quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

O lava pés e o bom samaritano - Reflexões esparsas sobre o amor cristão




"Senhor, tu lavas-me os pés a mim?" João 13:6
"Qual, pois, destes três te parece ter sido o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores?"
Lucas 10:36


Muito se fala sobre o amor dentro do cristianismo e realmente é algo que deve sempre ser falado , afinal esse é o núcleo de toda a proposta cristã. Queria fazer uma breve reflexão sobre esses dois versículos que coloquei no início desse texto.

Em relação ao primeiro versículo, ele nos remete a uma cena muito conhecida no cenário cristão que é a cena do lava pés. Neste episódio, Jesus, próximo à Páscoa, se propõe a lavar os pés dos seus discípulos antes de comer a refeição com eles, o que gera uma grande estranheza em todos. O primeiro versículo é uma fala de Pedro se colocando veementemente contra a proposta de Jesus no momento.
Logo após esse episódio, Jesus afirma que um dentre os discípulos o trairia, o que nos remete à simples ideia de que qualquer um a qualquer tempo pode nos ferir mesmo depois de termos feito o melhor que pudéssemos fazer.

Nem todo serviço gera uma obrigação de retribuição e talvez por isso a proposta do amor gratuito do Cristo. Mesmo lavando os pés de seus discípulos, os alimentando, os escolhendo, os transformando em pessoas de destaque nas regiões vizinhas, trazendo uma dignidade maior a eles,  ainda assim um dentre eles o trairia. Ou seja, a gratuidade do nosso amor nem sempre leva o outro a me retribuir pelo que fiz, mas isso em nada invalida o meu amor pelo outro.

Outro exemplo muito bom dessa proposta de amor gratuito do Cristo reside na parábola do bom samaritano que provavelmente todos já ouvimos em algum momento da nossa vida. A parábola do bom samaritano conta a história de um homem que estava caminhando por um determinado caminho quando é assaltado por um grupo que o machuca e o deixam semi-morto caído à beira da estrada. Passam por ele um levita, um sacerdote que não o ajudam, mas depois passa um samaritano que o ajuda  e cuida dele com todos os cuidados possíveis.

Algo interessante na parábola do bom samaritano é o fato de que o que gerou a parábola foi a pergunta de um doutor da lei . A pergunta era "o que farei para herdar a vida eterna" ? Pergunta simples, mas ao mesmo tempo complexa, que ao mesmo tempo revela uma dinâmica de preocupação com a lei por parte do doutor (a qual Jesus sacia ao mostrar que o que o doutor anda fazendo está realmente de acordo com a lei),  mas ao mesmo tempo revela uma dinâmica bastante infantil de encontrar uma resposta totalizante para toda a ação possível. O anseio de um caminho único por onde eu possa trilhar e ter a certeza de que por ali nenhum mal me tirará dele. Desejo infantil de onipotência. (Desejo esse que Jesus não sacia).

No final da parábola, Jesus pergunta ao seu interlocutor: "Quem foi o próximo daquele que foi ferido?" Pergunta bem estranha se notarmos que o que gerou a parábola foi a pergunta "O que farei para herdar a vida eterna?" Esperaria-se que se perguntasse quem foi o próximo para o samaritano e não para o ferido. O ferido não fez nada a não ser aceitar o amor proposto pelo samaritano.  Ao perguntar quem foi o próximo para o ferido, Jesus está mostrando que o amor ao próximo não consiste sempre em um "fazer  para o outro", mas inclui o "deixar que o outro faça algo por mim". Uma proposta onde o amor fosse sempre ativo daria ao doutor da lei a impressão de que a vida eterna é alcançada dentro da dinâmica da retribuição. No entanto, Jesus aponta para a dimensão da passividade do amor que deve ser recebido em alguns momentos da nossa vida. Amor como dom imerecido, do qual nada precisamos fazer para merecer, que  nos garante uma identidade enquanto humanos, que não visa retribuição. Amor que supera uma mera dimensão narcísica projetiva que me leva sempre a me amar no outro. O deixar o outro fazer algo por mim  permite que unamos amor e graça.

Esse exemplo de amor também é visto no episódio do lava pés que Jesus faz com seus discípulos antes do anúncio que um deles o trairia. Pedro se coloca veementemente contra a proposta de Jesus lhe lavar o pé, demonstrando dessa maneira esta dificuldade em "deixar o outro fazer algo por ele", e a resposta de Jesus remonta novamente a esta passividade exigida pelo amor. "Se eu não lhe lavar os pés, não tem parte comigo." Ou seja, "se não me deixar ser aquele que faça algo por ti, você será como alguém que quer apenas polarizar a relação me tornando sempre alguém abaixo de ti."

Para que amemos um ao outro a igualdade tem que estar pressuposta. Apenas dessa forma o próximo pode ser amado como a mim mesmo não meramente como projeção narcísica, mas para além dela.  Tomar o amor sempre como algo ativo não raras vezes me causa a ilusão de que posso estar no controle da situação, posso sempre ser aquele do qual os outros dependem sem nunca precisar depender de alguém e sabemos que o amor passa longe dessa dinâmica. Para isso basta lembrarmos que o grande ato de amor do Cristo foi uma entrega. Um ato que remete a um deixar-se.

No lava pés, Jesus nos demonstra a dimensão do amor que  faz pelo outro sem esperar nada em troca, ou melhor, que faz pelo outro mesmo sabendo que algum dos próximos poderia o trair em algum momento. É uma atividade visando o bem do próximo. Na parábola do bom samaritano, Jesus nos mostra que o amor também possui uma dimensão passiva, que é o fato de "deixar o outro fazer algo por mim", que me tira da tentação de estar sempre no controle da situação e me coloca como um igual diante do meu semelhante.

Ao unirmos esta duas dimensões do amor que Jesus nos coloca somos capaz de entender em que consiste o amor cristão. É um amor que não visa apenas a um "acúmulo de atos", mas visa uma dimensão passiva, que coloca o outro no centro da proposta, mas agora não apenas um outro a quem devo sempre ajudar, mas a um outro que me constitui como sujeito a partir do momento que me deixo ser amado por ele.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Horácio ?





Horácio era um homem complicado, mas era um bom homem. Nele não havia nada demais que o pusesse acima da média, nem nada de menos que o colocasse abaixo dela. Era um homem normal, sem muitas qualidades e também sem muitos defeitos. Ou talvez as suas qualidades se equiparassem aos seus defeitos e todos ficavam com a sensação de um grande zero a zero.

Todos gostavam do Horácio. Ele era simpático, conversava bem; não era de tanto assunto assim, mas geralmente tinha alguma contribuição a fazer em assuntos variados. Alguns diria até que ele era um sujeito conversado que atraía as pessoas para si.

Aparentemente nada incomodava Horácio. O seu senso de normalidade espantava muita gente que o tinha como talvez um grande cosmopolita para quem pouco importavam as diversas moralidades contando que ao seu redor as coisas estivessem minimamente em ordem. Isso obviamente fazia com que fosse um sujeito agradável na maior parte do tempo. Raríssimas vezes vi Horácio tecer algum comentário mais taxativo ou de cunho moralista sobre algum assunto. A última coisa que ele queria era parecer um sujeito "mente fechada". Às vezes fazia um esforço Hercúleo para parecer não se importar com as coisas, mas geralmente surtia efeito. Pelo menos não incomodava muita gente com esse tipo de conversa.

Horácio teve uma boa criação cristã. Era filho de pai protestante e mãe católica. Cresceu a maior parte da sua infância dentro da igreja protestante pois sua mãe, apesar de ter a sua vivência de fé, não apreciava muito a igreja próxima à sua casa e por isso ia raras vezes. O pai por ser mais assíduo à igreja sempre levava Horácio para a escola dominical e o fazia ler minimamente os textos bíblicos. Seu pai era diácono na igreja e por isso sempre fazia questão de que Horácio o seguisse aos cultos. Não era daqueles que ia a todos os cultos, mas nos finais de semana sempre marcava presença. A formação protestante de Horácio foi feita em uma igreja nem tão fundamentalista, mas também nem tão liberal. Diria que o aspecto "morno" da igreja em que cresceu tenha contribuído para a forma de Horácio lidar com sua vida posterior.
Um excesso de apatia acometia Horácio de vez em quando de forma que ele ficava como que indiferente ao mundo e não raras vezes tentava aplicar alguma teoria a algum tipo de experiência que estava vivendo. Geralmente não obtinha sucesso nesse tipo de empreitada.

Trazia consigo o peso da criação cristã. Esse era talvez um grande fardo para ele em vários momentos. À medida que foi crescendo foi aprendendo a lidar com essa culpa que o consumia, mas no momento atual de sua vida estava longe de obter êxito com esse problema e também podemos dizer que não estava tão preocupado assim com a questão. O que o incomodava, pelo que me disse recentemente, era uma certa sensação de vazio, um certo incômodo em relação a si mesmo que já vinha tentando lidar há algum tempo. Na maior parte das vezes vivia como se isso não fosse tão grande problema, mas de vez em quando caía em uma espécie de "reflexão" que o levava a devaneios existenciais. Ele não levava jeito para tais devaneios e por isso rapidamente desviava a cabeça para outra coisa.

Enfim, Horácio era um homem bastante normal que tinha como todo mundo certas crises existenciais às quais dava pouca atenção por achar que isso era coisa meio besta para se perder tempo, mas nem por isso poderíamos dizer que era um cara "superficial", afinal, ele tinha lá seus "insights", suas opiniões sobre as coisas, etc. Não sei porque resolvi falar da vida do Horácio nesse momento, mas sempre o achei um cara interessante e talvez por excesso de ócio e falta de assunto resolvi trazê-lo ao conhecimento dos demais. Quem sabe não fale mais sobre Horácio algumas outras vezes?

Confeso que eu não me surpreenderia se através de algumas vivências do Horácio descobríssemos um pouco de nós mesmos, nossos medos, esperanças, etc.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Uma companhia implacável





A tristeza que o assolava era sempre a mesma. Antiga companheira que há muito o acompanhava sem que nada e ninguém a fizesse sair de perto dele. Como uma sombra que sempre o seguia.

Implacável.

Nele sempre batia uma saudade que ele não sabia do que, uma vontade de tudo e nada ao mesmo tempo. A angústia o atormentava como se nada além dela importasse mais.

No meio da angústia ele procurava por todos os lados algo que nem mesmo sabia o que era. Olhava ao seu redor como quem procurava um algo desconhecido, mas que já presenciou alguma vez. Enquanto procurava, nada mais parecia fazer sentido, e em pouco tempo desistia da busca. Ele já sabia em sua mente que essa busca é vã, mas nem por isso de tempos em tempos voltava a se lançar sobre ela.

Novamente ele para, pega o celular e tenta se confortar com alguma notícia, alguma atualização. Olha, mas tudo parece tão monótono, tão sem vida que é como se tal atitude ao invés de o alegrá-lo apenas o fizesse mergulhar mais em si mesmo.

Ele espera que algo aconteça. Que alguém diga algo, mas ninguém nunca diz. Ou melhor, ninguém importante nunca diz algo. Pessoas estão sempre dizendo algo o tempo todo, mas nem por isso quer dizer que estejamos a fim de ouvi-las. E para o nosso sujeito, são raras as vezes que alguém diz algo que ele esteja minimamente disposto a ouvir.

Paradoxalmente ele possui inúmeros amigos nas redes sociais, vários seguidores em seu twitter, compartilha inúmeros vídeos, notícias, etc. mas nada disso faz com que ele sinta minimamente melhor em relação ao que sente. Sofre do mal contemporâneo do excesso de compartilhamento e o mínimo de troca simbólica. Talvez por isso se encerre em si mesmo se externando no vazio da internet, onde se cria facilmente a ilusão de uma companhia  perene.

Na busca de companhia, toda hora precisa olhar para o seu celular para ver se chegou alguma mensagem, se o ícone do whatsapp está em algum lugar,  se alguém curtiu alguma coisa, comentou algo, retweetou outra coisa, etc. Neste frenesi que o assola, novamente se vê mergulhado na solidão e nada parece aplacar a angústia e a tristeza que sente. Lá esta ela de novo o seguindo.

Implacável.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Deus e a Amizade - Uma proposta teológica







Sempre haverá dias piores que outros. Feliz é aquele que durante as inúmeras tormentas da vida pode ser acompanhado por amigos.

Mesmo que a tormenta pareça não passar nunca, ainda assim a presença desse outro, (ou desses outros) fará com que a a água que cai não fira como canivete cortante, mas seja vista como um possível refrigério para o corpo e para a alma abatida.

Os amigos às vezes me lembra a figura judaico/cristã de Deus. Eles trazem a existência coisas que não existem. Do nada eles dizem: "Haja luz" e o mundo antes "sem forma e vazio" se transforma em possibilidades, em vida, etc.

A chuva que castigava se transforma em orvalho que rega
O vazio se preenche pela palavra da esperança
As trevas se dissipam pela chegada da luz

Tudo isso pelo simples poder da palavra. Talvez daí possamos entender um pouco as palavras dos salmos reproduzidas pelo Cristo, "sois deuses". O Deus que conheço acaba por remeter a esse outro que age como quem cria, que tem no momento uma esfera de ação maior que a minha, mas nem por isso me abandona ou age como os deuses de Epicuro que estão preocupados apenas com seus afazeres.

Esse deus se assemelha muito mais ao "Deus dançante" de Nietzsche, ao deus "pai que ama" do Cristo. Deuses dispostos a caminhar conosco, dançar conosco, chorar conosco, dispostos a nunca nos abandonar por mais difícil que seja a caminhada.

Talvez isso seja o mais próximo que consigo pensar sobre Deus hoje. Um deus que se faz presente não como "entidade metafísica", mas como ser que caminha, que dança comigo. Penso que Jesus ao dizer "não vos chamo mais servos, mas amigos" propunha subverter a relação imaginária proposta pelos discípulos em relação a ele. A proposta estava agora não mais pautada em uma subserviência pautada no medo/culpa, mas em uma relação baseada na igualdade entre as partes. A distância antes tão marcada é mitigada na relação da amizade.

Mostrando esta dimensão da amizade, Jesus propõe uma nova visão sobre Deus. Não o Deus projeção do pai severo, mas Deus como ser próximo que caminha comigo, um deus que por isso sempre está comigo, que permite ao salmista dizer que "ainda que ande pelo vale da sombra da morte" ele não temerá mal algum.

Em Jesus realmente Deus se encarna, torna-se homem, mas não penso que isso seja do ponto de vista literal. Penso que Deus se humaniza na figura do Cristo, e a partir dessa humanização, ele nos mostra que somos capazes sim de vivermos com Deus  não de uma forma distante, mas de forma próxima. Dessa forma, Deus não se torna mera projeção humana como propunha Feuerbach, nem ao mesmo tempo uma entidade metafísica distante. Penso que na proposta do Cristo, Deus se torna esse amor que nos move em direção ao outro, pois vemos nesse outro um pedaço desse Deus perdido tipificado na história do Éden.

Talvez a amizade, além de ser uma condição para a vida feliz como já nos dizia Aristóteles, seja um bom paradigma para pensarmos a relação homem/Deus. Fica aqui talvez uma proposta teológica...