sábado, 20 de setembro de 2014
Considerações sobre Lamentações 5,15-16 - A lamentação e a possibilidade da dança.
Dos nossos corações fugiu a alegria; nossas danças se transformaram em lamentos.
A coroa caiu da nossa cabeça. Lamentações 5:15-16
O contexto do livro de Lamentações é bem conhecido dos leitores do texto bíblico. O reino do norte (Israel) tinha sido levado cativo pela Assíria em 722 a.C, e em 587 a.C é a vez do reino do Sul (Judá) ser levado cativo por Nabucodonosor. O texto de Lamentações, escrito pelo profeta Jeremias, tem como contexto o exílio babilônico e se constitui um grande lamento pelo que o povo de Israel está passando.
O momento com certeza é muito difícil, e nessas horas parece que toda a esperança, até mesmo do profeta, se foi e não existe mais nada ou alguém em que se possa apoiar. O profeta coloca isso de forma muito crua nos versículos que abem esse texto.
Várias vezes a nossa situação é homóloga ao do texto de Lamentações. Do nosso coração fugiu a alegria, as danças se transformaram em lamentos e a coroa caiu da nossa cabeça. Os dias são difíceis, a sensação da abandono parece nos assolar e não vemos nenhuma saída no horizonte. No caso de Jeremias que morreu no cativeiro, essa foi uma realidade que se impôs de forma definitiva. Ou seja, não houve salvação, não houve "retribuição pelas boas práticas", nada além da morte no cativeiro. No entanto, mesmo com um cenário desolador como esse, Jeremias ainda propõe que possamos "trazer à memória o que nos dá esperança." (Lm 3,21) Ou seja, mesmo que a situação de fato não mude, a minha atitude para com aquele momento fará com que pelo menos ele mude para mim. A fé de Jeremias o leva a afirmar "Ó cidade de Sião, o seu castigo terminará; o Senhor não prolongará o seu exílio." (Lm 4,22) Mesmo que para ele essa verdade nunca tenha se concretizado, a sua fé o fazia afirmar tal possibilidade.
Aqui que vejo como que a dimensão da fé (independente da forma como ela se manifeste) se coloca de forma fulcral na relação do indivíduo com o mundo. A fé pode ser um grande instrumento para uma leitura mais positiva do mundo. Não falo de uma fé inerte, que apenas contempla as coisas, mas de uma fé que faz com que o sujeito se posicione diante da realidade e proponha a mudar tal realidade. Jeremias encarna esse ideal no livro de Lamentações. Mesmo não tendo poder para mudar a situação do cativeiro, ele insiste em apregoar aquilo que ele acredita ser o caminho para a mudança da situação. Aqui a dimensão existencial da fé se mostra de forma muito forte. A afirmação é sempre permeada por uma dúvida do profeta em relação a ela, o último versículo de Lamentações nos indica essa dimensão. Jeremias termina suas lamentações clamando: "restaura-nos para ti, Senhor, para que voltemos; renova os nossos dias como os de antigamente, a não ser que já nos tenha rejeitado completamente, e a tua ira contra nós não tenha limite!" (Lm 5,21-22) Mesmo que haja a possibilidade dessa ira de Deus não ter limite, ainda assim Jeremias está disposto a confiar. Novamente apontando para uma dimensão da fé que sempre coloca a dúvida em seu centro, mas que não nos impede de clamar. Muito pelo contrário, é pelo fato de haver dúvida é que somos capazes de nos lançar confiando que algo ou alguém nos segurará pelos braços.
A insistência na oração a Deus, a tentativa de explicação do porquê o povo ter sido levado ao cativeiro, a escrita dos lamentos, isso tudo nos mostra um profeta que não está simplesmente parado esperando que Deus aja de alguma forma, mas que está se empenhando em tentar compreender a sua situação e, na medida do possível, mudá-la. Jeremias ora, mas também escreve e lamenta junto ao povo. Ele ora, mas tenta explicar, tenta entender o porquê de sua situação. A chave que encontra para isso é a doutrina da retribuição tão presente no imaginário israelita de sua época. Para Jeremias o povo foi levado ao cativeiro por causa do "pecado dos seus profetas e as maldades dos seus sacerdotes." (Lm 4,13) Embora isso não mude a realidade, dá ao profeta uma chave de compreensão da situação. Por entender a sua situação dessa forma o profeta é capaz de orar pedindo a Deus que os ajude, é capaz de se voltar ao povo e pedir que se arrependam para que Deus faça a sua parte. Se o pecado nos trouxe até aqui, convertamos para que Deus mude a nossa sorte. Essa é a tônica de algumas das lamentações de Jeremias. A solução de Jeremias pode parecer pouco eficaz, mas ela traz consigo um sopro de esperança para o povo e para o próprio profeta.
Esse Deus que pode ou não atender as minhas orações, que pode ou não estar ali de fato, que pode ter "nos rejeitado completamente", que sempre se constitui como um grande vazio para além de nós mesmos, é para nós motivo de esperança. É para nós uma possível chave de leitura para tentar compreender a nossa situação. Talvez por isso as nossas visões sobre Deus sejam sempre tão precárias; Desde o Deus mais infantilizado - tal como aquele que sabe todas as coisas, resolve todos os meus problemas, que aparece como pai que sabe de tudo etc, - até um Deus visto como apenas um sentido possível para a existência, - uma representação de um pai "fraco", mas que ama e isso garante um sentido,- nossa visão sobre Deus parece querer dar conta apenas desse vazio que nos circunda e nos habita sem nunca conseguir realizar tal tarefa.
O nosso cenário às vezes parece tão desolador quanto o cenário vivido por Jeremias; no entanto o profeta nos mostra uma possível ação diante do caos que é o de dizer da esperança que habita em nós, que é o de agir a partir do que acreditamos para propor um caminho para mudar a situação presente, que é o de não se contentar com o presente assolador, mas estar disposto a construir um futuro melhor e lutar pela libertação do povo. Mesmo que tal tarefa nunca se veja concretizada ela se mostra como fonte de ânimo e alimenta a busca por um mundo onde a alegria não fuja mais de nós, e os lamentos se transformem em dança.
Filósofo. Especialista em Teologia. Mestre em Filosofia. Doutor em Psicologia. Doutor em Filosofia.
domingo, 14 de setembro de 2014
Pequena reflexão para um domingo. (Amós 6,6)
"Vocês bebem vinho em grandes taças e se ungem com os mais finos óleos, mas não se entristecem com a ruína de José". Amós 6:6
Recentemente estava lendo o livro de Amós e o versículo acima me chamou bastante atenção. Curiosamente o texto bíblico é em grande parte um texto para a coletividade. Raramente vemos instruções de cunho mais pessoal sendo dadas principalmente no Antigo Testamento. Obviamente que há instruções pessoais, Deus falando com Gideão, Moisés, Samuel, etc, mas até mesmo nesses exemplos a questão da coletividade é que "inspira" a voz de Deus.
Deus fala com Gideão sobre o livramento do povo, o mesmo com Moisés e Samuel. Parece haver sempre um apelo ao comunitário no texto bíblico. Se no Antigo Testamento esse apelo tem em vista apenas o povo de Israel, com o Novo Testamento esse apelo alcança todo o mundo nas cartas de Paulo e João. O princípio da coletividade se mostra como um grande norteador da proposta bíblica.
O versículo de Amós também nos mostra essa mesma dimensão coletiva que várias vezes é tão aclamada pelos cristão, mas muito pouco praticada. Obviamente que é muito mais fácil chorar com os que choram do que se alegrar com os que se alegram, no entanto se mostra muito mais complicado chorar com o outro enquanto tenho motivos e planos para me alegrar. Esse abrir mão da minha alegria em prol da tristeza do outro parece ser o movimento mais complicado de ser feito e é exatamente a isso que o texto de Amós parece se referir.
Não há uma condenação da alegria no texto de Amós, mas há uma advertência de que não se entristecer com a ruína de José é algo que não está certo. Se José está em ruínas, o vinho e os óleos finos se tornam secundários.
O que o texto de Amós nos convida a fazer é estarmos dispostos a descentrarmos de nós mesmos em prol do sofrimento do outro. Para o profeta parece fazer muito pouco sentido essa "alegria" dos vinhos e óleos finos enquanto uma parte do povo sofre. Isso às vezes acontece muito próximo a nós que não nos damos conta dessa espécie de compromisso exigido pelo profeta.
Estar disposto a abrir mão da minha alegria porque o outro está sofrendo parece ser o movimento proposto pelo profeta e que novamente tem a coletividade como alvo em detrimento do caráter individual. Tal proposta de Amós vai de encontro à nossa contemporaneidade tão centrada no individualismo e no "cada um por si". Ser capaz de chorar com o que chora mesmo quando se tem tudo para estar bem demonstra talvez um entendimento mais maduro da proposta bíblica e ao mesmo tempo nos faz perceber que a tônica dos profetas do Antigo Testamento está em uma interessante consonância com a proposta de amor trazida por Jesus no Novo Testamento.
Filósofo. Especialista em Teologia. Mestre em Filosofia. Doutor em Psicologia. Doutor em Filosofia.
terça-feira, 2 de setembro de 2014
Um aguardo esperançoso...
Aguardo os dias em que as trevas não sejam mais tão presentes
Aguardo os dias em que as nuvens pesadas e carregadas não estejam sobre a minha cabeça insistindo em não chover para passar, mas permanecendo como sombra que impede toda luz de brilhar.
Aguardo os dias em que os momentos felizes sejam mais abundantes juntos que separados
Aguardo os dias em que eu não precise fingir estar bem para suportar mais um dia trágico em uma vida cada vez mais sem sentido.
Aguardo os dias em que a brisa seja leve, os dias sejam frescos, o sol ilumine a terra fazendo com que seja agradável.
Aguardo os dias em que a gravidade não seja tão forte de forma a puxar tudo de forma indestrutível para baixo fazendo parecer que cada parte do meu corpo pesa muito mais que bolas de chumbo
Aguardo os dias em que o silêncio não seja sinônimo de incômodo, mas sinônimo de cumplicidade
Aguardo os dias em que na casa onde havia felicidade, riso e alegria, não seja habitada pela tristeza, angústia e pesar.
Aguardo os dias em que realmente os dois voltarão a ser um, onde realmente possamos falar que andam juntos em prol de um objetivo.
Aguardo os dias em que os diálogos não resultem sempre em problemas, mas que possam ser trocas interessantes de ideias.
Aguardo os dias em que as palavras não sejam ditas com o intuito de ferir, machucar, mas como refrigério para alma, como conforto.
Aguardo os dias em que a paz esteja mais presente
Aguardo os dias em que não precise aguardar tudo isso.
Filósofo. Especialista em Teologia. Mestre em Filosofia. Doutor em Psicologia. Doutor em Filosofia.
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