quarta-feira, 9 de julho de 2014

Pequena reflexão sobre o livro de Jó



Algo interessante sobre o livro de Jó e que geralmente muita gente acaba por deixar batido é que o texto em si é uma grande crítica à teologia da retribuição tão famosa entre os judeus da época. E não apenas da época, mas desde o Deuteronômio. A "segunda lei" (Deutero + nomos) é bastante enfática em vários textos sobre a doutrina da retribuição e não precisamos buscar muitos textos para corroborar isso. Remeto o leitor ao capítulo 28 de Deuteronômio que já ilustra muito bem o que digo. 

A teologia da retribuição propõe que "se formos bons, Deus nos retribuirá com  o que é bom, se formos mau, Ele nos retribuirá com o que é mau." Essa teologia está presente em vários livros do Antigo Testamento e é atualizada no Deuteronômio. 

O livro de Jó e também o livro do Eclesiastes visa romper com a teologia da retribuição mostrando que a realidade tem muito pouca coisa a ver com a proposta do Deuteronômio. O Eclesiastes chega a ser até bem enfático ao apresentar que "há justos a quem sucede segundo as obras dos ímpios, e há ímpios a quem sucede segundo as obras dos justos". (Ec 8:14), ou seja, por mais que o autor de Deuteronômio queira fazer com que o mundo seja lido mediante uma retribuição simples, a realidade insiste em ir contra tal programa. 


A datação do livro de Jó se dá mais ou menos pelo séc. V a.C, ou seja, já bem posterior ao livro do Deuteronômio (Vários teólogos exegetas debatem a datação do texto, mas vários aceitam que o Deuteronômio data mais ou menos entre o Sec VII a.C.) e onde já há uma interface hebraica com o mundo grego e também já há uma assimilação grande da cultura dos babilônios e persas por parte do mundo hebreu. Essa troca com outras culturas permite que o mundo hebraico se expanda para além de uma visão de mundo mais fechada em si mesmo para tentar observar o mundo de maneira mais ampla. 

O livro de Jó é todo ele construído como uma tentativa de romper com a teologia da retribuição. Jó, que no relato é um homem justo, passa o livro todo afirmando que não fez nada para merecer o que está sofrendo enquanto seus amigos insistem que ele "vasculhe em suas ações" para encontrar o "quando" cometeu algum pecado, pois é inconcebível que Deus traga tanto mal sobre a vida de uma pessoa se ela não tiver cometido mal algum. 

À medida que a narrativa vai caminhando vemos a mesma dinâmica se efetivando até que Jó questiona o próprio Deus para saber o motivo de seu sofrimento. Com inúmeras perguntas Jó O questiona e, no entanto, Deus o responde com mais outras perguntas das quais Jó não consegue responder. 

Vários estudiosos da literatura sapiencial aponta que o livro de Jó termina em Jó 42:6: "Por isso me abomino e me arrependo no pó e nas cinzas." E o que vem posterior a isso teria sido incluído posteriormente por um escriba. 

(Sobre o ponto acima recomendo o excelente trabalho de José Vichel Lindez chamado "Eclesiastes ou Qohelét - Grande comentário bíblico" Paulus 1999 onde Lindez traz inúmeras referências e estudos de outros pesquisadores da literatura sapiencial que corroboram tanto a datação provável do texto do livro de Jó quanto o seu final em Jó 42:6)

Para vários teólogos o que se segue após Jó 42:6 se trata de um acréscimo posterior. Se prestarmos atenção ao texto que se segue a Jó 42:6 , onde Deus restitui tudo a Jó, o que o escriba faz é deixar entrar pela porta de trás tudo aquilo que todo o texto expulsa pela porta da frente que é a teologia da retribuição. Ao acrescentar uma espécie de "restituição" a Jó no final do texto, o escriba acaba por corromper a crítica que o texto  propõe. A teologia da retribuição que é negada durante todo o texto ressurge sob a pena do escriba em todo o seu esplendor no final do livro. Percebe-se com isso que tal teologia ainda é muito forte no período da escrita do texto de Jó, e um texto que acaba tendo apenas um homem em sua angústia sem as respostas divinas, com certeza seria um texto com pouquíssima aceitação nos meios mais conservadores. A noção de uma "restituição" é completamente estranha à literatura sapiencial bíblica e isso apenas corrobora a hipótese de um acréscimo posterior no texto. 

O texto terminando em Jó 42:6 dá ao texto um caráter humano demasiado humano, pois o que temos aí é um homem com inúmeros questionamentos, sem resposta, sem nada, apenas munido de sua fé. É a situação de inúmeras pessoas nos nossos dias, que a cada dia estão mais sem perspectivas, que precisam enfrentar a solidão, a acusação dos amigos, o abandono da família, o sentimento de solidão e a angústia diante do mundo sem que ninguém apareça para lhe confortar. 

A meu ver o texto de Jó nos remete à angústia diante do sofrimento que acomete a todos em algum momento da vida. Buscamos respostas, questionamos até mesmo ao próprio Deus e às vezes o que obtemos são  mais perguntas que nos inquietam ainda mais. Ao invés de um conforto da restituição temos diante de nós apenas perguntas que nos remetem a avaliarmos a nossa própria condição diante das coisas. O que temos são perguntas das quais nós também não temos respostas, assim como o outro lado se mostra como um grande vazio que não provê respostas, mas sim perguntas. 

Diante do sofrimento sem sentido, da angústia do mundo, dos momentos difíceis, o livro de Jó nos propõe olhar para nós mesmos, investigar para conhecer os caminhos por onde andamos para que possamos manter a calma da consciência tranquila de quem nada fez para merecer o que se passa. Ao mesmo tempo o livro de Jó nos leva a olhar para a nossa realidade e perceber que às vezes pouco podemos fazer para mudar o que nos acomete. Mas isso não nos leva a uma estagnação. Jó não se estagnou. Ele questionou, ele argumentou, ele se propôs contra tudo e contra todos afirmar a sua fidelidade aos seus princípios. 

Longe de propor uma resignação diante de um mundo que aparece sem sentido, o que Jó nos propõe é um agir baseado no que se crê. Não um agir que espera uma retribuição, pois tem consciência que  ela não existe, pois tem consciência que acima de si não se encontra um Deus sádico que se regozija no sofrimento alheio, ou que aposta para ver até onde vai a sua fé , mas um agir que visa uma auto-afirmação do humano, e ao mesmo tempo uma fé em Deus que pode ser questionado porque não é um Deus sádico, mas um Deus cuja misericórdia se renova a cada dia.  

A lenda sobre Jó enquanto um homem diante da angústia se assemelha a todos nós e por isso talvez possamos tomar o seu exemplo como um bom exemplo para nós. Jó nos faz pensar em todos aqueles  dos quais também são tiradas todas as coisas, dos que se encontram à margem do mundo, lembrar dos feridos das guerras, lembrar de Gaza, Pinheirinhos, os povos indígenas, e tantos outros dos quais são tirados todos os direitos restando apenas a sua fé em algo, quando conseguem mantê-la. O exemplo de Jó nos aponta que é possível talvez manter a fé, apesar de toda situação adversa, e que para além disso, nos aponta que é possível também agir com o que se têm para tentar fazer do seu mundo um mundo com sentido. 

As perguntas de Jó são perguntas pelo sentido do seu sofrimento, mas mesmo quando as respostas não vêm, isso não o impede de agir. 

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