sexta-feira, 25 de junho de 2021

Uma pequena sistematização das vertentes do protestantismo

 

Igreja Anglicana da Dinamarca

 

Esse texto surge como resposta a um pedido de uma querida aluna depois de algumas aulas sobre o tema do protestantismo. Desta forma, me propus a fazer uma pequena sistematização sobre as vertentes do protestantismo que essa querida aluna me solicitou.



O protestantismo começa com Lutero no século XVI (1517) com as suas 95 teses contra a igreja católica que desembocou no movimento de ruptura de Lutero com a Igreja. Sabemos que Lutero nunca quis sair da igreja católica, mas propunha uma reforma, pois via que a Igreja tinha se afastado dos princípios básicos do cristianismo. 

Lutero era agostiniano, então a sua visão sobre o homem, sobre o pecado, sobre o livre-arbítrio eram basicamente agostinianas, ou seja, na visão luterana, o homem nasce com o pecado original que é fruto do pecado de Adão, o livre-arbítrio depois da queda não pode ser entendido de maneira ampla, e o homem é um pecador já quando nasce devido ao pecado de Adão que todos teriam herdado. A salvação é fruto exclusivo da graça de Deus e o homem está de alguma forma já predestinado à salvação ou à perdição. Hoje temos em BH a igreja Luterana do bairro Serra que é liderada por uma pastora lésbica. 



Calvino é um dos reformadores que leva o protestantismo  para a França e lá se torna a grande figura propagadora da reforma luterana. Os pontos defendidos por Calvino são basicamente os mesmos de Lutero, no entanto Calvino é um pouco mais hard em relação à condição de pecado do homem, o que o calvinismo chama de “depravação total”, ou seja, o homem é impossibilitado de fazer o bem por si só, mas apenas pela graça de Deus ele é capaz de fazê-lo. Do ponto de vista da relação com a Igreja Católica, enquanto Lutero propunha uma reforma da Igreja, Calvino se mostrava bastante cético se isso seria possível, e não queria uma reforma, mas sim uma nova Igreja dos moldes da Igreja Primitiva. Os grandes representantes do Calvinismo hoje no Brasil são os presbiterianos. O presbiterianos são de origem calvinista e mantém basicamente as doutrinas de Calvino para os dias atuais, ou seja, a noção de predestinação, depravação total do homem, etc. Não preciso dizer, obviamente, que esses grupos não são homogêneos, ou seja, dentro dos presbiterianos há diversas vertentes, assim como dentro do metodismo, do anglicanismo, etc. (Só pra vc ter ideia, a primeira igreja presbiteriana de BH, ali na Rua Ceará é extremamente fundamentalista, ao passo que a segunda igreja presbiteriana, ali no Barro Preto é mais liberal, e a oitava igreja presbiteriana ali perto do Minas Shopping já caminha de braços dados com o neopentecostalismo)



Jacó Armínio, de onde deriva o termo “Arminianos” era um teólogo holandês que se colocou contra a doutrina calvinista de depravação total e predestinação da salvação. Para Armínio, o livre-arbítrio do homem poderia sim fazê-lo “optar” pela salvação, ou rejeitá-la, i.e., a presciência de Deus não era predestinatória. Na visão arminiana, o homem não nasce predestinado à salvação, mas ela é fruto do livre-arbítrio do homem, embora também fruto apenas da graça divina. Armínio não defendia o pelagianismo, mas mantinha a noção de graça salvífica de Deus, mas sem manter a noção de predestinação a la Lutero e Calvino. 

 

Os pontos principais da disputa entre Calvino e Armínio podem ser vistos aqui (que está excelente nesse tópico)



Esses debates todos datam do século 16 e início do século 17 entre Alemanha, França e Holanda. Duraram bastante tempo e por questões históricas/políticas/sociais geraram várias outras questões. 



O Anglicanismo é uma vertente que mescla a Igreja Católica com a Igreja reformada, e é fruto do casamento do Rei Henrique VII  com Catarina de Aragão. Essa história é bem conhecida por vc com certeza. Via de regra, do ponto de vista teológico a igreja Anglicana se mostra um pouco mais “aberta” que o Calvinismo e se coloca como um meio-termo entre o protestantismo e o catolicismo. Do ponto de vista teológico ainda os anglicanos são bastante liberais e isso tem feito com que geralmente eles estejam na vanguarda de diversos temas contemporâneos como casamentos homoafetivos, ordenação de mulheres aos cargos de liderança, etc.



O metodismo foi fundado por John Wesley que era membro da Igreja Anglicana. Wesley não queria sair da igreja anglicana, da mesma forma que Lutero não queria sair da Igreja Católica, mas por diversos motivos acabou sendo desligado do anglicanismo. A proposta metodista é diretamente ligada à reforma protestante e por ser derivado do anglicanismo também se mostra uma igreja um pouco mais aberta do ponto de vista teológico. O metodismo surge no século 18 e já é fruto de um desenvolvimento do protestantismo. Entre Calvino e Armínio, a doutrina metodista se apóia nas ideias de Armínio, ou seja, defende que a salvação é, conforme o ensino bíblico, baseada na Graça de Deus, que atua em três dimensões: Graça Preveniente (preparando para a salvação), Graça Justificadora (concedendo o perdão) e Graça Santificadora (renovando a natureza humana corrompida); o alvo é a plena santificação e a perfeição cristã (amor perfeito a Deus e ao próximo). Ser santificado não é ser como Deus, e sim tornar-se mais humano, ou seja, obedecer ao plano original que Deus tinha para o Ser Humano.



Igrejas Batistas são diversas denominações cristãs, com forma de governo congregacional, cuja doutrina básica se dá na salvação mediante a fé somente, tendo como regra de fé e prática a Bíblia Sagrada,. As igrejas batistas não possui hierarquia, tampouco governo único, visto que é princípio da maior parte das Igrejas Batistas o governo local da Igreja. Os batistas entendem haver duas ordenanças de Jesus Cristo: a Ceia do Senhor e o Batismo, sendo que este último só é realizado mediante a imersão do indivíduo na água, já em idade suficiente para ter consciência do ato e desejá-lo por iniciativa própria.A Igreja Batista é uma denominação histórica, cujas origens remontam à Inglaterra no início do século XVII. Tornou-se, com o tempo, uma das mais importantes denominações protestantes, com muitas igrejas na própria Inglaterra e também nos Estados Unidos, de onde missionários foram enviados a todas as partes do planeta. No Brasil, os primeiros missionários chegaram cerca de 150 anos atrás, tendo fundado, desde então, igrejas de Norte a Sul no país.

 

É sem dúvida o ramo protestante mais famoso no Brasil e o mais difundido. E talvez por isso seja o que tem mais tipos diferentes dentro de si. Há igrejas batistas que adotaram o neopentecostalismo (aqui em BH, por exemplo, a Batista da Lagoinha, Getsêmani, Batista Central, etc.), há batistas tradicionais como a primeira igreja batista do Barro Preto na praça Raul Soares, etc. Pelo fato de não ser centralizada, nem ter nenhum tipo de liderança (há pequenas convenções, mas com alcance muito limitado) as igrejas batistas são extremamente múltiplas e de visões teológicas extremamente diferentes. 

 

Bem, aí está de maneira bem sistemática as denominações chamadas de “protestantes” na contemporaneidade. Percebe-se que nas denominações históricas, o debate entre Calvino e Armínio é determinante para a teologia de cada denominação, mas à medida que o tempo vai passando esse debate vai ficando um pouco mais esquecido e as teologias das igrejas vão se atualizando. Do ponto de vista teológico esse debate é importantíssimo e determina muitas posições sobre diversas questões, mas diversos pontos contemporâneos não são contemplados por esse debate (obviamente, pois no século 16,17,18, o debate é outro). 

 

O que a teologia sempre deve estar atenta é ao dançar dos tempos para que possa dar respostas novas a debates atuais.


terça-feira, 7 de julho de 2020

Não roubarás - Elementos para pensar um critério ético





O que acho extremamente estranho dentro de uma ética consequencialista é o fato de que na maioria das vezes não se percebe que o critério utilizado por essa lógica não se sustenta para uma vida em comunidade. Para além disso o problema de uma ética consequencialista é o fato de eliminar questões qualitativas do debate ético. Questões estas que sabemos serem na maior parte das vezes cruciais para um debate ético. 

Li o artigo do Schwartzman que se baseia plenamente em uma visão bastante simples de uma ética utilitarista (que envergonharia talvez o próprio Bentham), mas que mantém a noção básica de como se deveria julgar uma ação ética. Ou seja, o princípio adotado pelo Schwartzman (que acredito estava pensando em Bentham ou Mill) é de que "uma ação é boa se promove um maior bem para o maior número de pessoas, ou um menor mal para um menor número de pessoas." Dessa forma, o critério defendido pelo Schwartzman pode-se dizer que é apenas quantitativo. 

Algo que já é apontado por diversos críticos de uma ética utilitarista é o fato de que o critério quantitativo é extremamente frouxo para tratar de questões éticas. Ninguém preferiria que sua mãe morresse (a não ser que se tenham seríssimos problemas edípicos envolvidos) para servir como exemplo para ninguém; da mesma forma que ninguém acharia válido que devêssemos matar um número considerado pequeno de pessoas em nome de um bem maior. Mesmo porque, não precisamos ser muito perspicazes para lembrar que o próprio nazismo via o sacrifício de judeus, homoafetivos, etc, como uma parcela que deveria ser morta em nome de um mundo melhor (que seria necessariamente um "bem maior"). 

Da mesma forma o critério utilizado por Schwartzman é extremamente difícil de ser universalizado, pois será que estaríamos dispostos a encarar os problemas éticos sempre dentro de uma ótica utilitarista? Não podemos (sob pena de sermos desonestos) mudar os nossos critérios éticos de acordo com a situação, ou seja, não podemos defender critérios utilitaristas em algumas questões, critérios deontológicos em outros, uma ética das virtudes (a la Mcintyre relendo Aristóteles) em outros. A própria noção de "critério ético" elimina esses saltos entre as teorias. Essa talvez seja uma das grandes dificuldades das questões éticas hoje, a perda do pensar os fundamentos de uma ação ética, onde eles estariam embasados, etc. 

Recentemente me vi nessa questão diante de saber se devo ou não cancelar minha matrícula da Smart Fit uma vez que se descobriu que o dono da rede apoia Bolsonaro e está envolvido nas redes de fake news. Em uma análise extremamente rápida a resposta se torna bastante óbvia, ou seja, algo como, "é claro que se deve cancelar, pois você estará financiando fake news, e você não pode fazer isso", de forma que  um problema que deve ser pensado de maneira um pouco mais detida se torna apenas mais uma "ação a ser tomada." A questão que me coloquei foi "qual será o critério que usaria para cancelar a minha assinatura da Smart Fit?" Será que estaria disposto a fazer isso com todas as outras coisas pelas quais pago? E se eu descobrir que o Mc Donalds financia fake news na Tailândia, eu vou deixar de comprar Mc Donalds em nome desse critério? Vou passar agora a investigar tudo que consumo para saber qual critério utilizarei? 

Voltando para o caso do presidente estar com COVID-19 e eu acreditar em um critério utilitarista. Será que eu estaria disposto a aplicar esse critério para todas as situações em que a doença de alguém está envolvida? Com certeza um parente doente terminal amado pelos seus dá muito mais despesa, gera muito mais angústia, dor, aflição para as pessoas ao seu redor de forma que seria o mais certo simplesmente solicitar a morte do parente enfermo a gastar uma montanha de recursos para manter alguém vivo. Mas é assim que se mede uma questão ética? São os valores financeiros, quantitativos que serão usados nesse processo? Não estaria aqui a mesma dinâmica de uma ética extremamente alinhada com o capitalismo contemporâneo de que nada do que não gere "lucro", nada que não gere "bem-estar" deve ser evitado? Não estaria no critério de uma ética utilitarista a recusa de pensar um pouco mais detidamente a questão colocada?

Não é exatamente uma ética utilitarista proposta por Schwartzman que é a responsável pelo despejo de inúmeras famílias em nome da construção de rodovias? Afinal, a rodovia promoverá um bem muito maior para mais pessoas, e se para isso for necessário deixar sem abrigo 200 famílias, ainda assim é o mais correto a se fazer em nome do bem maior. Será que estamos dispostos a defender a desapropriação de famílias e nome de rodovias que beneficiarão mais gente? É neste sentido que acho que a questão de Schwartzman é bastante mal colocada, pois ao invés de investigar "por que colocamos o problema dessa forma" simplesmente trata o problema como sendo algo já dado. E aqui que penso entrar uma tarefa crucial da filosofia; muito além de simplesmente fazer as perguntas, penso que a filosofia deve se colocar algo anterior que seria algo mais ou menos como "por que estou colocando a pergunta dessa forma? A minha pergunta já não é ela mesma parte do problema?" Aqui que penso estar a pergunta mais central a ser feita. E a meu ver o Schwartzman erra drasticamente a pergunta. 

Dessa forma acredito que pode-se defender ou não a morte de Bolsonaro por COVID-19, no entanto, se formos usar um critério ético, que mantenhamos ele diante das situações que se colocam para nós. Uma frase que comentei muito entre meus alunos de ética nesse semestre na faculdade em que ficamos um semestre inteiro debatendo apenas uma questão é a de que "não podemos roubar nos critérios éticos", ou seja, ou adotamos um critério, ou adotamos outro critério, de forma que mudar de critério de acordo com a situação é o que chamávamos de "roubar", e tivemos boas oportunidades de ver como que é fácil roubar nestas questões. O meu convite é para que não se roube nessas questões. Quando começamos a pensar de fato no problema ético percebemos que é muito mais complicado do que a proposta que Schwartzman tenta defender. 

quinta-feira, 9 de abril de 2020

2 Coríntios 5,21 - Um texto para a Páscoa






"Deus tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado, para que nele nos tornássemos justiça de Deus." (2 Cor 5,21)

Esse texto é extremamente interessante a meu ver e coloca aspectos muito bons da teologia paulina . A perícope que se inicia no versículo 11, se estendendo até o primeiro versículo do capítulo 6 é  um belíssimo texto que tem como ênfase a proposta do amor de Cristo que nos constrange, pois a princípio isso seria completamente "injusto". Um que morre por todos. 

No versículo específico que abre esse texto se evidencia um tema que é caro a Paulo que é a questão da especificidade e não-especificidade de Jesus. Especificidade na medida em que é em Jesus que os homens são reconciliados com Deus, não especificidade na medida em que se aplica a todos os homens. Algo interessante a se ressaltar é que não há nesse momento do cristianismo a noção de "pecado original" (conceito esse formulado só posteriormente por Agostinho). Jesus como "aquele que não conheceu o pecado" neste momento não tem em mente a noção do pecado original, como alguém que "nasceu puro" diferente dos outros homens e por isso teria feito tudo o que fez, pelo contrário, a ideia de que Jesus não conheceu o pecado tem a ver com o fato de que Jesus sempre teria feito o que é correto ao ponto de poder ele mesmo servido como redenção dos filhos de Deus.

Para além de uma "ontologia cristológica", o que o autor tem em mente aqui é muito mais atentar para o caráter do modo de vida de Jesus, que como alguém próximo a Deus foi capaz de viver sem pecado, de forma que o próprio Deus o exaltou, o ressuscitando dentre os mortos. Aqui talvez ainda esteja em jogo uma cristologia bastante "humana", por assim dizer. Jesus é um rabi de Israel que viveu de acordo com a vontade divina e por isso Deus o ressuscitou como testemunho da salvação vindoura. Na medida em que Jesus é aquele que assume a morte de cruz mesmo sem ter cometido nenhum pecado, ele o faz pecado por nós; ou seja, Jesus como aquele que aparece como mediador entre os homens pecadores e o próprio Deus. 

O que está em jogo nesse momento é afirmar que a ressurreição de Jesus coloca a sua morte sobre outra perspectiva. Na teologia paulina é a ressurreição a chave de leitura para a vida de Jesus e não o contrário. Por isso que a Páscoa é o cerne do cristianismo. É porque Jesus ressuscitou que é preciso que entendamos em que medida a sua vida fez a diferença para aqueles que o rodeiam. Por isso que Paulo pode dizer que "se Cristo não ressuscitou é vã a nossa fé." (I Cor 15,14). Para Paulo é a ressurreição que coloca um novo olhar sobre Jesus, o Rabi que andou pela Palestina no século I. É porque ele ressuscitou que uma nova pregação é possível, um novo olhar sobre o Antigo Testamento é possível. E é exatamente esse o movimento paulino que funda o cristianismo. O fenômeno da ressurreição nesse momento é crucial para que o cristianismo surja, e o próprio judaísmo surja enquanto proposta diferente do cristianismo. 

Durante muito tempo a ideia de que "Jesus se fez pecado por nós" foi entendida como Jesus como aquele que "expia" o pecado. Aquele que "oferece-se como sacrifício" dentro de uma lógica retributiva. Essa leitura é clássica em Santo Anselmo e a sua teoria da satisfação no qual um pecado da magnitude do pecado de Adão necessitaria de um sacrifício de igual magnitude, ou seja, um cordeiro santo que não pecou seria aquele que seria capaz de satisfazer o próprio Deus e para isso a justiça seria feita. No entanto, não parece ser esse o intento do autor da carta de 2 Coríntios, uma vez que a doutrina da Graça paulina vai exatamente contra uma doutrina retributiva do AT. Dentro da doutrina da Graça em que medida Jesus se torna "justiça de Deus"? 

A resposta para essa questão é dada no início da perícope em que Paulo afirma que o amor de Cristo nos constrange (2Cor 5,14), ou seja, a justiça não tem a ver com uma punição que Jesus estaria encarnando, mas um ato de amor, no qual ninguém além de Deus é o responsável. Por isso que para Paulo na morte de Jesus, Deus está reconciliando consigo mesmo os homens não levando em conta os pecados dos homens. Esse ponto é crucial. A morte de Jesus e a sua ressurreição não está envolta em uma dinâmica sacrificial em que algo é imolado para que o preço seja pago, mas está fundada simplesmente no amor de Deus que em Cristo nos reconciliou. A lógica sacrificial não opera aqui. Jesus não é alguém que está pagando um preço por nós, mas está agindo com o maior amor possível que reflete o próprio Deus, e que por isso nos constrange, por isso faz tudo novo. Por isso que para Paulo não podemos olhar mais para Jesus "segundo a carne" (v 15), mas Nele todas as coisas são "nova criação" (v.17). Deus tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado (v.21) para que nós fôssemos justiça de Deus em amor. E tal justiça é executada por nós enquanto cooperadores de Deus. Cooperar com Deus, atuar junto para que todos os homens sejam capazes de perceber o amor de Cristo que nos constrange. 

O que Paulo entende aqui é que em Jesus todas as coisas se fazem novas não por um ato retributivo, mas pelo próprio amor que reconfigura todas as coisas. A justiça de Deus não é punitivista, mas sim amorosa. O próprio evento Cristo atesta isso. Se olharmos "segundo a carne" pensaremos segundo a lógica retributiva do AT, mas se olharmos pelo olhar da reconciliação que Deus está promovendo todas as coisas se fazem novas e podemos exercer a justiça de Deus reconciliando juntamente com ele todos os homens. Isso para Paulo é crucial, uma vez que sabemos que para Paulo a vinda de Jesus era iminente. Tanto que o apelo de Paulo  na perícope faz um apelo "reconciliem-se com Deus". (v. 20), e logo em seguida outro apelo "insistimos com vocês para não receberem em vão a graça de Deus" (2Cor 6,1). Dessa forma é chegado o tempo favorável da salvação. (alusão aqui ao texto de Isaías 49,8)




quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Publicação do livro "Escritos sobre Religião. Entre a Teologia e a Filosofia"





Com muita alegria que divulgo a publicação do meu livro em que se encontram uma seleção de 100 textos publicados ao longo de 10 anos nesse blog. Os textos lá publicados versam sobre a temática da Filosofia, Teologia e Psicanálise e o diálogo dessas áreas com a sociedade contemporânea.

Caso tenham interesse em adquirir o livro, segue o link abaixo para o site da Editora.

https://aeditora.com.br/produto/escritos-sobre-religiao-entre-a-teologia-e-filosofia/

domingo, 14 de julho de 2019

Venezuela - Estivemos lá






Recentemente eu e Priscila estivemos visitando o norte do país, a cidade de Boa Vista em Roraima e aproveitamos para conhecer dois novos países da América Latina. Guiana e Venezuela.
A experiência foi belíssima e realmente o Brasil possui muitos lugares impressionantes. Sem dúvida a parte mais interessante da viagem foi a nossa presença na Venezuela.

Qualquer pessoa minimamente informada sabe que a situação venezuelana não está muito boa, a crise se aferra por lá há algum tempo e tem havido um êxodo muito grande de venezuelanos por meio das fronteiras com a Colômbia e com o Brasil. Essa situação tem trazido muito sofrimento para diversos venezuelanos e isso gera um monte de informações desconexas que são passadas pela mídia (que todo mundo sabe possui interesses específicos, visam gerar lucro para grupos específicos, etc.).

Uma preocupação que tive quando estava na Venezuela foi conversar com os diversos trabalhadores com quem encontrava durante a estadia. Conversamos com os garçons, atendentes do hotel, motoristas, e qualquer pessoa que estivesse disposta a dialogar sobre a situação do país para tentarmos entender como que, in loco, as pessoas que estavam submetidas à situação viam o problema de seu país. Acreditamos que isso possui uma dimensão muito mais ampla que qualquer "notícia" dada na grande mídia.

A primeira noção que ficou muito clara para nós e foi dito pelo garçom Ariel do hotel em que trabalhávamos é que até mesmo a classe trabalhadora sabe que o que há na Venezuela não tem absolutamente nada a ver com socialismo ou comunismo. Nas palavras do próprio Ariel:

"- Ueh, mas o socialismo não seria dividir as riquezas com todos? Aqui não há socialismo!" 

O que Ariel na sua simplicidade é capaz de colocar evidencia o núcleo duro da proposta comunista que é a igualdade entre todos e o direito a todos a todas as coisas. Para além da visão tacanha das épocas das redes sociais, o socialismo não existe na Venezuela, isso o próprio Ariel nos disse, demonstrando uma leitura muito atenta da situação.

Da mesma forma o motorista da Van que nos levou pelo passeio à Gran Sabana demonstrou um excelente conhecimento da situação do seu país e me deu uma aula sobre o período de Hugo Chávez e o movimento de transição para Maduro. O motorista sabia exatamente onde se encontrava o problema, reconhecia o avanço que Chávez trouxe à Venezuela, mas já era capaz de dizer que o grande problema do Chavismo foi o problema de qualquer governo dentro do capitalismo, ou seja, a corrupção.

Não era um problema do "sistema de governo", mas sim da própria dinâmica de qualquer governo que não consegue levar à cabo sua proposta que o levou ao poder, mas sucumbe facilmente às dinâmicas do capital. A corrupção faz parte do sistema capitalista de maneira estrutural. Não existe capitalismo sem corrupção, de forma que a agenda neoliberal com seu discurso moralizante toda hora se mostra permeada e sustentada pela corrupção.

Infelizmente em nossa época de pós-verdade pouquíssimas pessoas tem uma preocupação séria em debater os conceitos e preferem ficar presos à definições rasas, propostas de redes sociais que demonizam facilmente qualquer coisa ao invés de procurar uma literatura especializada para tratar das questões mais sérias. Às vezes são pessoas muito bem intencionadas, mas que por conta de diversos fatores (que não podemos excluir a má-fé deles) preferem utilizar de definições rasas e com isso corroboram a demonização de questões estruturais da república como "justiça social", "distribuição de renda", etc. Quando se demonizam questões que deveriam ser defendidas por todos o que se percebe é a perda da noção de sociedade e o avanço do individualismo como tônica para pensar as relações contemporâneas.

O capitalismo contemporâneo é individualista; por isso que todo tipo de pensamento que tem como foco o social é logo acusado de "socialismo", "comunismo" como forma de demonizar um pensamento social e com isso manter a estrutura segregacionista do próprio capital. O mais curioso é quando esse discurso vem dos setores cristãos, pois o cerne da própria Bíblia sempre foi social, sempre foi pensando na noção de povo, quer se leia o Antigo Testamento, quer se leia o Novo Testamento. São inúmeras as referências bíblicas possíveis para mostrar que a Bíblia é um livro que preza pela justiça social, condena o acúmulo de riqueza, preza pela solidariedade, etc. Esse tipo de "esquecimento" do texto é muito sintomático de uma época em que o individualismo se torna a tônica. Esquecer o caráter social do texto bíblico é não ter entendido uma linha do que o texto se propõe.


quinta-feira, 4 de julho de 2019

Resposta teológica à uma questão difícil





"Uma pergunta ao teólogo: qual a sua visão teológica sobre o suicídio?"

Esta é uma pergunta extremamente sutil e dentro do meio cristão fonte de inúmeras controversas e várias vezes fonte de inúmeras culpas por parte daqueles que ficam. Não sem motivo Camus afirmava que a questão do suicídio era o maior enigma da filosofia, que essa questão deveria ser a questão fundamental da filosofia, pois ali estaria toda a questão de saber se a vida tem ou não sentido. 
Durante muito tempo (e até hoje em grande parte da população cristã) a questão do suicídio sempre foi encarada como sendo uma espécie de "pecado capital", ou seja, um "pecado sem perdão" em que aquele que comete tal ato, por não ter como pedir perdão por ele, estaria de forma quase que automática, condenado à perdição eterna. No meio católico muito se pensa na ideia de um purgatório que seria um pouco mais "difícil" para pessoas que teriam cometido tal ato. Embora essas visões façam parte do senso comum e sejam bastante divulgadas, a meu ver elas fazem muito pouco sentido se considerarmos a questão do ponto de vista teológico. 

Sabemos que a visão que temos de Deus, a forma como o compreendemos altera drasticamente a forma como lidamos com as questões do mundo à nossa volta. Se compreendemos Deus como uma espécie de "dono do armazém" que contabiliza nossos erros e acertos para nos dar uma recompensa posterior acabamos entrando em uma espécie de dinâmica contabilizadora quantitativa e qualitativamente sobre os nossos atos, e isso sem sombra de dúvida nos leva à uma espécie de "escalonamento teológico dos pecados", de forma que pensaríamos em "pecados maiores" e "pecados menores", de forma que evitaríamos os pecados maiores e veríamos os pecados menores como "inevitáveis". A meu ver é esse escalonamentos de pecados baseados nessa visão de Deus que gera a grande hipocrisia cristã de condenar de maneira veemente alguns pecados e simplesmente não se importar com outros. 

Para mim a questão do suicídio se liga diretamente à questão do livre-arbítrio, ou seja, ela no final das contas acaba sendo um ato livre de um sujeito que por algum motivo acredita que aquela é a melhor saída para a situação vivenciada. Nunca teremos como saber se seria um ato de coragem ou um ato de covardia do sujeito, pois apenas o sujeito ali, no momento da decisão, é capaz de dizer do que se trata. Dessa forma é impossível generalizar (como geralmente se faz) sobre a questão. Cada caso é um caso, cada situação uma situação.
Sendo fruto do livre-arbítrio do sujeito se liga diretamente à liberdade concedida por Deus e por isso tal ato deve ser entendido como um ato de escolha do sujeito em determinada situação. Dar cabo da sua vida em determinado momento é sempre uma atitude última, uma tentativa de resposta última à questão do sentido da vida para si.

Dentro do cenário cristão a pergunta sobre a salvação do sujeito sempre aparece. Para mim a graça de Deus é radical e a salvação independe das nossas ações, das nossas atitudes, das nossas intenções, pois a salvação é fruto da graça que é fruto do amor de Deus que a todos alcança. A pessoa que comete suicídio também é alcançada pela graça radical de Deus e dessa forma é salva por Ele, pois Deus não deseja que nenhum de seus filhos se perca.
Pelo que pontuei acima já deve ter ficado claro que para mim o suicídio não é um pecado, não é um "ato contra Deus", não é algo que Deus não perdoa "porque o sujeito não tem como pedir perdão"; muito pelo contrário, para mim, o Deus em que acredito é um Deus que sempre é amor, e por isso sempre quer que seus filhos estejam juntos de si. Se entendemos a questão da salvação como fruto da graça de Deus, e exclusivamente da graça de Deus que é amor, penso que isso pode nos servir de consolo no momento da precariedade que a morte revela.

O momento é de extrema dor, o consolo parece impossível, mas aquilo que cremos, o "como" cremos pode nos ajudar a passar pela fase difícil de maneira um pouco mais inteiros.

Triste momento esse que vivemos nesses dias em que um querido amigo se foi. Compartilhamos a dor daqueles que são mais próximos e sofremos muito com eles. Nessas horas não tem muito o que podemos dizer para consolar os que ficam. Apenas podemos oferecer o nosso carinho, o nosso cuidado, as nossas lágrimas, compartilhar a dor, se fazer presente para o que for necessário, mas nunca haverá palavras no mundo capaz de dizer o que sentimos nessas horas. 

Para os que são mais próximos a dor dilacerante é muito maior, a ausência de norte é muito maior, a busca pelo sentido de tudo se mostra muito mais veemente e a dor se mostra várias vezes insuportável. Nessas horas não há manuais a seguir, não há regras a serem cumpridas, há apenas indívíduos que precisam lidar com a perda e reorganizar a vida sabendo que a partir de agora as configurações serão outras, os desafios serão outros. Acredito que se compartilharmos a dor o fardo será mais fácil de ser carregado e a nós enquanto amigos não há outro lugar que queremos estar senão ao lado de vocês. 


quinta-feira, 16 de maio de 2019

Ética contemporânea - Um relato de aula








Recentemente, em uma das minhas aulas estávamos falando sobre ética contemporânea. A princípio propus um recorte mais histórico para entendermos uma espécie de "quando" poderíamos propor uma espécie de "virada ética" no ocidente e resolvemos tomar como marco o pós-guerra e o declínio dos discursos iluministas/positivistas e os discursos religiosos institucionais, o que daria origem, em grande medida, à ascensão de um existencialismo de cunho mais ateu. (Lembrando que o existencialismo já existia desde o século 19 com Kierkegaard, mas ainda muito vinculado à religião cristã). A partir desse marco precisávamos também analisar as mudanças sociais advindas do mundo pós-guerra e o impacto do início da globalização na vida desse sujeito ao mesmo tempo que precisávamos entender o avanço do capitalismo no pós-guerra, o que com certeza geraria impactos cruciais na vida dos sujeitos. 

No meio desse debate um aluno faz uma pergunta que a princípio não tem muita coisa a ver com a discussão, mas ele pergunta: "professor, qual a diferença entre "esquerda" e "direita"?" A pergunta que aparentemente soava sem sentido foi um excelente complemento para o nosso debate. Na hora me lembrei do texto de Hannah Arendt "As origens do totalitarismo" em que ela faz uma excelente análise de como que um movimento totalitário pode ser apropriado tanto por governos ditos de esquerda e governos ditos de direita. A partir desse texto comecei respondendo que a noção de "direita" e "esquerda" tem origem na França em que as alas mais conservadores ficavam à direita, enquanto a ala mais progressista ficava à esquerda, o que deu origem ao termo, mas que no entanto, hoje ninguém se referia mais a essa diferenciação quando usavam o termo.

Em seguida, seguir de perto a proposta de Deleuze que sempre afirmou que não há governo de esquerda, pois o máximo que pode haver são governos favoráveis a pautas da esquerda, mas nunca um governo de esquerda, pois para isso seria preciso que toda uma estrutura de poder fosse desfeita, o que até hoje não aconteceu. A partir disso propus uma categorização primeira de afirmar que a proposta da direita envolveria um aspecto mais conservador enquanto a esquerda propunha um aspecto mais progressista. O aluno então propõe uma pergunta pertinentíssima que coloca em xeque essa primeira categorização que é o fato de alas ditas de direita são extremamente a favor de um liberalismo econômico, liberdade do indivíduo, etc., enquanto alas mais à esquerda não raras vezes se mostravam mais a favor de um Estado mais forte, etc. Esse novo questionamento nos levou a uma segunda categorização, que talvez seja até mais interessante para pensar tal dinâmica dentro do capitalismo tardio.

Propus que para termos uma definição mais interessante poderíamos falar que dado o avanço do capitalismo no pós-guerra ter sido de maneira global, o mercado se transformou em grande medida em um grande déspota que sobrepõe às categorizações antes vigentes entre "esquerda" e "direita", e por isso seria interessante pensar uma outra forma de pensar essa diferenciação e até mesmo checar se tal diferenciação não teria se tornado anacrônica do ponto de vista da categorização. Propus então a diferenciação de que enquanto a direita propõe uma ênfase sobre o indivíduo, o elegendo como critério máximo na escala de valores de forma que tudo que contrarie o indivíduo deve ser visto como forma de limitação da sua liberdade (um neoliberalismo na sua forma mais hard), a esquerda propõe que o indivíduo não é esse critério máximo, mas sim a sociedade em seu conjunto que deve ser eleita como tal critério, de forma que é por isso que enquanto a direita defende um estado mínimo (pois o Estado nessa visão seria um limitador da liberdade do sujeito), a esquerda propõe um Estado mais amplo de forma a garantir um acesso a um número maior de pessoas à coisas que o indivíduo não consegue por si só dada a uma série de fatores. 

Como esses fatores são dados pelo sistema econômico, uma vez que eles determinam em grande medida a forma como o sujeito vai se relacionar no mundo, é interessante percebermos que acima dessa divisão entre esquerda e direita há um mercado global que transcende em grande medida tais divisões. Neste sentido, em época de capitalismo global podemos pensar em outra forma de categorização de direita e esquerda, de forma que talvez aqui aponte para algum anacronismo nessa categorização. Direita e esquerda teriam a ver com o quanto essas visões estariam dispostas a ceder ao mercado. A direita disposta a ceder muito (daí a proposta de um estado mínimo e o indivíduo eleito a critério último de valores), enquanto a esquerda disposta a ceder menos (daí a noção de um Estado mais forte capaz de garantir à sociedade, e não apenas ao indivíduo possibilidades, em suma, a sociedade eleita como critério último).

No entanto, algo que percebemos aqui é que nem a direita (por motivos óbvios) e nem a esquerda (por motivos não tão óbvios) estão dispostos a romper com a lógica do mercado, mas no máximo proporem uma espécie de "capitalismo humanizado" (outro anacronismo) capaz de atender as demandas sociais em segundo plano enquanto primam pelo lucro de um número cada vez menor de pessoas. A meu ver uma proposta de uma esquerda "true" deveria ser a proposta de um novo sistema econômico capaz de dar contas dos disparates criados pelo capitalismo. A primeira aposta da esquerda em um socialismo/comunismo de Estado não deu certo, pois muito rapidamente a ideia se perdeu em nome de uma maximização estatal que acabou funcionando como "novo detentor dos meios de produção" mantendo as mazelas que visava combater. No entanto, não é pelo fato da primeira tentativa ter dado errado que isso signifique a esquerda deva abrir mão de propor novos modelos de funcionamento da economia em que a sociedade e a humanização do sujeito sejam as prioridades. 

Um aluno então comenta algo que encerrou a aula com chave de ouro, pois tínhamos estudado antes o texto "homo sacer" do Giorgio Agamben em que o filósofo define o homo sacer e explora o conceito para o nosso tempo. A fala do aluno foi: "então, professor, vc está dizendo que no atual cenário mundial, ou você está no mercado, ou você é um homo sacer?" Eu respondo: "É exatamente isso. Você entendeu exatamente o ponto, e a meu ver, um sistema econômico que condena mais da metade da população mundial à condição de homo sacer não pode ser algo que podemos ver como algo que "funciona". É preciso de alguma forma pensar e repensar modelos econômicos capazes de re-humanizar o sujeito e ter neste e na sua vida em conjunto o critério último para uma ética e não o mercado. É a partir desse contexto que podemos pensar uma ética contemporânea que tentaremos iniciar na próxima aula.