quinta-feira, 20 de outubro de 2016

A universidade como grande bolha !








Sou habitante de dois mundos, além dos vários outros que todos nós pertencemos pelo fato de sermos seres no mundo. Queria ressaltar dois desses mundos a que pertenço.  O mundo universitário, uma vez que trabalho na UFMG, dou aulas, escrevo artigos e outras coisas referentes a esse ambiente, e também pertenço ao mundo dos cursinhos pré-vestibulares, uma vez que lá também dou aulas, monitorias e todas estas atividades referentes a esse ambiente. 
O que une os dois mundos é o fato de ambos serem ligados à área da educação, mas além dessa semelhança óbvia há uma semelhança ainda maior que é que ambos os ambientes vivem dentro de uma grande bolha. E essa bolha cria um ambiente extremamente ilusório para aqueles que nelas habitam. 

A bolha funciona como uma espécie de invólucro em que tudo o que é feito tem como referente apenas o mundo a que aquela bolha remete. A bolha tem, portanto, a capacidade de criar para si o seu próprio mundo e isso se dá de forma tão natural que raramente se percebe essa estrutura auto-referente, que tem no seu próprio funcionamento a sua razão de ser.  Ao invés de ser algo alheio ao indivíduo que participa da bolha, é como se a bolha se entranhasse no próprio indivíduo de forma que a sua maneira de pensar é condicionada pela própria estrutura a que a bolha sempre acaba remetendo. No ambiente universitário isso é facilmente percebido assim como no universo dos cursinhos pré-vestibulares. 

No ambiente universitário o simples fato de você "pertencer ao meio" já te coloca em condições bastante melhores do que qualquer pessoa que queira "entrar para o meio". Basicamente o ambiente universitário funciona dentro de uma lógica produtivista, ou seja, quanto mais se produz, (artigos, capítulos de livros, congressos, etc.) mais "status" se adquire dentro da bolha universitária e consequentemente mais se é possível solicitar bolsas para as agências de fomento. No final, o que acaba importando mesmo é apenas o status e o valor financeiro adquirido com tal status. Para de alguma forma "medir" as produções há toda uma qualificação de revistas científicas produzidas pela CAPES que variam de Qualis A1 a C2. Obviamente que as produções que de fato "valem alguma coisa" são as publicadas nas revistas Qualis A1 até a B2 e por isso há sempre o esforço para se publicar nestas revistas. Há toda uma questão envolvendo os critérios de avaliação e todos sabemos que a questão é muito mais "quantitativa" que "qualitativa". Longe de haver uma preocupação com a "disseminação do conhecimento" ou "com a discussão racional" o que se percebe é que esses ideais românticos já há muito foi abandonado nesse ambiente, e se resta algo nesse sentido, tem muito mais a ver com casos particulares do que com a estrutura do funcionamento da bolha. O objetivo último daquele que está dentro da bolha universitária é aumentar a sua renda e seu status, daí se instaurar a lógica da competitividade no ambiente acadêmico. 

Para se manter vivo nesse ambiente de competitividade os professores (e seus orientandos de mestrado e doutorado) se indicam entre si para a escrita dos artigos, para as participações e organizações de congressos, participação de bancas de mestrados e doutorados e isso vai sendo registrado no currículo Lattes (meio pelo qual é medido a produção universitária no Brasil) de cada um deles como forma de criar a "produção" do ano para que na hora dos relatórios anuais o currículo Lattes  esteja repleto de coisas feitas durante o ano. Essa produção por parte dos professores/alunos de pós graduação é o que será levado em conta para que a CAPES dê uma nota ao programa de pós-graduação de uma determinada universidade. Essa nota vai de 1 a 7, e quanto mais produção de artigos, congressos, etc. maior a nota do programa e consequentemente maior o número de bolsas de pesquisa concedidas pela CAPES ao programa, o que obviamente aumenta a renda do programa e dos professores vinculados ao programa. Talvez por isso podemos entender o porquê que as atividades de extensão, que tem em vista a comunidade fora da bolha, sejam as que menos recebem a adesão por parte dos professores. Essas atividades de extensão não contam muitos pontos para a avaliação da CAPES, logo podem ser deixadas de lado, ou deixadas para quem tiver algum interesse particular nisso. Dessa forma se instaura um ambiente em que os conchavos, as bajulações e todo tipo de artimanha seja válido para se adquirir um "lugar ao sol". Os comentários giram em torno do próprio mundo da bolha, ou seja, as conversas sempre giram em torno das participações em quais congressos, quantos artigos foram enviados/aceitos para publicação, em qual revista, quem se aposentou, qual a nota do programa de pós-graduação, etc.

Curiosamente, fora da bolha criada ninguém conhece absolutamente nada do que é produzido ali. Isso acaba se transformando em produções que apenas servem para massagear o ego dentro da própria bolha. Absolutamente ninguém fora da bolha universitária irá ler o artigo publicado, o livro organizado; fora da bolha ninguém participará do "congresso internacional", etc. Obviamente para quem está e vive dentro dessa bolha é completamente indiferente o fato de suas produções não saírem da bolha, afinal a produção é feita tendo a bolha como alvo, mas a meu ver isso mostra a que ponto chega o auto-envolvimento dos pertencentes ao que aqui estamos chamando de bolha.

Para qualquer pessoa fora desse grupo dos professores/orientandos que se indicam é praticamente impossível publicar coisas que serão levadas em consideração como "produção" para o currículo Lattes. Como o currículo Lattes é o único currículo avaliado para quem quer "entrar para o meio universitário" como profissional, facilmente se percebe que para se entrar para o meio é preciso que você já esteja no meio. Essa situação extremamente paradoxal é a tônica da bolha universitária e que deixa muita gente boa de fora do mundo da pesquisa pelo simples fato de não estar disposto a entrar na competitividade e bajulações que precisa acontecer para que se entre para a bolha, ou ainda pelo simples fato desta pessoa precisar trabalhar e não poder ficar por conta da universidade.

Qualquer pessoa dentro da bolha universitária sabe que o que está em jogo é apenas status e dinheiro, mas precisa se esconder atrás do discurso da "produção de conhecimento" como forma de apaziguar a consciência e talvez criar um "sentido provisório" para si. Na maioria das vezes quando se organiza um congresso o que se tem em mente não é a disseminação do conhecimento, mas a oportunidade de preencher mais uma linha no currículo Lattes e mais uma publicação advinda do congresso. Até mesmo o próprio questionamento do modo de funcionamento da bolha universitária é feito sob a forma de artigo que serve novamente apenas para preencher mais uma linha no currículo Lattes. Esse auto-envolvimento completamente fechado em si mesmo é o mais visto na chamada bolha universitária.

A ideologia reinante no ambiente universitário é o que permite que a bolha se mantenha. Como bem coloca Zizek, a formulação da ideologia não se dá apenas dentro do território de uma razão cínica (conceito profícuo formulado por Peter Sloterdijk) mas a ultrapassa saindo de sua forma ingênua que pode ser formulada como "eles não sabem o que estão fazendo, mas fazem", e se formulando dentro do registro do "eles sabem exatamente o que estão fazendo e ainda assim fazem." Esse tipo de relação é muito mais complicada de ser combatida, pois não é uma tarefa de "iluminação de consciência", mas sim de mudança de atitude.



sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Lenin e a religião. Pequeno comentário a um texto de Lenin.






Recentemente, a partir da leituras de alguns livros do filósofo esloveno Slavoj Žižek, tive o interesse de ler um pouco da obra de Lenin pelo fato deste autor influenciar bastante àquele. Um livro que achei muito interessante, e refere-se diretamente à minha área de estudos foi o livro "acerca de la religion" escrito por Lenin em 1905. O livro de Lenin é um apanhado de diversos textos, cartas, palestras proferidas por ele durante o longo processo de revolução russa da qual ele foi um dos principais líderes. É um livro muito interessante e traz considerações boas sobre a possível relação entre a religião e o socialismo. No entanto, Lenin nesse livro não fará grandes avanços frente à crítica marxiana sobre o tema da religião, embora possamos ressaltar algumas diferenças entre Lenin e Marx sobre o tema da religião.

Marx parte do princípio de que não é a consciência que determina a sociedade, mas é esta que determina aquela. Segundo ele, “O homem não é um ser abstrato, agachado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o estado, a sociedade.” Portanto, ao se falar sobre o homem, deve-se falar sobre o mundo do homem. O fenômeno religioso deve ser compreendido, portanto, dentro dessa nova perspectiva, não mais como objetivação de uma essência, como propõe Feuerbach, mas como produção social humana. Segundo Marx, “este estado, esta sociedade, produzem a religião, uma consciência invertida, porque eles são um mundo invertido.” 

Sendo uma consciência invertida do mundo, a religião é considerada basicamente falsa, pois nela só encontramos ilusão, não sendo necessário, um processo hermenêutico de interpretação da mesma, já que ela deve ser superada. Nota-se que a interpretação feuerbachiana de religião enquanto objetivação de uma essência humana também é abandonada e adquire em Marx o status de uma nova forma de mistificação. Se não há essência humana, o discurso sobre a religião enquanto objetivação desta essência não passa de mera ilusão. 

Para Marx, a religião é a realização, na fantasia, da essência humana, porque a essência humana não tem realidade alguma. Se a religião é apenas expressão de um mundo invertido, ela não contém nenhuma verdade a ser recuperada. Ela não fala acerca de uma realidade a ser recuperada porque ela nada mais é que o resultado de um mundo a ser aniquilado. Podemos notar que Marx preserva a relação entre religião e “expressão” humana, no entanto, para ele, aquela expressa não o homem, mas a situação do homem sob as condições de repressão. Ela é o suspiro das criaturas oprimidas, e, portanto, o discurso religioso não é sobre a “essência humana”, mas sim sobre as correntes que aprisionam essas criaturas. O que se encontra em tal discurso não é o ser humano, mas as forças que o escravizam e o fazem gritar por religião.

Por isso Marx afirma na  "Introdução a crítica da filosofia do direito de Hegel" que "o sofrimento religioso é ao mesmo tempo a expressão de sofrimento real e o protesto contra um sofrimento real. Ela é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, da mesma forma como ela é o espírito de uma situação sem espírito. Ela é ópio do povo" (MARX & ENGELS, 2008, p. 6.) Acontece no discurso religioso uma inversão, pois as correntes que limitam o indivíduo são cobertas por flores e a dor real é esquecida pelo ópio. O homem, ao invés de tentar se livrar das amarras religiosas que o escravizam, transforma tais correntes em canções de amor. Em Marx não existe nenhum trânsito epistemológico da religião para a realidade. Aquela é inevitavelmente falsidade porque a sua função social é ser ópio. Isso permite defini-la funcionalmente como o discurso que reconcilia o homem com o mundo que o oprime. 

Esse filósofo, portanto, reconhece a religião apenas como um sintoma de uma enfermidade social. E esse ponto vai ser referido por Lacan ao dizer que Marx teria sido aquele que inventou o sintoma. A religião para Marx não contém nenhuma significação epistemológica, é apenas efeito de uma causa diversa de si mesma. Por isso, Marx passa a investigar qual seria a causa geradora da religião. Em vez de uma hermenêutica do discurso religioso, ele propõe uma crítica, a qual seria necessária para que a felicidade ilusória do povo possa ser substituída pela felicidade autêntica. “A abolição da religião como a felicidade ilusória do povo é exigida para a sua verdadeira felicidade. A exigência de que se abandonem as ilusões sobre as suas condições é a exigência para que se abandonem as condições que necessitam de ilusões.” (MARX & ENGELS, 2008, p. 6.)

Tal crítica feita por Marx à religião será a mesma utilizada por Lenin em seu livro.  Dentre diversos outros temas tratados no livro de Lenin, um que gostaria de ressaltar é a instigante pergunta que ele faz sobre se um cristão poderia se unir ao partido socialista. Sua resposta é afirmativa nesse sentido, mas ao mesmo tempo procura ressaltar que a religião se trata de um assunto privado, i.e, não tem problema algum um membro do partido socialista ser cristão, contando que ele não tente encarar o partido socialista como uma extensão de sua religiosidade. Mas sob essa pretensa isenção a respeito da prática cristã logo se evidencia que para Lenin a religião seria um grande perigo, pois ela era capaz de minar os interesses do partido comunista. A religião para Lenin não era, portanto algo "marginal" como para Marx, mas era algo que exigia uma atenção grande por parte do socialismo. Para Lenin, o partido socialista deveria se ater fielmente ao materialismo proposto por Marx e isso era algo que talvez uma pessoa que professasse uma fé encontraria problemas para assimilar. 
O socialismo para Lenin deveria ter na prática a sua primazia, mas sem abrir mão da reflexão sobre seus pressupostos e por isso ele se empenha em uma reflexão sobre a religião. O livro também tem um grande ensaio sobre o papel da educação na formação da juventude socialista que é bastante interessante. 

É sabido que entre nós da América Latina esse tipo de associação foi feita com bastante êxito na chamada "Teologia da Libertação" que, dentre outras coisas, propôs uma leitura bíblica pautada por diversas influências marxistas. Diversos autores muito conhecidos do povo brasileiro encabeçaram o movimento conhecido como Teologia da Libertação, dentre eles podemos citar a figura de Rubem Alves no meio protestante e Leonardo Boff no meio católico, ambos muito influentes na consolidação de tal teologia no Brasil e no mundo. 

Mesmo sendo um livro que traz apenas uma retomada das principais teses de Marx sobre o tema da religião ainda assim é um livro interessante para quem quer ter um primeiro contato com um autor profícuo e muito pouco conhecido pelas suas obras, como é o caso de Lenin.