o problema estará resolvido e o enigma desfeito. É nessa hora que se dá a “reviravolta” da ação em seu contrário.
Quando Édipo soluciona o enigma, ele encontra ele mesmo, e esta identificação do herói provoca uma reviravolta completa da ação. A atitude de Édipo inverte as posições dentro da tragédia formulada por Sófocles.
Ao final da pesquisa feita por Édipo o justiceiro se identifica com o assassino e portanto descobrir quem matou Laio, é também descobrir quem é Édipo. A pesquisa por justiça por parte do rei de Tebas, torna-se uma pesquisa sobre quem realmente é o rei de Tebas. Essa reviravolta e ambigüidade é bem destacada por Vernant quando cita que o estrangeiro de Coríntio é, na realidade nativo de Tebas; o decifrador de enigmas, um enigma a ser descoberto, o justiceiro, um criminoso; o clarividente um cego; o salvador da cidade, sua perdição. Édipo que para todos era o maior dos homens, e o melhor dos mortais, se torna o mais infeliz e pior dos homens, um criminoso, e objeto de horror aos seus semelhantes, odiados pelos deuses reduzidos à mendicância e ao exílio.

A tragédia grega usava palavras gregas semelhantes para dizer coisas que no contexto da peça eram contrárias. A situação de Édipo depois de sua descoberta se torna a de um miserável que não merece o convívio com a cidade. A sua descoberta o expulsa do mundo visível e o coloca no mundo de Tirésias o vidente que pagou com seus olhos o dom da dupla visão. Considerando o ponto de vista humano Édipo é o chefe clarividente, igual aos deuses, mas considerando do ponto de vista dos deuses ele aparece cego e igual ao nada. A reviravolta da ação, como a ambigüidade da língua, marca a duplicidade de uma condição humana, que, à maneira do enigma, se presta a duas interpretações opostas. A linguagem humana se inverte quando os deuses falam através dela.

O Sentido da tragédia como concebida pelo gregos passava pelo enigma sobre a qual a peça estava escrita. Essa é a reviravolta consiste no fato do positivo se tornar negativo e vice-versa . Algo interessante de ressaltar é que Édipo não queria fazer o que fez, pois nutria um sentimento de filho para com quem considerava seus verdadeiros pais e condenava tal ato que fez, como sendo algo indigno de qualquer comiseração. Segundo marca Vernant, outra forma de reviravolta é o fato de que sua glória vai se afastando dele aos poucos para fixar-se sobre personagens divinas, Édipo vai se colocando cada vez mais na posição de homem sujeito a vontade dos deuses.

Um exemplo de ambigüidade é o seu próprio nome que em sim mesmo é de caráter enigmático e que marca toda a tragédia. Édipo é o homem dos pés inchados ( oîdos) , uma enfermidade que lembrava a criança abandonada e maldita; mas Édipo é também o homem que sabe (oîda) e foi esse saber que o colocou onde estava agora, como rei da cidade de Tebas por derrotar a Esfinge por seu próprio conhecimento. Todo enigma de Édipo se encontra contida no jogo ao qual o enigma que o seu nome contém. A descoberta do segredo da Esfinge já o coloca de certa forma diante do enigma sobre quem é ele próprio.

Diante da descoberta da verdade dos fatos, Édipo se coloca na figura do pharmakós o qual é preciso ser expulso da cidade para que a peste cesse. A figura de Édipo se inverte de Sábio para poluição da cidade, ele é o criminoso que precisa ser expulso. Édipo assume também a figura de bode expiatório sobre o qual irá repousar toda a culpa da cidade de Tebas. De Týrannos para pharmakós, Édipo sofre essa reviravolta. Enquanto no primeiro momento , ele é venerado por todos como a um deus, ele agora é odiado por todos e é visto como um mal da cidade que precisa ser expulso. A figura do týrannos como herói exposto e salvo, rejeitado e que volta como vencedor se prolonga até o século V no mundo grego. Como herói, o tirando acede à realeza por uma via indireta, fora da descendência legítima; como aquele, ele se qualifica para o poder por seus atos, sua proezas. Ele reina não pela virtude de seu sangue, mas por suas próprias virtudes; ele é filho de suas obras ao mesmo tempo que o é da Boa Sorte.

Tebas estava sofrendo com a esterilidade dos rebanhos e das mulheres, enquanto uma peste dizimava os vivos. Para se acabar com essa peste era preciso que o mal da terra fosse expulso, e como Édipo é esse mal, ele deve assumir a função de pharmakós.
Essa noção de pharmakós que deve levar o mal da cidade era um rito em Atenas que visava expulsar periodicamente a poluição acumulada durante o ano, e portanto instituiu-se o costume de uma purificação constante pelos pharmakói. O pharmakói era geralmente escolhido entre os povos pobres da cidade, entre os malfeitores condenáveis, os feios , de baixa estatura que por seus atos se tornavam o estolho da sociedade. Libertar a cidade era expulsar o pharmakós.

A figura do týrannos que Édipo representa o põe diante de uma reviravolta, pois enquanto o suporte da cidade não for expulso, a cidade continuará a sofrer. Ele mesmo é o mal da cidade; ele que a princípio foi o salvador da praga da Esfinge, torna-se agora a própria praga que precisa ser expulsa, aquele que outrora trouxe a paz, é agora quem provoca a peste. Rei divino-pharmakós : tais são portanto, as duas faces de Édipo que lhe conferem seu aspecto de enigma, reunindo nele, como numa fórmula de duplo sentido, duas figuras que são o inverso uma da outra. O herói era o modelo da condição humana, e Sófocles em sua peça se aproveita desse consenso entre os gregos e se apropria disso para colocar o týrannos como um pharmakós para ilustrar o tema da reviravolta, é porque na sua oposição essas duas personagens aparecem simétricas e, em certos aspectos, permutáveis, um e outro são responsáveis pela saúde da cidade. Toda a cidade pagaria pelo erro de um só.

O pharmakós é o inverso do rei, é como uma réplica ao contrário, que de igual forma é responsável pelo destino da cidade, e, por ser o mal, deve ser expulso para que o verdadeiro rei assuma sua posição e estabeleça a paz. Esta é, portanto a ambigüidade e a reviravolta que se encontra na peça de Sófocles. De týrannos, para pharmakós, Édipo se encontra nos dois lados da moeda, enquanto a princípio ele é o responsável pela paz, em um instante seguinte, se encontra precisando ser expulso por ser a causa da peste que assola a cidade que outrora ele teria salvo.

Caso queira se inteirar mais do tema sugiro o excelente livro do Vernant - 

VERNANT, Jean Pierre, VIDAL-NAQUET, Pierre, Mito e Tragédia na Grécia Antiga., São Paulo , Editora Perspectiva, 1999.


terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Questões a partir do materialismo aleatório de Althusser




 Althusser , em sua última filosofia, faz uma crítica a vários conceitos do materialismo dialético entre eles o conceito de “origem-fim”. Althusser critica esse conceito afirmando que o tipo de materialismo que isso visa não passaria de um idealismo. A filosofia de Althusser não parte de problemas filosóficos, mas pretende eliminar esses problemas para começar de um vazio filosófico.

Para Althusser, um materialismo que visa uma teleologia, no final não passaria de um idealismo, uma vez que a própria origem será vista já visando um fim. A origem é construída a partir de um fim. A crítica de Althusser parte de um vazio filosófico para poder a partir daí construir algo que não seja um idealismo. É preciso portanto desconstruir o conceito de origem-fim para que se possa entender o mundo como um processo aleatório.

O filósofo desloca portanto a ideia de mundo necessário e coloca em seu lugar a contingência. A contingência não seria apenas uma modalidade ou uma exceção dentro de um mundo necessário, mas o necessário é constituído a partir de encontros de contingentes. Os acontecimentos contingentes é que geram o que se torna necessário e não o contrário. O mundo portanto nada mais é do que encontros aleatórios que geram necessidades a partir disso. O mundo não é conseqüência de um princípio-ordem, uma ordenação, um logos do mundo. Ele é apenas um fruto de uma conjuntura-acontecimento (Nessa mesma linha desloca a filosofia de Badiou em "Ser e evento" tentando mostrar como se daria a "lógica do mundo" a partir da noção de "acontecimento).

O mundo nesse sentido continua sendo objetivo e independente em relação ao sujeito, no entanto ele não é assim por causa de um princípio que ordena as coisas, mas ele é fruto de um encontro que poderia ter acontecido de outra forma. Segundo Althusser, todo estado do mundo pode ser mudado de maneira imprevisível acrescendo ou subtraindo algum elemento no mundo. Não tem como estabelecer leis da história, o máximo que podemos fazer será apenas extrair do mundo algumas constantes e tendências pelo hábito que temos de ver as coisas acontecendo como acontecem. Althusser portanto caminha na contramão de uma filosofia idealista. Não há um fim nas coisas. Há apenas acontecimento-conjunção em uma formalidade vazia. 

Algo que fica claro na proposta de Althusser é que, para ele, o materialismo do encontro não critica apenas o fato do idealismo ser regido pelo principio da razão. Este seria um instrumento de poder político, de imposição de suas verdades, e que a tradição racionalista da filosofia mascara como sendo o poder da “Verdade”. A filosofia reconhece a realidade exterior, mas estabelece com esta uma relação de apropriação. O conceito se impõe à prática, tenta colocar a verdade da filosofia (suas ideologias política, religiosa, moral e estética) como sendo sua verdade. A realidade é tragada e reformulada segundo este princípio da razão sem que sua natureza própria seja levada em conta. Pelo contrário, é preciso corrompê-la para que o domínio da verdade da filosofia se efetive.

O materialismo aleatório não exerce sobre as práticas uma  “violência do conceito”. Elas são justamente aquilo que pode questionar a filosofia, seu outro, algo que está aberto a contingência do acontecimento e da experimentação, indeterminado em relação a um objetivo último. A crítica da filosofia idealista e do princípio da razão tem por objetivo livrar os campos filosófico e histórico da submissão que as categorias filosóficas (princípio de razão, como conceito-verdade, e as noções de Sentido, de Sujeito, de Substância e de Origem-Fim) impõem às práticas sociais dos homens. A partir da desconstrução que materialismo do encontro faz da maneira idealista de pensar, seus elementos teóricos tornam-se como os átomos que caem no vazio do clínamem, instâncias passíveis de novos encontros e combinações. O materialismo aleatório promove a abertura do acontecimento, a possibilidade de outros mundos filosóficos.  

A proposta althusseriana se mostra extremamente interessante para pensarmos as relações humanas e a própria relação do homem com a religião. Obviamente que Althusser não era um religioso, e sua proposta materialista de cara já elimina qualquer proposta metafísica por parte dele relegando qualquer adepto de sua teoria ao ateísmo. No entanto, a sua proposta de um encontro aleatório para além de uma noção de origem-fim é uma proposta vigorosa na nossa época contemporânea ausente de referenciais teóricos. A ausência de um princípio organizador e a ausência de um télos no mundo coloca o indivíduo diante de um grande vazio que clamará por algum tipo de preenchimento, mesmo que parco. Neste sentido a própria filosofia poderá se colocar como uma tentativa desse preenchimento, mas não no sentido de "organizar o mundo conceitualmente", mas tendo como tarefa abraçar toda a aleatoriedade do mundo. No entanto, talvez haja outras saídas para além das filosóficas para tentar lidar com a aleatoriedade e é exatamente essa a proposta instigante que Althusser nos relega. 

Será que a religião seria capaz de oferecer algum tipo de resposta à aleatoriedade sem ter como meta eliminar tal aleatoriedade? Como seria uma religião que abarcaria a aleatoriedade althusseriana? E o conceito de "Deus"? Como ele seria pensado a partir dessa proposta? Resta a ele apenas sair de cena em um materialismo cego, ou será que há a possibilidade de pensar tal conceito a partir da noção de aleatoriedade? Essas são perguntas obviamente sem respostas ainda, mas que instigam o nosso pensamento. 

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Reflexões sobre Deus a partir de um inseto







Ontem um inseto entrou em minha casa enquanto assistia televisão. Depois do susto provocado por uma entrada tão súbita, a primeira reação que tive foi a de pegar o chinelo no intuito de matar tal invasor. Foi o que fiz. No entanto, enquanto pegava o chinelo e o lançava em direção ao inseto indefeso diante da minha onipotência circunstancial uma imagem me veio à cabeça e me imaginei como se eu fosse aquele inseto diante de um Deus que teria todo poder para me esmagar a qualquer momento que ele quisesse sem que eu de nada soubesse sobre isso. 

Esse Deus todo poderoso teria todas as coisas ao seu dispor, ou seja, assim como eu, ele também teria um chinelo, um tênis, ou qualquer outro objeto para me esmagar a qualquer momento, e fiquei pensando: - Mas por que razão ele não me esmaga sem misericórdia alguma? Com certeza eu nunca saberia que teria sido esmagado por aquele Deus e minha vida simplesmente acabaria ali, sem sentido algum, fruto de uma vontade desconhecida, que talvez por nada melhor pra fazer resolvesse matar um inseto que adentrou em sua casa.

Nessa hora me veio à mente duas referências bíblicas. A primeira foi aquela  referência bíblica de Isaías 41,14 que chama o povo de Israel de "vermezinho de Jacó", ou seja, algo insignificante diante do poder de Deus que supostamente poderia fazer qualquer coisa para com aquele ser desprezível. E a segunda referência que me veio foi a referência de Lamentações 3,22 que afirma que "As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porque a sua misericórdia não tem fim", ou seja, se Deus não me esmaga como eu fiz com o inseto é porque a sua misericórdia para comigo é sem fim, e para ele, de alguma forma, há um interesse na minha existência, ou até mesmo um desinteresse passivo quanto a eu existir ou não. 

Agora a tarde tive outra experiência interessante. Como estou de férias, dei uma cochilada na parte da tarde e quando acordei, acordei com fome e então fomos à padaria para comprar coisas. Eu queria comer pão com queijo e por isso fomos à padaria e compramos pão com queijo, pois esse era o meu desejo no momento. Ao mesmo tempo eu fiquei pensando que diversas pessoas tem o desejo apenas de "comer" e nem isso lhe é dado, pois diversas vezes elas simplesmente não tem o que comer, enquanto eu posso escolher e ter acesso àquilo que quero. 

Se pensarmos que Deus seria responsável para com isso cairíamos naquele velho debate despropositado que coloca a culpa de todas as coisas em Deus como aquele que seria uma espécie de sádico brincando com os desejos e as condições de vida das pessoas. Particularmente não penso que estas questões sejam da alçada de Deus, mas se vinculam muito mais à dinâmicas estruturais dos modos de produção capitalista. Deus não tem absolutamente nada a ver com isso, mas sim as condições materiais de existência que geram um disparate que permite que enquanto alguns tenham muito e acesso a qualquer que seja o seu desejo, outros nada tenham e por isso mendigam e até morram por não conseguir comer. 

Para mim é bem claro que a visão que temos sobre Deus condiciona de forma cabal a forma como nos relacionamos com ele. Se eu vejo  Deus como esse ser sádico que pode me matar a qualquer momento, mas não o faz simplesmente porque não quer ou está desinteressado em minha existência, mas ao mesmo tempo seria o responsável por alguns poderem comer o pão com queijo quando querem enquanto outros não podem nem mesmo escolher se comerão ou não, então a minha relação com ele será extremamente ambivalente, como já mostrou Freud em diversos textos. Vou amá-lo porque a sua misericórdia me mantém e me permite escolher o que quero comer e ter aceso a isso, mas ao mesmo tempo vou temê-lo porque a qualquer momento ele pode resolver me matar sem me dar nenhuma explicação. Essa ambivalência fará com que a minha relação com ele sempre esteja oscilante; e diante das perguntas da vida eu ficaria completamente sem resposta, pois não teria como escolher entre o Deus de amor e o Deus sádico. 

A minha proposta é que Deus deva ser visto para além dessa dimensão ambivalente. Deus não é o responsável por eu ter o que comer e beber, nem mesmo responsável por eu estar vivo, mas posso ser sempre grato a Ele por isso. A ideia que coloco aqui é a de que Deus pode ser entendido como um sentido que organiza o mundo sem fazer com que o mundo dependa dele e nos excusemos da nossa responsabilidade. Se sou grato a Deus por eu ter o que comer e o que vestir isso não quer dizer que tudo venha Dele, mas apenas quer dizer que eu resolvo ler o mundo de uma forma em que me vejo não como causa de mim mesmo, mas dependente de uma esfera de ação que me ultrapassa. Posso até mesmo significar o mundo dizendo que "tudo vem de Deus", mas significando por Deus não um ser todo poderoso, mas um Sentido para a minha existência.  Dessa forma perseveramos a dimensão do mistério, perseveramos a dimensão de Deus e eliminamos a dimensão sádica daquele Deus todo-poderoso que brinca com meus desejos, ora possibilitando satisfações, ora não e que poderia me esmagar a qualquer momento.

Finalmente percebemos que as coisas no mundo dependem de relações que são determinadas internamente e não por Deus que esteja coordenando todas as coisas, no entanto, eu, quando vou ler o mundo, procuro dar um significado para esses acontecimentos e para isso eu escolho ler o mundo a partir da dimensão do Sentido. Esse Sentido me coloca de uma maneira diferente diante do mundo, encarando todo o vazio e sem sentido de diversos acontecimentos, mas sem esquecer que a aposta é sempre a do Sentido para além do mero vazio e acaso. Acredito que isso nos coloca em um meio termo entre um materialismo cego e ingênuo que é incapaz de apostar no sentido, e uma explicação completamente metafísica que faz tudo depender de um Deus todo poderoso colocando o homem apenas como um verme diante de um poder pleno. A proposta aqui faz com que encaremos a nossa responsabilidade na construção de um mundo melhor, encaremos a nossa responsabilidade diante das nossas vidas, e permite ao mesmo tempo admitir a possibilidade do aparecimento de Deus, mas um Deus fraco, vazio, que se mostra apenas em pequenas gotas de esperança diante do mundo caótico. Esse Deus visto como esse Sentido é o que nos faz lutar para que todos tenham o que comer, que todos tenham o que vestir, que tenham o que beber, onde morar, etc. Deus se esvazia de metafísica e se transforma em horizonte para onde todos navegamos. 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

[... escolhe pois a vida, para que vivas... Dt 30,19]










Enquanto podia, aconselhava, ouvia, ponderava, levantava prós e contras, contava de sua própria experiência, projetava algumas delas, ocultava outras, etc. 
Fez tudo o que pode para que ele não fosse pelo caminho que parecia traçar para si. No entanto, a partir do momento que  ele decidiu seguir o caminho que escolheu, ela fez de tudo para ajudá-lo. Até testemuhou o que aos olhos dela era um erro. Aceitou o fato de que ele tomou a decisão que achava melhor para si. 

Isso quando abandonou o emprego, isso quando resolveu morar de aluguel ao invés de comprar uma casa, isso quando resolveu namorar alguém que claramente não tinha nada a ver com ele. Mesmo com todos alertas ela resolveu deixá-lo seguir o que achava melhor. Não se eximiu da sua responsabilidade enquanto quem ama, não tomou para si responsabilidade que não era dela, não foi indiferente à demanda do outro, mas deixou o outro livre e ajudou no que pôde e o quanto pôde. Mas fez assim porque o amava, porque compreendia que por mais que discordasse, por mais que alertasse, a decisão, por mais errada que fosse a seus olhos, cabia somente a ele. Nada fez para se colocar como obstáculo, pelo contrário, tudo o que pôde fazer para ajudar, ela fez. 

Não mereceria ela a mesma credibilidade agora que a situação se inverteu? Não deveria ele agora fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para ajudá-la a levar a cabo sua decisão? No entanto agora ele se esconde atrás de racionalizações, se esconde atrás de planilhas. Planilhas essas que não fez diferença alguma na hora  de abandonar o emprego. Racionalizações essas que foram deixadas de lado quando a sua demanda se impôs, mas que agora serve de desculpas para se eximir da ajuda possível.

É sempre possível usarmos um juízo para o outro e não sermos coerentes o suficiente para usarmos o mesmo juízo para nós mesmos. Da mesma forma que há pessoas que são muito duras com os outros mas ao mesmo tempo são bastante condescendentes consigo. Para o outro todo o peso das racionalizações, para mim nem tanto peso assim, e assim a vida segue como que normalmente diante das incongruências destas posições. Os já conhecidos "dois pesos e duas medidas" acabam falando mais altos diante dos nossos interesses e isso é algo extremamente humano, mas nem por isso seja algo que devemos nutrir, afinal, seria bom se fôssemos justos o tempo todo; tanto conosco como com os outros.

Há também aqueles que são extremamente severos consigo e extremamente condescendente com o erro dos outros. Esse segundo tipo também encontramos aos montes em nossa vida. O grande desafio é encontrar o meio-termo entre essas duas situações e tentarmos, na medida do possível, nos tornar melhores em relação ao outro. Ajudar o outro sempre que possível e não ser empecilho para que o outro tome as suas decisões. No que depender de nós devemos ter sempre o coração disposto a ajudar o próximo para que ele se realize e para que ele sempre se responsabilize pelos seus atos.

Toda escolha envolve uma perda. Escolher é sempre perder algo. Enquanto adultos cabe a nós reconhecer o direito do outro de tomar as suas próprias decisões, o direito do outro de escolher o que achar melhor para si. Por mais idiota que possamos achar a escolha do outro não compete a nós decidir por ele. Se solicitados podemos expor nossas opiniões, nossos pontos a favor e contra tal decisão, mas sempre tendo em mente que cabe apenas ao outro tomar tal decisão. A nós cabe respeitar  e torcer para que o outro escolha o que for melhor, cabe a nós torcer para que o outro escolha a vida e viva. E isso é sempre um grande desafio para nós.

Que estejamos sempre prontos a aconselhar e ajudar o outro naquilo que sabemos, mas sem nunca tirar do outro a responsabilidade e o seu direito/dever de escolher o seu próprio caminho.


quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Aspectos de Deus em um texto de Leibiniz





Um texto de 10 anos atrás encontrado nos escombros do computador. 

O problema de Deus em Leibniz é um problema extenso e não pretendo aqui esgotar o assunto. O que eu pretendo aqui é fazer uma pequena reflexão sobre o papel de Deus na metafísica de Leibniz.
Em seu texto intitulado “Uma Definição de Deus, ou, de um Ser Independente.”(Definitio Dei Seu Entis A Se), de 1676, Leibniz afirma que Deus é um ser de cuja possibilidade (ou, de cuja essência) segue-se Sua existência. Se um Deus, definido de tal modo, é possível, segue-se que Ele existe. 
O tema da metafísica de Leibniz é a pergunta de como deve ser o mundo, se temos a noção de Deus ? Para Leibniz, Deus é o criador de todas as coisas e é absolutamente perfeito, e uma vez que Ele é um ser perfeito, a sua criação será a mais perfeita possível. Leibniz afirma que a coisa é boa e por isso que Deus faz, e não que Deus faz algo ser bom ou não. A potência máxima para Leibniz não é criar a razão, mas sim, criar de acordo com a razão. Isso segundo ele é o que é ser livre.
Leibniz tem a idéia dos mundos possíveis. Segundo ele, Deus contempla todos os mundos e cria o melhor dos mundos possíveis . Deus age desta forma porque Ele não pode ferir o princípio da não contradição. Criar o melhor dos mundos possíveis é agir de acordo com a razão. A posição de Leibniz se assemelha com a visão medieval que afirmava que Deus não pode fazer contradições lógicas. Deus está também sujeito aos princípios lógicos.
Essa sujeição de Deus a esse princípio no entanto, não limita o poder de Deus. Deus tem todo o poder para fazer todas as coisas, Ele não faz porque se fizesse, implicaria em contradição à sua obra, e uma vez que Deus é perfeito, ele não pode cair em contradição. Por exemplo: Deus não pode criar um mundo onde não existisse o princípio da não contradição, isso porque seria inconsistente ele contemplar um mundo melhor e criar um mundo pior.
Deus também é um ser onisciente. Ele já criou todas as coisas com tudo pré-determinado para elas. As substancias já contem em si tudo que lhe aconteceu, acontece e acontecerá. Só que a substância não sabe disso. Somente Deus sabe de todas essas coisas. Essa onisciência de Deus faz com que Ele tenha a noção completa da substância com todos os seu acidentes. Havia um posição escolástica que defendia que Deus sabe as coisas que a substância fará pelos futuros contingentes. Leibniz no entanto discorda dessa visão e afirma que Deus não pode prever algo que é livre e indeterminado, ao contrário ele já cria a substancia com tudo o que vai acontecer a ela.
Segundo Leibniz, o melhor sempre implica em perfeição, e Deus escolhe sempre o melhor. Leibniz em sua metafísica, quer explicar o problema do mal, e Leibniz resolve este problema pela teoria dos mundos possíveis. O mundo sem o mal, seria contra o princípio de não contradição. Para ele, o mal veio ao mundo para que Deus pudesse colocar neste um bem. A queda de Adão para Leibniz comprova que o melhor mundo possível seria aquele em que Deus se fizesse presente fisicamente nele, e por isso a queda do homem.
Leibniz afirma que o pecado é necessário para um bem maior, pois sem ele, não haveria como implantar a justiça, uma vez que a justiça precisa do pecado para existir. Deus não poderia criar um mundo justo, se não existisse o pecado.
Leibniz não questiona a necessidade de um mundo sem justiça, ou sem pecado. Para ele isso seria possível, uma vez que não havendo pecado, não haveria a necessidade da justiça. Isso não implica em contradição, portanto é possível pensar em um mundo assim.
Deus sendo onisciente e conhecendo todas as coisas, o homem como emanação de Deus, também é um ser livre e age livremente. Leibniz enfrenta um problema que é o de tentar conciliar a graça de Deus com um certo “determinismo” da parte de Deus. A discussão não é própria de Leibniz e remonta a autores medievais que discutiram largamente essas questões.
Segundo Leibniz, o homem peca porque age precipitadamente, mas esse acidente já fazia parte de sua composição. Leibniz resolve o problema da liberdade afirmando que ser livre é agir de acordo com a razão. Deus não determina que alguém vai pecar, o homem peca livremente. E peca livremente porque era possível que ele não pecasse. Segundo Leibniz, o homem pecou porque agiu precipitadamente, mas esse pecado é necessário para um bem maior.
Deus em Leibniz assume um papel central, uma vez que dependemos de Deus para viver e para todas as outra coisas. Ao dizer que o homem é uma emanação de Deus, Leibniz dá ao homem um status de criatura prima de Deus.
Há uma passagem bíblica que diz que os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento as obras de suas mãos. (Salmos 19:1). Leibniz afirma a mesma coisa ao dizer que olhando para o mundo conseguimos enxergar o criador. Essa idéia de Leibniz acerca desse vislumbramento do mundo reflete a perfeição da obra divina em todos os seus detalhes.
Concluindo: Leibniz com os seus mundos possíveis resolve um problema até então insolucionável que é o problema de como deve ser o mundo. O Deus perfeito de Leibniz cria todas as coisas com uma harmonia pré-estabelecida e dá aos homens tudo o que é necessário para que eles vivam bem. Infelizmente agimos precipitadamente, e segundo Leibniz, é por isso que pecamos, mas a graça de Deus faz com que esses nossos erros se convertam no melhor possível para nós.


quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

A insistência no sentido - Gideão




Uma das coisas interessantes sobre o texto bíblico é a sua insistência na não ausência de sentido do sofrimento. É como se o texto bíblico ousasse sempre afirmar que por mais tenso que possa parecer o momento enfrentado pelo  protagonista da história, sempre haverá um sentido para além do mero ocorrido. Podemos ressaltar diversos personagens, desde o principal deles, Jesus, até alguns outros como Gideão, Davi, Salomão, Raabe, Judas, João, etc. em todas essas histórias a insistência em afirmar o sentido para além do aparente sem sentido do sofrimento se faz presente.

Uma característica dessa insistência no sentido do texto bíblico é a de nos mostrar que, mesmo diante da dor mais forte, há sempre a possibilidade de esperança e nunca a opção do abandono. Quem não se lembrará do próprio Jesus na cruz clamando "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste" como um grito que aponta para uma suposta ausência de sentido em todo aquele sofrimento, mas que no final revela que o salto da fé ainda pode ser dado confiando o seu espírito a quem nunca o abandonou?

Paulo nos dizia que a paz de Cristo excede a todo entendimento e ao mesmo tempo o Eclesiastes nos afirma que há tempo para todo propósito debaixo do sol. A paz que excede o entendimento e a temporalidade que nos cerca parece nos remeter a uma dimensão curiosa da nossa relação com Deus. O Deus que nos transcende e que por mais que tentemos explicá-lo acabaremos apenas falando um pouco mais de nós mesmos e nossas convicções é o mesmo que só pode ser experienciado "debaixo do sol", ou seja, na temporalidade, na nossa finitude, na nossa existência no mundo. O sentido do aparente paradoxo se mostra para além da mera dicotomia entre transcendência e temporalidade. É como se em última instância só pudéssemos vislumbrar um sentido oculto quando percebemos que há algo que não entendemos. De alguma forma é como se o pensamento apressado fosse o que insistisse na ausência de sentido, enquanto o olhar detido buscasse incessantemente tal sentido. 

Um exemplo interessante é o das "provas de Gideão" para saber se Deus o havia escolhido mesmo para a tarefa descrito no livro de Juízes capítulo 6. A situação em Israel estava péssima, pois eles estavam sob domínio dos midianitas. Nesse contexto Gideão recebe a visita de um "anjo do Senhor" que afirma que Deus livraria Israel dos midianitas por intermédio de Gideão. Na história Gideão se mostra muito cético quanto a proposta do anjo e pede então um sinal para ter certeza de que Deus lhe enviara para derrotar os midianitas. Depois das duas provas serem satisfeitas por Deus, Gideão acredita e passa a guerrear para livrar Israel dos midianitas. 

A história de Gideão nos mostra um pouco disso que estamos falando sobre a insistência de sentido que o texto bíblico nos aponta. Aparentemente as provas de Gideão se mostram como infundadas, afinal, é um enviado de Deus que já realizou um milagre na sua frente quem está falando com ele; já está mais que "provado" que Deus estaria enviando Gideão de forma que pedir "mais duas provas" soa algo que nenhum ser humano faria diante de Deus. No entanto, a insistência de sentido se mostra no fato de que é a partir das provas que a temporalidade é capaz de transcorrer e Gideão é capaz de aceitar a tarefa que lhe tinha sido designada. Gideão precisa de tempo para assimilar a tarefa, e as provas dão a ele algo além da mera prova, mas dá a ele um tempo para pensar, refletir e finalmente se encorajar para a tarefa.O tempo é capaz de nos tornar corajosos e sábios para perceber qual a nossa tarefa e o quanto estamos preparados ou não para executá-la. 

Para além disso há o fato de que Gideão não passa do "menor na casa de seu pai", ou seja, é uma "escolha de Deus" extremamente sem sentido para um comandante de um exército no contexto bíblico. A suposta ausência de sentido se mostra também nesse fato de uma escolha pelo menos óbvio, pelo último, pelo fraco, mas nessa escolha o texto visa mostrar um sentido que aponta para o fato de que Deus é capaz de capacitar até o mais fraco, no momento mais difícil, no contexto mais desfavorável. A escolha de Deus e as provas de Gideão nos mostram essa insistência de sentido que aludimos mais acima.