Um texto bíblico que sempre me encabulou é o texto de 2 Reis 2,23-24 em que Eliseu é chamado de calvo por um grupo de homens (traduzidos por "meninos" o termo "quetanin" no hebraico, o que gera uma grande confusão na hora de se entender a história) e por conta disso saem duas ursas da floresta e devoram os zombadores. O texto em si é extremamente curioso, e o mais curioso é o que ele estaria fazendo no texto bíblico, pois não há ali absolutamente nada aparentemente utilizável como valor moral, histórico, etc.
Segue o texto.
Então subiu dali a Betel; e, subindo ele pelo caminho, uns meninos saíram da cidade, e zombavam dele, e diziam-lhe: Sobe, calvo; sobe, calvo! E, virando-se ele para trás, os viu, e os amaldiçoou no nome do Senhor; então duas ursas saíram do bosque, e despedaçaram quarenta e dois daqueles meninos. 2 Reis 2:23,24
Como disse acima, o texto em si é bastante curioso, mas se atentarmos um pouco para os detalhes do texto talvez ele tenha algo a dizer para além do absurdo do relato. Primeiramente temos que ter em mente que a Bíblia não é um livro de histórias que relata coisas que de fato aconteceram. Alguns textos bíblicos tem sim essa conotação de relatar fatos verídicos, mas vários textos bíblicos nos contam histórias que não aconteceram, mas servem para ilustrar pontos da teologia da época, aspectos da visão de mundo da época, etc. Ler o texto bíblico de maneira literal, tentando encontrar provas de que todos os relatos seriam relatos de fatos históricos é um grande equívoco e gera várias vezes diversas confusões.
A primeira coisa que gostaria de ressaltar é o fato de que Eliseu estava subindo para Betel. Betel era a cidade centro do culto dos reis do norte em Israel (1 Reis 12,29; Am 7,3), ou seja, Eliseu (profeta de Israel) estava indo em direção ao centro do culto aos outros deuses dos reis do norte. Esse dado é interessante por apresentar duas visões de mundo concorrentes em questão. Eliseu enquanto profeta de Deus, e o culto aos outros deuses, comum do reino do Norte em Israel.
Depois disso alguns rapazes começam a zombar de Eliseu de maneira jocosa dizendo "sobre calvo; sobe calvo!" Essa expressão de zombaria dos rapazes tem conotações interessantíssimas e podem significar diversas coisas.
A primeira que gostaria de pontuar é que o termo "sobe" descrito ali em hebraico é o verbo "alah", que não por coincidência é o mesmo verbo utilizado para descrever que Elias "subiu" aos céus (2 Reis 2,1; 2,11), ou seja, a zombaria dos rapazes a Eliseu pode ser entendida como um desejo por parte dos rapazes para que Eliseu morresse, ou simplesmente fizesse o mesmo que Elias havia feito. Dessa forma a zombaria dos rapazes aparece de forma muito mais trágica do que parece a princípio. Ao pedir para que ele "subisse", os rapazes estavam desejando a morte de Eliseu. Os rapazes que estavam no caminho para Betel preferiam a morte do profeta à mensagem que ele trazia para Betel.
O outro termo logo em sequência é o termo "calvo" que no contexto bíblico poderia indicar várias coisas, mas uma que era muito comum no período profético é o sentido de luto. Neste sentido é bem provável que Eliseu estivesse calvo pelo luto em relação a Elias que acabara de ser levado ao céu. A calvície no contexto bíblico está muito associada à noção de humilhação também e neste sentido os rapazes poderiam estar tentando humilhar Eliseu o chamando de calvo como uma antítese da autoridade profética que ele teria recebido como sucessor de Elias. Não tem como, no entanto, definir se Eliseu era ou não era calvo, mas a partir dessas conotações sobre a calvície podemos entender melhor o texto.
O que aparentemente está em jogo nesse relato é a oposição entre o culto aos outros deuses do norte e a autoridade do profeta de Israel. Eliseu como sucessor de Elias muito provavelmente seguiria o empreendimento de seu mestre contra a idolatria do norte e isso era algo que a monarquia do norte não apoiaria. Basta lembramos do caso de Elias com os profetas de Baal para entendermos o grau de disputa que havia na época. A tensão religiosa nesse contexto é algo extremamente grande e Eliseu se encontra no centro dessa polêmica por ser o sucessor de Elias.
O texto segue dizendo que Eliseu amaldiçoou os rapazes e saíram duas ursas do bosque e devoraram 42 desses rapazes, o que dá a entender que poderiam ser mais do que 42 rapazes a zombar de Eliseu. No Antigo Testamento toda "maldição" vem apenas de Deus e dessa forma Eliseu ao amaldiçoar os rapazes está fazendo uso da autoridade profética que lhe confere ser "a boca de Deus". O profeta é a boca de Deus, por isso que a fala do profeta é o mesmo que a fala de Deus, e neste sentido é que a "maldição" de Eliseu deve ser entendida. O Deus de Israel amaldiçoa os deuses do norte e aqueles que falam em nome deles.
O texto de 2 Reis 2,23-24 aponta então para a tensão religiosa que havia no reino do norte em Israel representada por um lado por Elias e Eliseu, e pelo outro lado os rapazes zombadores. Interessante notarmos que Elias e Eliseu são considerados como "profetas violentos", ou seja, as suas intervenções são relatadas várias vezes com um teor bélico para corroborar a visão do Deus de Israel da época. Muito se discute sobre a época da escrita do texto de 1 e 2 Reis, mas vários autores localizam esses textos entre o século 8 e o século 6 antes de Cristo, sendo composto por diversos autores e corroborando a teologia deuteronômica.
Neste sentido fica então fácil de compreender que as ursas que saem do bosque representam uma espécie de juízo divino (que se dá de forma violenta) contra aqueles que se levantassem contra o profeta de Deus. Se o deus da teologia deuteronômica é, por excelência, um Deus mais violento, a intervenção divina contra os zombadores tem também que ser violenta para ser lido como juízo de Deus e ao mesmo tempo como forma de corroborar o ministério profético de Eliseu como sucessor de Elias. Esse texto então tem como objetivo evidenciar que o Deus que fala pela boca do profeta de Israel é o Deus que devora todos aqueles que se insurgem contra Ele.
Entre os deuses de Betel e o Deus de Israel as ursas representam a vitória deste sobre aqueles. Muito semelhante a esse relato é o relato de Elias contra os profetas de Baal descrito em I Reis 18. Eliseu aqui repete o gesto de seu mestre e se mostra como profeta do Deus de Israel capaz de realizar a justiça divina contra os blasfemadores do seu ministério, afinal, temos que lembrar que o profeta de Deus é a "boca de Deus" que fala ao povo. Zombar do profeta é zombar do próprio Deus, e isso dentro de uma teologia deuteronômica é visto como algo que não deve ser feito sob pena de punição com a morte.
Fica claro, portanto, que o relato de 2Reis 2,23-24 tem me mente ressaltar o poderio do Deus de Israel frente aos deuses do norte. Ao invés de "fazer subir" a Eliseu como demandado pelos zombadores, a história oferece uma torção que acaba por punir com a morte aqueles que pediam a morte do profeta. Aqueles que pedem a morte do Deus de Israel são mortos por Ele para mostrar o seu poder sobre os outros deuses. Dessa forma entendemos o motivo desse texto emblemático se encontrar no relato bíblico, afinal ele corrobora a visão de Deus como Deus sobre todos os outros deuses e legitima o ministério de Eliseu frente aos outros profetas do norte.
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