O cristianismo é em si uma religião muito interessante, talvez uma das mais interessantes do ponto de vista do ocidente e porque não dizer, talvez a única religião possível no ocidente. Não me entendam mal quando digo "a única religião possível no ocidente", o que tenho em vista não é uma espécie de visão de superioridade da religião cristã em detrimento de outras religiões, mas o que tenho em mente é que a própria mentalidade ocidental está baseada em noções cristãs.
Um aspecto interessante do nosso tempo, no entanto, é o constante esvaziamento dos diversos relatos que sustentam de alguma forma a nossa realidade; é como se de alguma forma, a nossa hipermodernidade tivesse que ser capaz de enfrentar o vazio que a assola sem nenhum tipo de discurso capaz de nortear definitivamente o sujeito. O discurso religioso perdeu sua autoridade, a política perdeu sua autoridade, a ciência perdeu sua autoridade, a própria razão perdeu a sua autoridade, ou seja, o que restou para o sujeito hipermoderno é apenas um "si-mesmo" fragmentado diante de uma realidade extremamente multifacetada com a qual o sujeito não dá conta de lidar. Aqui podemos entender o pipocar de novas religiões, novas formas de espiritualidades, novas propostas de diálogos inter-religiosos que, a meu ver, perdem um pouco o foco da questão.
De uma certa forma podemos dizer que os chamados "novos espiritualismos", ou se preferirem o movimento da Nova Era entram no cenário ocidental exatamente no momento em que os discursos reguladores entram em declínio. É deste momento uma ênfase em uma espécie de espiritualidade autêntica capaz de sobrepujar a ilusão da realidade em nome de uma realidade superior, de alguma forma inacessível e que apenas mediante um esforço hercúleo do sujeito seria capaz de ser alcançado. Não é nem um pouco curioso que o budismo tenha alcançado diversos adeptos no ocidente pós-década de 60. A sabedoria oriental acaba funcionando como uma espécie de sutura no buraco aberto pela perda dos meta-relatos reintegrando a fragilidade humana na ordem cósmica. Nada melhor que uma visão holista do mundo para recolocar a questão do sentido perdido e restaurar a noção de vazio, mas agora sob um aspecto "ontológico", enquanto organizador de sentido para além de qualquer sentido.
Esse "nada" almejado pelo Zen budismo a partir da noção do Nirvana se mostra como uma tentativa, no ocidente, de reintegrar o sujeito perdido da hipermodernidade em um universo de sentido, ou seja, o sujeito desbussolado encontra um possível norte se reintegrando à ordem das coisas por meio da compreensão do seu lugar no mundo, da condição da sua alma, do seu corpo, etc. É como se numa curiosa torção a razão ocidental em declínio precisasse voltar para o Oriente na busca de algo que a há sobrepusesse, uma espécie de "racionalidade 2.0" capaz de reintegrar a ordem do cosmos perdido.
Mas não seria a proposta cristã no Ocidente o anverso desta visão holista proposto pelos orientais? No cerne da mensagem cristã não estaria exatamente o oposto de uma visão holista, mas apenas o abraçar do caos tipificado no exemplo do Cristo que é abandonado por Deus na cruz?
Neste sentido entendemos porque que Star Wars se encontra completamente alheio ao universo cristão. Para além da questão moral envolvida, (onde geralmente a questão se coloca, a meu ver de forma completamente equivocada) o que está em jogo no mundo de Star Wars é muito mais uma visão holista em relação à necessidade da "força" como organizadora do mundo, como ela sendo algo que penetra em todos e ao mesmo tempo é responsável por uma espécie de "equilíbrio do mundo", do que a proposta de ruptura que o cristianismo propõe. Um ponto interessante é a vinculação que se tenta fazer no universo de Star Wars entre a propriedade metafísica da força e seu aspecto biológico. Basta lembrar que Anakin Skywalker possui um número de células específicas em quantidades absurdamente maiores que a média das crianças de sua idade, o que já aponta para uma tentativa de biologização das capacidades do uso da força. Em última instância é como se o uso da força fosse possível a partir de uma espécie aleatória de combinação genética. Não estaria aqui exatamente o ponto em que a ciência contemporânea insiste em tentar reduzir o sujeito a apenas um conjunto de sinapses e interações neuronais? Neste sentido podemos pensar que Star Wars funciona como uma espécie de "grito de socorro pop" em um mundo onde não há mais discurso organizador; talvez aí podemos entender o sucesso da saga que até hoje arrebata milhões ao cinema. Michael Heim, em seu interessante livro "The metaphisical of virtual reality" (1993) chega a afirmar que toda metafísica contemporânea seria uma espécie de resposta a Star Trek. Embora não fosse tão longe assim, acredito que a ideia é interessante para o ponto que estamos colocando aqui, ou seja, a tentativa do ocidente de retornar a uma visão holista de mundo diante da quebra dos meta-relatos.
Neste mesmo contexto que entendemos aquilo que chamamos de "religião light", ou seja, uma tentativa de reintegrar no universo do capitalismo tardio uma tentativa de espiritualidade. E aqui é interessantíssimo pensar em que medida o budismo ganha muita força na nossa sociedade do capitalismo tardio funcionando como suporte ideológico para tal capitalismo. Hoje em dia é bastante comum vermos diversos lugares oferecendo práticas de meditação para executivos, Yoga para produzir melhor, a proposta de um auto-conhecimento como forma de expandir seus relacionamentos e contatos, etc. É como se para produzir melhor a sensação de pertencimento a um mundo de sentido holista precisasse estar presente, e ao mesmo tempo, o suporte ideológico do budismo funciona como uma espécie de ontologização desse nada como forma de garantir ao sujeito um novo pertencimento. O que se perde de vista nesse budismo vulgar é a noção de que o Zen Budismo não defende um fortalecimento do Self, mas sim a consciência de que na realidade não há Self, a consciência de que até mesmo o Self é ilusório. A proposta do Zen budismo é muito mais estrutural do que o capitalismo tardio quer fazer parecer na sua apropriação dessa religião.
A reforma protestante de uma certa forma inaugura a modernidade ocidental e ali está o que aqui chamo de ruptura provocada pelo protestantismo que em grande medida é o anverso do Zen Budismo. Quando no protestantismo o homem pode ter acesso direto a Deus por meio da Bíblia, não mais precisando da mediação da instituição, abre-se caminho para o que se tornará a tônica desse sujeito que visará mais do que nunca se aproximar de Deus por si mesmo. No entanto, a ruptura maior trazida pelo protestantismo é a responsabilização plena do sujeito diante da realidade do mundo sem a possibilidade de nada além dessa responsabilidade. É aqui que a noção de predestinação é importante para o protestantismo. Como não tem como saber se sou ou não predestinado à salvação ou à perdição cabe a mim agir de forma a ter sempre o bem como meta. O que acontece é que não há uma dinâmica de "troca" (lembremos toda a crítica de Lutero às indulgências, etc.) entre Deus e homem, mas há apenas a responsabilização do sujeito por todo o bem que ele pode fazer. Aqui percebemos o cerne da questão Weberiana em "A ética protestante e o espírito do capitalismo", é só a partir do momento que a salvação não mais depende do homem, não mais depende de trocas é que é possível agir de maneira a querer sempre mais, a produzir sempre mais, etc.
O protestantismo neste sentido marca o nosso ocidente de uma forma tal que é impossível retornarmos a uma visão holista da realidade. O Deus que morre na cruz evidencia que aquela visão antiga de um Deus que habita os céus e está pronto para intervir no mundo também morre ali, ou seja, o cristianismo atesta para o mundo que há apenas o mundo e mais nada, mas notem que esse Nada não é o Nada do Zen Budismo, mas uma ausência até mesmo de sentido que antes se ancorava no próprio Deus que precisou morrer. Ao invés de uma ordem holista do mundo, o cerne da mensagem cristã está na realidade plena do mundo, não como aparato ilusório da realidade. A realidade é o que ela é, por mais que seja impossível conhecê-la de fato. (Aqui não tem como não lembrar da distinção kantiana entre númeno e fenômeno). A realidade não é algo para além do fenômeno, como um lugar que teríamos um acesso privilegiado de alguma forma, mas a realidade é puro fenômeno, assim como Jesus é Deus que se revela e é essa a ruptura que torna o cristianismo a única religião possível no ocidente. O próprio ocidente é marcado por essa noção de ruptura que de tempos em tempos ocorre e a Nova Era e o movimento Zen Budista dentro do capitalismo tardio é uma tentativa de retomar um mundo perdido a partir do momento que Deus se fez homem e habitou entre nós.
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