quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Tentativa de um texto catártico.




Quem, se não os mais próximos, para suportar o pior de nós? Quem, se não os mais próximos, para suportar os momentos de fraqueza, os momentos em que nenhuma teoria funciona, os momentos em que todas as construções se mostram apenas mero balbuciar diante da angústia dilacerante? Quem, se não os mais próximos, se responsabilizará juntamente conosco diante do momento debilitante que assola o mais estóico dos homens? É sempre no momento da fraqueza, no momento em que as lágrimas escorrem, no momento que o coração palpita freneticamente que necessitamos desse auxílio mais do que nunca. 

Em uma sociedade imediatista como a nossa acabamos, no entanto, construindo uma ideia extremamente destrutiva para o sujeito de que os mais próximos devem estar sempre disponíveis o tempo todo, como uma espécie de "cola" que nos uniria em uma relação extremamente fantasiosa em relação ao outro. No mundo dominado pela tecnologia é muito fácil se perder nessa armadilha contemporânea do outro sempre presente, do outro como suplência permanente para qualquer falta, para qualquer problema, para qualquer situação. Paradoxalmente em uma sociedade individualista o que mais se percebe é uma espécie de demanda constante pelo outro virtual que se manifestará desde as conversas em aplicativos de comunicação até mesmo em posts nas redes sociais. Essa demanda constante, esse requerer sempre que o outro me veja, me curta, me retweete, me responda aponta, no entanto, para esse sujeito completamente desamparado, e não apenas do ponto de vista da psicanálise, mas desamparado das próprias estruturas que o ajudariam a lidar melhor consigo e com as outras pessoas. Há um "gap" aí que fica sempre vazio, que se resiste à simbolização e que por isso aponta para a angústia como grande sintoma contemporâneo. 

Não é que o outro falta, afinal, o outro não "faltou" em nada. Ao invés disso há um excesso do fantasma do outro onipresente que invade o sujeito e por isso ele sofre. Esse fantasma do outro onipresente impossível, desse outro "sempre ali" é o que acaba por aumentar a angústia do sujeito contemporâneo quando ele se mostra impossível. Essa saída ilusória se assemelha ao Godot de Beckett que nunca aparece, mas move muita coisa naqueles que o esperam. "Talvez amanhã" é o máximo de esperança que se pode ter da chegada disso que é esperado. Aqueles que esperam Godot se propõem a ir embora já que ele não virá, no entanto não conseguem ir embora. Godot é esse que pela sua ausência física, mas presença plena é o que os impede de se mover. A espera desse vazio capaz de dar sentido à espera dos dois homens se mostrou apenas como promessa frustrada apontando talvez uma crítica à sociedade da época do pós-guerra. 

Neste sentido, nós, os sujeitos contemporâneos, desprendidos, auto-suficientes, nos mostramos completamente desamparados, pairando sobre o vazio quando as coisas não seguem nossas expectativas imaginárias, quer elas sejam no trabalho, nos relacionamentos diversos, etc. Somos extremamente fragilizados diante de qualquer coisa que frustra as nossas expectativas, pois não vemos nada que seja capaz de nos sustentar diante do vazio hipermoderno. Como bem aponta Beck e Beck-Gernsheim (O caos totalmente normal do amor. Editora Vozes. 2017) talvez apenas o amor (caótico como ele é) seja capaz de subsistir como amparo nessas horas em que a dor extrema é a companheira mais frequente. Mas tal amor também só pode ser visto e lembrado pelo sujeito a partir de si mesmo. Visto nos atos que os outros manifestam de compaixão para conosco durante os momentos ruins, e lembrado quando tais manifestações não aparecem por diversos motivos diferentes. 

Curioso, no entanto, reparar que na hipermodernidade a própria noção de amor acaba por se tornar um único ponto de ancoragem que ainda subsiste à crise dos metarrelatos da modernidade, ou seja, por mais que atualmente as instituições como casamento, religião, política, etc. se encontrem em grande medida desacreditadas, ou até mesmo bastante reconfiguradas, o amor se mostra como algo capaz de transcender todas estas instituições e se mostra em grande medida subversivo por se manter  como firme elo entre as pessoas. É apenas esse amor que é capaz de tirar o homem hipermoderno do seu sentimento de angústia dilacerante. No entanto, como bem mostrou Simmel lá nos anos 50 do século passado a tendência de uma sociedade individualista é ir cada vez mais reduzindo os seus ciclos de amizades e relacionamentos, culminando naquilo que ele chamou de "tribalismo", ou seja, o mundo dos pequenos grupos, guetos, associações menores, etc. 

Agora, no século 21, podemos dizer que esses círculos se tornam ainda mais restritos de forma que nem mesmo a pertença a uma comunidade, ou a um "gueto", ou a um grupo é capaz de tirar o sujeito da angústia que o aflige. Tais grupos, por mais que funcionem como espécie de identificação para o sujeito, se mostram extremamente frágeis nas suas relações entre os membros muito por conta da própria dinâmica individualista a que estão submetidos de forma que em diversos dele o que une os participantes do grupo não é o vínculo de amor entre eles, mas a adesão à causa externa que os identifica um com os outros. Neste sentido chegamos ao ponto com o qual iniciamos o nosso texto, ou seja, no momento da angústia, da dor dilacerante, da dificuldade, quando o pior de nós se mostra serão apenas os mais próximos que serão capazes de nos ajudar. O desafio nosso é tentar se munir de cada vez mais "próximos" para que saibamos pulverizar nossas demandas sem sobrecarregar ninguém com elas. 

Aqui a alusão com Voldemort, o personagem de Harry Potter, pode ser interessante. Da mesma forma que, para sobreviver ele precisou dividir a sua alma em várias Horcruxes, nós também precisamos aprender a dividir a nossa libido sobre os diversos próximos para que possamos subsistir aos dias maus de forma que se um faltar, haja algum outro suporte para que o sujeito não se perca. (Obviamente que a comparação aqui é extremamente limitada, pois o próprio Voldemort se enfraquece à medida que se divide, ao passo que o sujeito que consegue "pulverizar sua libido" se fortalece na relação consigo e com o outro) O processo de deslibidinização do outro (que em grande medida pode ser associado à perda do objeto transacional winicottiano, uma vez que não há nenhuma restrição em pensar um outro indivíduo como esse objeto) pode várias vezes ser doloroso, pode ser complicado, pois não existe uma fórmula para tal, mas mesmo assim é preciso esse esforço de nossa parte para que a nossa vida seja mais saudável, assim como a vida daqueles poucos próximo a nós. Obviamente que este processo de deslibidinização será apenas uma saída provisória para a angústia, mas a meu ver ele se torna um processo cada vez mais necessário na hipermodernidade em que a fixação da libido em algum objeto/pessoa se mostra altamente destrutiva e não raras vezes leva o sujeito a agir de forma extremamente violenta para com tal fixação. Não estaria aqui uma possível pista para o ódio atual aos imigrantes, aos pobres, à esquerda e suas pautas ? 

No final o amor vencerá !

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