sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

O hábito da Filosofia: ou Sobre a arte de lidar com minhocas.




Foto da Glowworm caves na Nova Zelândia. As luzes são emitidas pelas minhocas que habitam a caverna.  
Disponível em https://paraondefor.com.br/glowworm-caves-caverna-das-minhocas-brilhantes/


Nós, os filósofos, temos uma certa "tara" por minhocas. Cultivamos diversos tipos delas nos mais diversos solos e nas mais diversas condições climáticas. Para mim, uma condição necessária para se ser um bom filósofo é meio que gostar de cultivar minhocas. 
No entanto, nossas minhocas são um pouco diferentes daquelas do pescador, daquelas das pessoas que aram a terra, adubam, etc. As nossas minhocas passam por questões que várias vezes nem sequer existem, mas passam a se colocar como problemas porque nós as elegemos como tais. 

Obviamente que todos nós, não somente os filósofos, cultivamos minhocas de vez em quando. Aquela sensação de algo vai dar errado, aquela sensação de que alguma coisa não está certa quando tudo está normal, aquela sensação de que somos feios, gordos, desinteressantes, que ninguém nos amará, que somos barrigudos, que somos uma farsa ambulante, que somos o pior dos seres humanos sobre a face da Terra, que não somos bons em nada, que nossa profissão não é o que gostaria de fazer, que minha vida não tem sentido, etc. tudo isso é o que aqui chamo de minhocas e que tenho certeza que qualquer leitor desse texto já cultivou alguma em algum período da vida. 

Claro que algumas dessas minhocas são mais frequentes em épocas pontuais da nossa vida. A questão da aparência é típica da adolescência e todos os traumas advindos dessa fase nebulosa; as questões referentes aos laços mais sólidos é típica da fase infantil, em que as relações basilares da vida do sujeito estão sendo construídas, etc. A questão do se sentir uma farsa tem muito a ver com a idade adulta e o discurso do capitalismo tardio em que nunca se está com conhecimento suficiente, nunca se é bom o bastante, etc. Não preciso dizer, entretanto, que isso não é "rígido"; ou seja, dependendo da vivência de cada pessoa, algo que seria comum acontecer durante a infância passa a acontecer na adolescência, na fase adulta, etc. Cada caso é um caso quando se trata de criação de minhocas. 

No caso específico de nós filósofos, as minhocas desempenham  um papel crucial para o exercício da nossa função, afinal, é com elas que trabalhamos. Não nos aventuramos a mexer com quase nada que não sejam minhocas. No entanto, nossas minhocas são várias vezes criadas e cultivadas por nós mesmos e debatidas e compartilhadas entre nós mesmos. Quem mais sofre quando se convive com um cultivador profissional de minhocas são os mais próximos. Afinal, são eles que tem que nos lembrar diversas vezes que nossas minhocas nem sequer existem na realidade, e que se caso fôssemos cultivar minhocas seria muito mais proveitoso cultivar minhocas reais do que minhocas imaginárias. Não é raro vermos os próximos de nós propor uma espécie de "giro wittgensteiniano" para nos dizer que na realidade o que estamos tratando são falsos problemas e trazer a questão para o plano da "realidade". Nem sempre esse giro resolve o problema, mas tem sido uma prática bastante utilizada por pessoas próximas a cultivadores de minhocas. 

No entanto, nem tudo são ônus para os que convivem com cultivadores de minhocas. Como cultivamos vários tipos de minhocas e como as cultivamos por muito tempo e em diferentes solos, somos experts em identificar as minhocas quando elas aparecem naqueles que nos são próximos. Neste sentido, os amigos dos cultivadores de minhocas se beneficiam bastante dos nossos saberes, pois as identificamos muito facilmente e somos capazes de arrancar as minhocas dos solos alheios com certa destreza. Eu na minha experiência de vida já transitei por diversas terras cheias de minhocas e fui capaz de arrancá-las de maneira bastante hábil. Ainda hoje retiro minhocas de terrenos quase que semanalmente e de diversas pessoas. 

Mas como diz aquele velho ditado (talvez o meu segundo ditado preferido, pois o primeiro é "enquanto houver cavalo, São Jorge não anda a pé") "em casa de ferreiro, o espeto é de pau", ou seja, nós, tão hábeis em arrancar minhocas alheias, encontramos uma dificuldade assombrosa em arrancar as minhocas em nossa própria propriedade; pelo contrário, ao invés de arrancá-las, nós as cultivamos, alimentamos, as transformamos em verdadeiros monstros que quase nos dominam de forma assombrosa. O grande desafio para nós, os cultivadores de minhocas profissionais, é de fato não deixar que as minhocas dominem o nosso terreno, mas que nós as dominemos. Obviamente que nem sempre somos capazes de fazer isso sozinho, e é exatamente nessas horas que os amigos aparecem, pois eles são capazes de (talvez por já nos ter visto atuando em algum momento) retirar habilmente as minhocas de nossas terras. Os métodos variam de amigo para amigo. Alguns são mais incisivos e as retiram a machadadas no melhor estilo nietzscheano e sua filosofia do martelo, outros procuram um viés um pouco mais sutil, cercando o terreno, vislumbrando o deslocamento delas para depois as retirarem de forma bastante delicada; os estilos são tão variados quanto são os amigos que lidam com isso conosco. Nesse contexto também temos outros profissionais que lidam especificamente com minhocas alheias (embora acredite que eles também possuem certas dificuldades em lidar com suas próprias minhocas) que são os psicólogos, psicanalistas, professores, etc. 

Como já deve ter ficado claro, lidar com minhocas é algo que todos nós fazemos e podemos dar nomes clínicos para diversos dessas minhocas com as quais lidamos. Algumas são reais e demandam remédios, outras são imaginárias, outras são meio que reais, meio que imaginárias, mas em todo caso sabemos que nem toda minhoca é "em si" um problema, mas o problemático é a forma como resolvemos lidar com elas, o espaço que deixamos elas ocuparem em nosso terreno, o que as deixamos fazer em nossa terra. Saber cultivar e arrancar minhocas é uma tarefa árdua até para os profissionais, quem dirá para o leigo.  De toda forma, caso necessite de alguém que trabalhe com minhocas, lembre-se que nós, os filósofos, somos experts nesse tipo de problema e somos capazes de resolver uma boa parte dos problemas com minhocas em terras outras, mas temos muitas dificuldades para resolver em nossas próprias terras. Para resolver em nossas próprias terras sempre precisamos de amigos, psicólogos, psicanalistas, professores, etc. etc. etc. 

Caso você esteja enfrentando sérios problemas com minhocas procure ajuda. Um psicólogo, um psicanalista, um psiquiatra, um filósofo, cada um com seu método de tratamento. No caso do filósofo será muito mais um auxílio por meio de uma boa conversa do que propriamente um "tratamento". No caso de tratamento recomendo mais um psicólogo, um psicanalista, talvez um psiquiatra, tudo dependendo sempre do tipo de minhoca que anda transitando em suas terras. E claro, às vezes um amigo da Letras, um amigo da Música, um amigo das Artes também podem ser de grande valia, pois te ajudará a perceber facetas que nem sempre você foi capaz de perceber enquanto cultivador de minhocas profissional.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

A doçura de caráter - O ceticismo de Pirro



Fonte da imagem: https://veja.abril.com.br/revista-veja/a-licao-de-pirro-para-2018/



Pirro de Élida, foi um dos grandes filósofos da antiguidade, que trouxe uma novidade no pensamento grego antigo. Mesmo sendo considerado um cético pelos escritores posteriores à sua época como exemplo de Cícero, Sexto Empírico, dentre outros , a sua filosofia pode ser considerada como cética no sentido em que aquilo que Pirro defendia era a suspensão do juízo e a busca da ataraxia através da adiaforia. Pirro por si só não escreveu nada, a não ser uma poesia dedicada a Alexandre . O que nos chegou de Pirro foi escrito por seu discípulo mais próximo Timão, que fez um relato das idéias e dos ensinamentos de seu mestre.

Pirro, viajou com Alexandre pelo Oriente, e isso fez uma grande diferença em seu pensamento, uma vez que entrou em contato com o pensamento do Oriente, especialmente com os gnosofistas, (ordem de provável origem indiana que se dedicavam ao estudo da ética e da física como prática da virtude)  e segundo se falam, Pirro presenciou a morte de Cálamo, que mesmo enquanto estava sendo queimado, mostrava-se tranqüilo em relação a situação que estava vivendo. Claro que não podemos esquecer da influencia de Demócrito de Abdera e de Anaxarco que o ensinaram muitas coisas e influenciou bastante seu pensamento como também Brison, do qual Pirro foi discípulo.

A principal característica de Pirro, era duvidar de tudo e ser indiferente a tudo, (adiaforia) esse era o ceticismo de Pirro. Para Pirro a epoché ( suspensão do juízo) é caminho que o sábio deve fazer para alcançar a paz de espírito ou ataraxia. A dúvida cética não se referiria às aparências ou fenômenos que são evidentes, mas em relação às coisas que nos são ocultas. A Pirro é também atribuída os dez tropos, ou razões da dúvida, dos quais neles se inserem as contradições do sentido.

A vida de Pirro se caracterizou pela sua total indiferença em relação às coisas, o seu principal propósito era a ataraxia e a busca de uma boa regra de conduta. Segundo Pirro, para que essa ataraxia fosse alcançada, o sábio deveria suspender seu juízo sobre as coisas. A epoché e adiaforia são as principais características de Pirro e que ele tentou passar a seus discípulos. Pirro se negava a discutir com os filósofos de sua época; a sua única resposta é que ele não sabia nada, e assim o fazia para viver uma vida isenta de preocupações, e viver tranqüilo e feliz. Pirro fez da dúvida, um instrumento de sabedoria, moderação e firmeza.

Os relatos sobre a vida de Pirro, mostram que ele vivia com seu espírito inabalável, mesmo quando as situações adversas lhe aconteciam. Sua uniformidade de alma era inalterada e praticava com serenidade a indiferença que ensinava. Era venerado por seus discípulos por viver de acordo com aquilo que pregava, e era isso que dava autoridade a seu discurso.

Concluindo, ao contrário das religiões em sua forma mais comum, nos quais se abandonam as coisas da vida na espera de uma recompensa, (quer tal recompensa seja pensada como reencarnação, lei de causa e efeito, vida eterna, etc.) a vida de Pirro era de indiferença, não por causa dessa espera, mas porque via nisso uma forma de viver feliz, era como se fosse algo de sua própria natureza essa indiferença. Algo que fica bem notado é a influência que o pensamento oriental e gnosofista teve na vida de Pirro juntamente com os pensamentos de Buda. A vida de Pirro foi portanto um exemplo para os seus seguidores, podemos afirmar que em Pirro se manifesta a ideia de que a doçura de caráter é a última palavra do ceticismo.