quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Esdras, Neemias, Trump - O discurso xenofóbico







A Bíblia conta em um dos chamados "livros históricos" a história de Esdras. Esdras era um escriba que voltou do cativeiro juntamente com o povo de Israel para reconstruir os muros da cidade e também reconstruir o templo de Jerusalém que havia sido destruído na invasão babilônica. Esdras havia sido enviado pelo rei Artaxerxes com autoridade para recolher ofertas para a reconstrução do templo, bem como com o poder de nomear juízes e magistrados para Jerusalém. O texto bíblico conta que Esdras era muito zeloso para com a lei de Deus e isso é algo que queria ressaltar a partir da história desse escriba. Depois de iniciar o seu propósito em Jerusalém, Esdras se volta para a lei de Deus e percebe que o povo de Israel está vivendo em grande pecado, pois vários homens das tribos de Israel tomaram para si esposas que não eram israelitas, fazendo com que o povo caísse em pecado e misturasse-se com quem não deveria. 

Podemos perceber que há uma certa noção higienizadora (e porque não dizer, xenofóbica) no meio do Israel bíblico que retorna do cativeiro na Babilônia. A relação com os povos estrangeiros foi sempre problemática se pegarmos alguns relatos do antigo testamento. Mesmo diversas passagens do Deuteronômio admoestando para que se preserve o direito do estrangeiro, admoestando que o estrangeiro deva ser tratado como um igual diante do povo, ainda assim parece que a necessidade constante de reafirmação do direito do estrangeiro aponta para uma falha no mecanismo interno de funcionamento do Israel bíblico. Esta noção xenofóbica fica muito clara nos dois grandes representantes da volta de Israel do exílio, a saber, Neemias e Esdras. Ambos procuram "limpar" Israel de todo contato mais próximo com o estrangeiro. Esdras propõe que os homens casados com mulheres estrangeiras as mandassem embora para as suas terras, e Neemias entra até em brigas para que o povo se afaste dos estrangeiros que estão entre eles. 

A eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos me fez lembrar o caso de Esdras e Neemias. O discurso xenofóbico de Trump (aqui como um representante de um discurso que permeia também toda a Europa com a crise dos imigrantes) se assemelha de forma muito grande ao discurso promovido por esses dois líderes de Israel no período pós-exílico. Curiosamente ambos os discursos são feitos em momentos de extrema confusão social. No caso de Neemias e Esdras a confusão é nítida, ou seja, o povo está retornando do exílio, muita gente já com outra vida feita fora de Israel, com outra visão de mundo sendo agora levado a habitar com outro tipo de gente (basta lembrar que há um remanescente de Israel que não havia sido levado para o cativeiro), com outras visões de mundo. As leis que regiam o povo no exílio não são mais válidas no novo contexto, ou seja, o povo se encontra sem nenhuma referência para lidar com suas novas demandas. Esse é o período propício para que os discursos  mais rígidos, fundamentalistas encontrem morada nas mentes e nos corações. 

Diante da ausência de referencial, os discursos de Neemias, Esdras, Malaquias (profeta do período) e recentemente o discurso de Donald Trump contra os estrangeiros (latinos, mexicanos, muçulmanos) soam como "boa saída", soam como "norte" para um povo desbussolado. O caráter xenofóbico desses discursos aponta para uma dimensão interessante em relação ao diferente. Esta aversão ao diferente, ao estrangeiro que habita entre o povo é bastante sintomática. Algo interessante que a psicanálise nos mostra é que nós mesmos somos habitados por um estranho que nos domina sem diversas vezes tomarmos conta desse fato. O inconsciente enquanto instância psíquica nos apresenta como esse grande estrangeiro que habita em nós e que nos incita que o aceitemos. Esse reconhecimento de que eu mesmo não sou senhor em minha própria casa, mas sou assenhorado pelo estranho que em mim habita deveria soar para nós um grande convite para que o diferente fora de mim fosse aceito com mais facilidade. No entanto, essa resistência ao diferente aponta para um grande dificuldade de aceitar o diferente em mim mesmo e quando isso encontra formas de extravasar a xenofobia se faz presente de forma nítida. 

Esdras, Neemias e Trump representam para nós um mesmo tipo de discurso em nome de valores supostamente mais elevados. Esdras e Neemias leem o texto da lei e a interpretam de forma a esquecer o "espírito da lei" que aponta para o oposto do que é promovido por eles, ou seja, aponta para o respeito ao estrangeiro, aponta para o acolhimento do mesmo e não para a sua expulsão, e em nome de uma interpretação da lei promovem a expulsão de vários estrangeiros, o rompimento de diversas famílias e a instauração de um caos social no meio de Israel. Donald Trump da mesma forma, ao incitar os discursos de ódio, um fundamentalismo moral em nome de supostos valores mais elevados, valores "cristãos republicanos"  promove ondas de violência que começaram dias após a eleição presidencial com manifestações de grupos como Klux Klux Klan que pensávamos jamais teriam novamente representatividade para uma expressão pública. Os discursos de ódio contra os latinos, mexicanos, muçulmanos, negros encontraram uma certa legitimação com a eleição de Trump e isso é algo extremamente preocupante para o cenário mundial. 

Esse tipo de discurso sempre encontra resistência e no texto bíblico isso não foi diferente. Os textos de Jonas e de Rute são duas respostas ao discurso xenofóbico promovido por Esdras e Neemias. Jonas que é enviado aos ninivitas e vê que Deus é sempre misericordioso com todos, inclusive para aqueles que estão para além dos muros de Israel, e Rute, a moabita, que encontra graça diante de Deus e é restaurada do que seria a sua desgraça. Ambos os livros apontam para aquilo que a própria lei do deuteronômio insiste veementemente, ou seja, que o estrangeiro deve ser considerado como um igual entre o povo e que sua causa não pode ser deixada de lado ou menosprezada, pois ao fazer isso se desobedece aos princípios divinos. O convite de Deus em relação ao estrangeiro sempre foi o da acolhida, o do socorro, o de considerá-lo como um igual no meio do povo e nunca foi o de menosprezá-lo e expulsá-lo do meio do povo. Percebemos que facilmente nos esquecemos que o diferente deve ser acolhido, pois ele também é imagem de Deus e se mostra a nós como uma oportunidade para que a misericórdia se exerça mais fortemente no nosso meio.