sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Sobre o Reconhecimento e o Limite







Penso que o objetivo de todo líder que exerce uma função de guia deveria ser a de se tornar dispensável. à medida que vamos crescendo, amadurecendo, é preciso reconhecer que o outro também passa por este mesmo processo que nós passamos. O outro também vai se desenvolvendo, vai amadurecendo de forma que se antes sua ajuda era crucial em várias demandas, agora ela vai se tornando cada vez menos necessária.

Geralmente esta perda da dependência é vista por alguns como descaso, como abandono, como ingratidão frente a toda ajuda já prestada em momentos às vezes tão complicados, mas eu prefiro olhar como sendo uma espécie de corolário de um bom trabalho.

O fato de alguém não precisar mais de nós para resolver alguns dos seus problemas não indica que perdemos a importância para ela, significa apenas que tal pessoa está amadurecendo, e está se tornando apta para tomar suas próprias decisões a partir dela mesma. Sinal de amadurecimento.
Acredito que este tipo de relação seja muito próxima à relação que os pais estabelecem com seus filhos. Se desde o nascimento os pais são aqueles que ensinam, estimulam, mostram o caminho à criança de forma que ela tome boas decisões, saiba se portar no mundo, etc. quando esta criança começa a crescer, se transformar em adolescente, adulto, etc. e passa a tomar suas próprias decisões, este sentimento de abandono pode vir de forma muito forte. Daí várias vezes a tendência dos pais de tentar segurar ao máximo seus filhos próximos a si, de propor diversas "chantagens emocionais", insinuar a suposta ingratidão frente a todo sacrifício feito para que o filho chegasse a se estabelecer, etc. Uma atitude que demonstra certa imaturidade dos pais de não reconhecer o desejo do filho como um desejo autêntico, separado do desejo dos pais. O velho conflito geracional se dá muitas vezes neste contexto.

Penso que os pais devem aprender a se tornarem dispensáveis. Ou seja, aprender que seus filhos se tornaram pessoas capazes de tomar suas próprias decisões. Por mais erradas que sejam, por mais que se discordem delas, o ato de tomar tais decisões implica que algo do que foi ensinado permanece e foi condição de possibilidade para que isto acontecesse. A decisão tomada contra o nosso conselho, ainda assim é uma decisão de um ser pensante que por isso deve ser reconhecida em todo o seu valor simbólico.

Obviamente há diversas decisões que as pessoas tomam que achamos estúpidas, que nós mesmos não faríamos, que sabemos por diversos motivos que trará prejuízos enormes a longo e talvez a curto prazo, decisões que colocam o indivíduo em diversos problemas que ele não precisaria enfrentar se apenas te ouvisse em um conselho. Mas mesmo assim, a decisão do indivíduo tem todo o valor de uma tomada de atitude que, dependendo do grau da atitude, demonstra todo o amadurecimento do outro.

Este reconhecimento do desejo alheio, da dimensão do diferente, é um sintoma de amadurecimento para todo aquele que exerce alguma função de liderança, paternidade, maternidade, pastoreio, etc. Reconhecer que o desejo do outro é diferente do meu, que a forma de ver do outro é diferente da minha, ver que as decisões a seu ver erradas tomadas por seus amigos ainda assim são decisões dignas de respeito é sinal de maturidade.

Curiosamente dentro das igrejas evangélicas tal amadurecimento é muito pouco estimulado. A dinâmica pastor/ovelha se torna paradigmática do membro que geralmente permanece infantilizado diante da tomada de decisões. Não é raro vermos diversos membros que precisam do aval do pastor para tudo. O pastor substitui o "pater familis" de onde provém toda a palavra positiva ou negativa. Incapaz de tomar uma decisão, o membro precisa da aprovação do pastor para tudo, e obviamente isto gera uma relação de dominação entre pastor e membro que muitas vezes nunca é desfeita.

Esta relação de poder favorece o domínio do pastor, a manipulação em nome de interesses escusos como várias vezes vemos sair na mídia. A infantilização do membro, que se recusa a crescer, é incentivada pelo pastor. E a própria nomeação da relação como sendo "pastor e ovelha" favorece tal dinâmica da dominação. Escrevi sobre isto aqui.

O pastor não quer se tornar dispensável, pois a partir deste lugar assumido por ele, sua própria identidade se estabelece, e ao mesmo tempo a identidade do membro fica totalmente submetida à identidade do pastor...

Esta mesma relação pode ser vista na relação "Homem-Deus". Não raro vemos que Deus acaba se colocando como projeção da figura paterna (como já nos mostrou Freud muito bem) onde de alguma forma faz com que tudo dependa Dele. Esta suposta dependência infantil do homem para com Deus se torna várias vezes um grande entrave para que esse homem se desenvolva. Acredito que o propósito de Deus esteja muito bem resumido nas palavras do Cristo que nos dizia: "não os chamo mais servos, mas sim amigos". Não uma relação infantilizada, mas uma relação adulta, uma relação de amizade para com Deus. Ou seja, uma relação onde eu vejo a Deus como um amigo, e não como alguém de quem eu dependa o tempo todo para qualquer coisa. Um Deus que não está sempre disponível é algo impensável para a maioria das pessoas. (Este tema é interessante e talvez um novo texto no blog trate deste assunto)

Assim como dito no começo deste texto, os amigos também podem exercer uma função "paternal" em relação aos outros. Lacan mesmo já nos mostrou que na época da evaporação da figura paterna na contemporaneidade, basicamente qualquer indivíduo pode assumir a função paterna perante outro indivíduo. Os amigos várias vezes se tornam nossos pais, mães, irmãos mais velhos, etc. Obviamente apenas alguns dos nossos amigos exercem esta função, e como ela se desenvolve varia bastante caso a caso.

Uma relação adulta entre amigos, pais, liderança  passa pelo reconhecimento do desejo do outro como diferente do meu. Sem este reconhecimento temos a enorme tendência de querer colocar todas as pessoas próximas a nós como iguais a nós mesmos, querendo impor a eles uma certa visão de mundo que o outro não compartilha. Obviamente que há tantas visões de mundo quanto há pessoas no mundo, no entanto não podemos cair na grande falácia contemporânea do relativismo de forma a pensar que todas as visões de mundo são igualmente válidas pelo simples fato de serem visões de mundo de seres singulares. Tal relativismo nos conduz não a um reconhecimento do diferente, mas a uma igualação de todos os pontos de vista sob a égide de um único ponto de vista.

O relativismo acaba nos levando para a ausência de limites, o que é visto por muitos como um grande lucro na contemporaneidade acaba por se mostrar como um grande promovedor de um gozo cego e sem limite que não dá lugar para o nascimento do desejo, nos colocando como meros animais na busca de satisfação. Algo muito bem explicado pela psicanálise é que o desejo só nasce a partir do limite. A partir da interdição da lei da palavra surge no homem o desejo. Lei e desejo humaniza o homem, e isto cada vez mais tem se perdido na contemporaneidade onde o grande imperativo se torna a ausência do limite como forma de satisfação do homem.

Reconhecimento e limite: Duas palavras que precisam ser retomadas na contemporaneidade em toda a sua acepção de humanização do sujeito.

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