terça-feira, 7 de julho de 2020

Não roubarás - Elementos para pensar um critério ético





O que acho extremamente estranho dentro de uma ética consequencialista é o fato de que na maioria das vezes não se percebe que o critério utilizado por essa lógica não se sustenta para uma vida em comunidade. Para além disso o problema de uma ética consequencialista é o fato de eliminar questões qualitativas do debate ético. Questões estas que sabemos serem na maior parte das vezes cruciais para um debate ético. 

Li o artigo do Schwartzman que se baseia plenamente em uma visão bastante simples de uma ética utilitarista (que envergonharia talvez o próprio Bentham), mas que mantém a noção básica de como se deveria julgar uma ação ética. Ou seja, o princípio adotado pelo Schwartzman (que acredito estava pensando em Bentham ou Mill) é de que "uma ação é boa se promove um maior bem para o maior número de pessoas, ou um menor mal para um menor número de pessoas." Dessa forma, o critério defendido pelo Schwartzman pode-se dizer que é apenas quantitativo. 

Algo que já é apontado por diversos críticos de uma ética utilitarista é o fato de que o critério quantitativo é extremamente frouxo para tratar de questões éticas. Ninguém preferiria que sua mãe morresse (a não ser que se tenham seríssimos problemas edípicos envolvidos) para servir como exemplo para ninguém; da mesma forma que ninguém acharia válido que devêssemos matar um número considerado pequeno de pessoas em nome de um bem maior. Mesmo porque, não precisamos ser muito perspicazes para lembrar que o próprio nazismo via o sacrifício de judeus, homoafetivos, etc, como uma parcela que deveria ser morta em nome de um mundo melhor (que seria necessariamente um "bem maior"). 

Da mesma forma o critério utilizado por Schwartzman é extremamente difícil de ser universalizado, pois será que estaríamos dispostos a encarar os problemas éticos sempre dentro de uma ótica utilitarista? Não podemos (sob pena de sermos desonestos) mudar os nossos critérios éticos de acordo com a situação, ou seja, não podemos defender critérios utilitaristas em algumas questões, critérios deontológicos em outros, uma ética das virtudes (a la Mcintyre relendo Aristóteles) em outros. A própria noção de "critério ético" elimina esses saltos entre as teorias. Essa talvez seja uma das grandes dificuldades das questões éticas hoje, a perda do pensar os fundamentos de uma ação ética, onde eles estariam embasados, etc. 

Recentemente me vi nessa questão diante de saber se devo ou não cancelar minha matrícula da Smart Fit uma vez que se descobriu que o dono da rede apoia Bolsonaro e está envolvido nas redes de fake news. Em uma análise extremamente rápida a resposta se torna bastante óbvia, ou seja, algo como, "é claro que se deve cancelar, pois você estará financiando fake news, e você não pode fazer isso", de forma que  um problema que deve ser pensado de maneira um pouco mais detida se torna apenas mais uma "ação a ser tomada." A questão que me coloquei foi "qual será o critério que usaria para cancelar a minha assinatura da Smart Fit?" Será que estaria disposto a fazer isso com todas as outras coisas pelas quais pago? E se eu descobrir que o Mc Donalds financia fake news na Tailândia, eu vou deixar de comprar Mc Donalds em nome desse critério? Vou passar agora a investigar tudo que consumo para saber qual critério utilizarei? 

Voltando para o caso do presidente estar com COVID-19 e eu acreditar em um critério utilitarista. Será que eu estaria disposto a aplicar esse critério para todas as situações em que a doença de alguém está envolvida? Com certeza um parente doente terminal amado pelos seus dá muito mais despesa, gera muito mais angústia, dor, aflição para as pessoas ao seu redor de forma que seria o mais certo simplesmente solicitar a morte do parente enfermo a gastar uma montanha de recursos para manter alguém vivo. Mas é assim que se mede uma questão ética? São os valores financeiros, quantitativos que serão usados nesse processo? Não estaria aqui a mesma dinâmica de uma ética extremamente alinhada com o capitalismo contemporâneo de que nada do que não gere "lucro", nada que não gere "bem-estar" deve ser evitado? Não estaria no critério de uma ética utilitarista a recusa de pensar um pouco mais detidamente a questão colocada?

Não é exatamente uma ética utilitarista proposta por Schwartzman que é a responsável pelo despejo de inúmeras famílias em nome da construção de rodovias? Afinal, a rodovia promoverá um bem muito maior para mais pessoas, e se para isso for necessário deixar sem abrigo 200 famílias, ainda assim é o mais correto a se fazer em nome do bem maior. Será que estamos dispostos a defender a desapropriação de famílias e nome de rodovias que beneficiarão mais gente? É neste sentido que acho que a questão de Schwartzman é bastante mal colocada, pois ao invés de investigar "por que colocamos o problema dessa forma" simplesmente trata o problema como sendo algo já dado. E aqui que penso entrar uma tarefa crucial da filosofia; muito além de simplesmente fazer as perguntas, penso que a filosofia deve se colocar algo anterior que seria algo mais ou menos como "por que estou colocando a pergunta dessa forma? A minha pergunta já não é ela mesma parte do problema?" Aqui que penso estar a pergunta mais central a ser feita. E a meu ver o Schwartzman erra drasticamente a pergunta. 

Dessa forma acredito que pode-se defender ou não a morte de Bolsonaro por COVID-19, no entanto, se formos usar um critério ético, que mantenhamos ele diante das situações que se colocam para nós. Uma frase que comentei muito entre meus alunos de ética nesse semestre na faculdade em que ficamos um semestre inteiro debatendo apenas uma questão é a de que "não podemos roubar nos critérios éticos", ou seja, ou adotamos um critério, ou adotamos outro critério, de forma que mudar de critério de acordo com a situação é o que chamávamos de "roubar", e tivemos boas oportunidades de ver como que é fácil roubar nestas questões. O meu convite é para que não se roube nessas questões. Quando começamos a pensar de fato no problema ético percebemos que é muito mais complicado do que a proposta que Schwartzman tenta defender.