quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Pequenas considerações sobre o primeiro princípio do tetrapharmakón de Epicuro

"Nós não precisamos temer os deuses”

(Para quem não sabe, o tetrapharmakón, ou "os quatro medicamentos" é um conjunto de princípios proposto por Epicuro que propõe 4 ações que conduziriam o homem a uma vida feliz. O primeiro "medicamento" é o que exponho nesse texto, ou seja, a noção de que não devemos temer os deuses.)

A noção que temos de Deus aqui no ocidente se deve muito ao pensamento da igreja católica e as diversas investidas por meio das cruzadas e várias missões das quais temos conhecimento, com o intuito de “cristianizar” a população. Vou procurar aqui, relatar um pouco da concepção que Epicuro faz a respeito dos deuses. Obviamente que, pela riqueza do conceito, não será possível abordar todas as vertentes possíveis de tal "medicamento", mas os apontamentos aqui servem como introdução ao tema. 
Para começar, é preciso definir a concepção que Epicuro faz a respeito dos deuses. A concepção que Epicuro tem a respeito dos deuses é completamente diferente da visão ocidental de Deus. Uma coisa que precisa ser entendida é que  a lógica, a física, e a ética integram plenamente a "teologia epicurista.” ¹
Primeiramente, não existe um monoteísmo em Epicuro, o qual sempre refere aos deuses e nunca a um deus somente. O politeísmo era a crença predominante no mundo grego. Para Epicuro, mesmo o conhecimento que temos dos deuses seja imediato, os deuses não se importam com as coisas dos humanos. Epicuro não nega a existência dos deuses, ele apenas afirma que a imagem que fazemos dos deuses é que é equivocada.
Não devemos atribuir aos deuses nada que não lhes é próprio como a inveja, a ira, e outros atributos que já vemos desde os cantos homéricos. Os deuses para Epicuro viviam em comunidades e filosofam. No entanto, eles se comunicam com oshomens enquanto eles dormem.  Isso se dá através de algo que Epicuro chama de “eflúvios” ou “simulacro”, que seriam como uma membrana que sai dos átomos e alcançam os ouvidos, ou o tátil ou a visão etc.
Para entender a concepção epicurista dos deuses temos que entender também como que os átomos se organizam para eles. Epicuro era um atomista, ou seja, ele assume a posição de que o que existe é apenas átomos e vazio, sendo que dessa forma tudo o que acontece é necessário. Não é um determinismo propriamente dito, pois há um certo desvio na “cascata” que os átomos formam. Para ele, os átomos caem em uma eterna chuva. Assim seria a situação antes da formação de qualquer coisa na cosmologia de Epicuro. Os átomos cairiam sem destino algum, apenas fazendo sua dança em meio ao vazio. No entanto, em algum momento, não sabendo o porque, eles sofrem um desvio e se chocam, começam a se aglomerar e as coisas são formadas a partir daí. Os átomos que antes caiam paralelamente, começam a se desviar e passam a se chocar formando o nosso mundo. Esses desvios eram chamados de “parenclises” ou “clinamem”. Com o clinamem podemos ter a noção de uma ação individual livre. Só porque há o clinamem é possível a liberdade das ações. Esse desvio nega a ideia de um fatalismo. O desvio seria um fruto de uma liberdade, que no caso de Epicuro é essencial para pensar uma ética onde tudo seria átomo e vazio. Esse encontro entre os átomos seria aleatório, ele não tem uma causa, ele não obedece ao princípio de razão, ele poderia ter ocorrido de outra forma que não a que aconteceu. Ele simplesmente aconteceu. Fruto de uma liberdade. Se não houvesse esse desvio, segundo Epicuro, não teria como os compostos se formarem, pois eles caem paralelamente. Isso implica que tem que haver um momento em que esses átomos se desviem para formar os compostos. (Tal ideia de "desvio" e "aleatoriedade" será importantíssimo para o que depois será conhecido como "materialismo aleatório althusseriano".)
Os deuses na filosofia de Epicuro tem uma implicação ética porque eles servem como modelo das ações. Essa é praticamente a única função dos deuses em Epicuro. Não há motivo para temer os deuses porque eles não se importam com os homens e nem com o que eles fazem.
Algo interessante que Epicuro afirma é que os deuses não interferem no nosso destino. Eles apenas vivem em comunidade. Com a noção do clinamem, há uma responsabilidade para nossas ações que independem dos deuses. Nós somos responsáveis pelo que fazemos.
Outro ponto que diverge o pensamento epicurista do pensamento que nós temos a respeito de deus é o fato de que, segundo Epicuro, a noção que nós temos dos deuses é o que nos aprisiona a eles.
Para Epicuro não existe uma vida pós-morte e isso nos impele a viver uma boa vida aqui na Terra. Segundo ele, essa crença em uma vida pós morte apenas nos aprisiona a uma realidade que não existe. Deixamos de viver uma vida aqui em função de uma vida em outro lugar.
Para Epicuro, o verdadeiro conhecimento dos deuses nos liberta pois se sabemos que os deuses não se preocupam conosco e que eles estão apenas preocupado com aquilo que eles mesmos fazem, isso não coloca em nós nenhuma coerção para realizar as nossas ações, na espera de receber algum tipo de favor ou punição por parte deles.
Epicuro faz um corte drástico entre os deuses e os homens. Tal corte se dá não pelo fato de homem querer se achegar aos deuses e estes não o permitirem. Também tal corte não se dá a partir da noção de criação em que Deus seria o criador e o homem uma criatura, uma vez que entre os gregos não há a noção de criação. Os deuses em Epicuro não são deuses criadores ou formadores do universo. O universo para Epicuro é infinito e aberto. Não há uma dependência do homem em relação aos deuses. O corte em Epicuro se dá na falta de relação do homem com os deuses. O homem deve se relacionar com outros homens e não com os deuses. Assim como os deuses só se relacionam com os seus semelhantes, assim também o homem deve se relacionar com os seus semelhantes. A vida na terra é completamente diferente da vida entre os deuses. Não há uma relação direta entre homens e deuses.
O primeiro princípio do tetrapharmakón é realmente muito rico em sua concepção e de uma implicação ética enorme. Segundo Epicuro esse primeiro princípio, se seguido pelos homens pode ajudá-los a viver uma vida feliz e afastada das preocupações, que é o objetivo de todos os homens. É interessante notar que Epicuro começa o tetrapharmakón afastando a ideia de deus como doador da felicidade e colocando o homem como responsável por viver como “um mortal entre os imortais”.

Como opção para quem quiser saber mais sobre esse tema tão interessante, fica a dica de dois livros. O primeiro é o do próprio Epicuro, encontrável em pdf online sem muitos problemas. e o segundo é um livro mais técnico sobre as relações que faço alusão nesse texto. 

Bibliografia:
  1. EPICURO, Carta a Felicidade – Editora Unesp
  2. RODIS-LEWIS, Geneviève – Épicure et son école , collection idées Editions Gallimard 1975



quarta-feira, 21 de setembro de 2016

O que dará o homem em troca da sua alma? (Mc 8,37) A "morte lenta" do funcionário padrão







A crítica central de Marx ao capitalismo é que o capitalismo desumaniza o homem. O transforma em um mero animal, em um mero "meio" para que se produza mais capital. O homem nesse tipo de sistema não passa de uma peça a ser substituída caso não cumpra a sua função, ele se torna completamente descartável, embora a ideologia que domine seja a de que esse ser humano seria indispensável para o funcionamento da máquina. A esse indivíduo sugado e mutilado constantemente pelo funcionamento institucional restaria apenas a morte lenta transfigurada em "sucesso profissional". 

Ao funcionário padrão resta apenas isso: A cruel dinâmica entre fazer algo com sentido ou não. E por inúmeros motivos se escolhe geralmente o sem sentido enquanto sacrifica todo o resto. 

E assim vai-se morrendo aos poucos pelo que pouco importa. 
Esgota-se lentamente.
Diariamente.
Esgota-se por motivos supérfluos como se toda a vida dependesse daquele detalhe pífio. 
E não adiantam os discursos, não adiantam as admoestações, não adianta nem mesmo o próprio corpo dar sinal de que está demais. 
É como se o clamor por aquilo que o mata diariamente  fosse sempre o mais importante. 

Se o medo não dominasse a pobre alma, talvez haveria a coragem para o basta.
Enquanto isso vai-se embora a vida, a alegria, o casamento, a casa, os amigos, a família. 
Tudo relegado ao segundo plano; tudo transformado em um depois a ser feito que nunca encontra tempo. 
Vai-se morrendo lentamente, vendo a vida passar diante dos seus olhos. 
Vida cada vez com menos sentido, cada vez com menos brilho, cada vez necessitando mais subterfúgios para ser simplesmente suportada, mas nunca mais vivida plenamente.

Qual a última vez que ele foi pleno em algo?
Quando foi a última vez que sorriu sem me preocupar com nada?
Que sentou no sofá e descansou?

Enquanto assimila como dele o discurso empresarial, deixa de lado o que são os seus próprios valores. Há uma dissimetria abismal que o confronta entre o que ele acredita e no que ele se empenha. Dissimetria essa inconciliável, mas mesmo assim continua se empenhando pelo que é vão. Não há mais ânimo para nada. A alma (aquilo que anima) se foi. Restou apenas o invólucro; um corpo sem nada que o motive, nada que o impulsione; apenas mais um dia, mais um trabalho, mais uma rotina.

O que precisa acontecer para que se pare? 
Se nem o colapso do  corpo, nem a angústia constante, nem as dores, nem a ausência de alegria, nem o definhar constante da vida, nem a perda do tempo, nem a perda do contato com a família, amigos, nem a má alimentação são capazes de  fazê-lo parar, o que será? 

Se pelo menos essa morte fosse uma morte digna, se fosse por algo que se acredita, se fosse por algo pelo qual valesse a pena morrer, se pelo menos fosse por isso tal definhar, talvez encontrasse um sentido nisso tudo e uma espécie de "sentimento nobre" o invadiria e serviria para organizar o colapso. 
Mas nem isso acontece. Não há nada de digno nessa morte lenta. Nada que valha a pena nela. É uma morte vã, em nome de algo que simplesmente não se importa com ele. Em nome de algo que o substituirá no mesmo momento em que se demonstrar que já não é capaz. Nesse medo da substituição, nesse medo de perder o menos importante vai se perdendo o que mais importa para ele.

A perversão é total. Perverte-se até o próprio medo. O medo que deveria impelir a ações diferentes deveria ser o medo de perder o que mais importa, mas é como se tentasse se convencer de que para o mais importante fosse necessário apenas o básico, enquanto para o menos importante fosse necessária a própria alma. Inversão completa de valores promovida pelo capitalismo. Nisso o medo persiste e vai ganhando contornos cada vez mais angustiantes. A angústia agora vem de fora, mas também vem de dentro. A pressão é externa, mas é também interna. O funcionário padrão sofre de qualquer jeito. 

Ser de acordo com o padrão em um sistema em que o próprio padrão é o da desumanização do indivíduo é ir contra si mesmo, e dessa forma não resta nada além da precarização da vida, a angústia sem fim, a morte sem sentido, a perda da alma.

"O que o homem poderia dar em troca da sua alma?" (Mc 8,37)





quarta-feira, 14 de setembro de 2016

O servo impiedoso e flutuabilidade do poder: Uma reflexão de Mt 18,23-34 a partir de Foucault






Jesus nos conta uma pequena parábola em que um servo devia ao rei um determinado valor e quando o rei lhe foi cobrar o servo suplicou para que a dívida lhe fosse perdoada e o rei concedeu tal perdão. No entanto, ao sair da presença do rei, o servo encontra um conservo que lhe deve um valor extremamente menor e o manda prender porque não pagou a dívida. O rei que havia perdoado o servo fica sabendo do ocorrido e pergunta: Por que não usou de misericórdia para com seu conservo da mesma forma que eu fiz contigo? E diante de tal atitude mandou prender o servo até que este lhe pagasse tudo o que devia. (Mt 18,23-34)

Uma noção cara à Foucault é de que o poder possui uma flutuabilidade, ou seja, o poder age em uma microfísica específica que impede a sua polarização estanque. A microfísica do poder (título de um dos livros do Foucault) evidencia que as relações de poder são constantemente construídas e reconstruídas nas diversas relações que estabelecemos diariamente, daí a sua "flutuabilidade". Ao invés de funcionar de forma homogênea e polarizada em que seríamos capazes de identificar sempre de que lado está o poder, Foucault proporá que o lugar do poder se desloca de um lugar para outro dependendo das relações estabelecidas. Ele funciona em redes e por isso deveríamos compreender como se dão as relações de poder em determinadas relações.

Na parábola contada por Jesus, podemos pensar que da mesma forma que o perdão é recebido ele deve ser passado. Aquele que é perdoado também tem ele mesmo a capacidade e o poder de perdoar, evidenciando que as relações de poder não se polarizam, mas flutuam, e talvez seja essa um valioso ensinamento de Jesus nessa pequena parábola. O servo perdoado também tem o poder de perdoar, e assim deve fazer uma vez que entende a flutuabilidade das relações de poder envolvidas em nosso dia a dia. Quando esquecemos, ou não nos damos conta dessa flutuabilidade do poder assumimos o mesmo papel do servo que é perdoado e não perdoa. Tal servo vê o poder de forma estanque, totalmente polarizada, que deve ser exercido pelo uso da força. Ao sair da condição de perdoado e passar à condição daquele que perdoa ele vai reproduzir a mesma noção de um poder estanque. Jesus mostra que tal postura evidencia um desconhecimento de como as relações de poder funcionam, pois na própria parábola rapidamente a relação de poder novamente se inverte para o servo. Ele foi perdoado, passou à condição daquele que podia perdoar, não perdoou, e voltou à condição anterior. Não estaria aqui também uma boa chave para compreendermos a famosa inversão proposta por Jesus de que o senhor é aquele que serve?

A história contada por Jesus talvez seja um excelente conselho para nós ainda hoje. Ou seja, por que não fazemos para com os outros aquilo que reclamamos sua ausência no outro? Por que não somos também tão críticos conosco mesmos a ponto de vermos que estamos apenas reproduzindo o que condenamos? Talvez tão próximo a nós alguém esteja sofrendo pelo mesmo motivo que o nosso e mesmo cabendo a nós alterarmos tal situação fechamos os olhos e concentramos apenas em nós mesmos sendo incapazes de ver que na realidade o sofrimento do qual reclamamos infringimos ao outro na mesma medida.

Na maioria das vezes achamos que já fazemos demais pelo outro, acreditamos piamente que estamos sendo sempre o melhor que poderíamos ser para o nosso próximo, mas diversas vezes falta-nos a sensibilidade de perceber os inúmeros sinais que o outro nos endereça. Sempre me ocorre que a forma como o outro age comigo dá inúmeras pistas sobre a forma que ele gostaria que eu o tratasse. É como se fosse um grande jogo de imitação, mas que várias vezes esquecemos de jogar e acabamos proporcionando no outro um sentimento várias vezes ruim que poderia ser evitado se prestássemos atenção aos pequenos sinais. Obviamente que não é tudo mera imitação, afinal as particularidades do outro devem ser levadas em consideração; sua forma de lidar com as questões da vida, sua forma de encarar os compromissos, ou a ausência deles, etc. Nessa curiosa dinâmica vamos aprendendo a lidar com o outro e crescendo junto com ele.

O servo que demanda o perdão do rei, mas logo em seguida demanda o pagamento do seu conservo mostra essa dissimetria que várias vezes cometemos, afinal é muito simples assumir o lugar de poder em uma determinada relação e esquecer que há pouco tempo atrás éramos nós mesmos aqueles que clamavam por perdão ansiando por sermos perdoados. O rei que perdoa é o mesmo que espera que o perdoado faça o mesmo quando a relação de poder se inverter. Da mesma forma, aquele que foi perdoado deve compreender que o poder de perdoar não está apenas em um lugar específico, mas também está disponível a ele por conta das novas relações estabelecidas.

À medida que compreendemos as diversas possibilidades das relações de poder envolvidas em nosso dia-a-dia somos capazes de compreender melhor as nossas relações e, consequentemente, somos capazes de nos aproximarmos do outro de coração aberto sabendo que constantemente temos a possibilidade de perdoar e sermos perdoados. A noção de que o poder flutua maximiza a liberdade do sujeito na medida em que o coloca constantemente diante de uma nova relação de poder a ser sempre estabelecida diante do outro que o invoca. Talvez por isso Jesus inicia a parábola afirmando que o reino de Deus pode ser comparado a tal parábola. No reino de Deus há sempre a possibilidade da liberdade em relação a demanda do outro, mas constantemente somos chamados a ver na demanda do outro um pouco da nossa própria situação.