E de repente, os olhos se elevam, a boca começa a emitr sons melódicos, mas seus sons revelam uma culpa inescrutável. A tentativa de alcançar um outro se perde e fica-se sozinho, tendo apenas a si mesmo e um ser que será nada além que um juiz cruel ...
Outro dia fui no culto na igreja que costumava ir todos os dias e agora, por uma série de motivos não vou mais com tanta frequencia. Reparei algo curioso e comecei a reparar isto em todo o meio evangélico.
A relação entre as músicas que são cantadas na igreja e o discurso que é pregado. Algo interessante a se notar em várias músicas cantadas é a sua extrema filiação à dinamica do antigo testamento. Não é pouco frequente vermos as músicas fazendo alusão ao "templo", "santos dos santos" falando de um afastamento quase que intransponível entre o homem e Deus. Percebe-se um esquecimento de todo o sacrifício do Cristo em virtude de romper com as "estruturas" do templo.
A divisão entre Deus e o povo que era mediado pelo sacerdote fica representada nas músicas. Os "sacrifícios", mas neste caso "de louvor" são incentivados. A separação onde Deus está lá no céu e o homem aqui na terra é ressaltado em várias músicas. Agora, é sintomático o porque este evento acontece.
Foi pra liberdade que Cristo nos libertou já nos dizia Paulo. No entanto, o cristão não consegue ser livre, mas procura remeter sempre sua prática à estrutura do Antigo Testamento.
É como se tal postura o desse uma proteção mais proeminente do que a proposta do Cristo. Tem uma música específica que me veio a memória que tipifica isto que estou querendo dizer:
"Senhor leva-me aos teus átrios, ao lugar santo, ao altar de bronze, senhor teu rosto quero ver.
Tira-me da multidão, leva-me onde o sacerdote canta. Tenho fome e sede de justiça e só encontro em um lugar.
Leva-me ao lugar santíssimo, pelo sangue do cordeiro redentor, toca-me, limpa-me, eis-me aqui".
É claríssima nesta letra a associação direta à estrutura do Antigo testamento.
A figura do templo, do sacerdote, do altar. No entanto, foi esta estrutura que foi rompida com o sacrifício do Cristo. Ele como sumo sacerdote rompe com esta necessidade tipificada na música. Sem contar que a estrutura que coloca um Deus distante também é rompida com a nova proposta do Cristo, que afirma que Deus habita em nós. Somos "templo" do espírito, mas não mais um templo feito com mãos humanas, mas um templo que se encontra no coração do homem.
Esta internalidade abre para a perspectiva da liberdade. Enquanto a estrutura do templo prendia o homem dentro de um "lugar específico", a proposta do Cristo abre para outra perspectiva.
Tal dinamica fica muito explícita com a Samaritana e sua inquietação quanto ao "lugar da adoração", que Jesus rapidamente dissolve. O Pai procura aqueles que o adoram em espírito e verdade.
Não há um "lugar para adorar". A liberdade se coloca como condição do humano para lidar com Deus. Mas se o homem se nega a relacionar com Deus em liberade, percebe-se uma deformação neste tipo de relacionamento. É como se houvesse sempre uma culpa pairando no ar que impede que a estrutura do templo seja desfeita na mente do evangélico. Há algo presente nesta relação que seria interessante ser estudado.
Se a estrutura do templo continua viva nas canções, com certeza ela está viva na mente do homem. Esse Deus que é "adorado" por meio destas músicas se faz distante deste que o adora. Afinal, este Deus cantado habita "os altos céus", está "acima, nas nuvens".
Uma vez que tais músicas fazem parte da vivencia evangélica, é claro que elas interferem na forma como o cristão se relaciona com Deus e como ele se relaciona com o mundo. Um Deus distante, exige distancia do mundo para que ele seja encontrado. Um Deus longe exige que todo esforço do homem seja em buscá-lo com afinco. Um "separar-se" para que finalmente possa "habitar com Ele no céu". As músicas refletem esta relação de uma forma muito interessante.
Mas, o que fica evidenciado em todo este afã com que se cantam tais músicas? Dentre outras coisas, fica evidenciado a renúncia da vida em liberdade oferecida pelo Cristo. A tentativa de retorno às estruturas do antigo testamento, (o templo, o sacerdote, o sacrifício) acaba por se tornar uma tentativa desesperada de amparo diante de uma realidade onde tais estruturas não exercem mais a função que exerciam no antigo testamento. O autor de Hebreus já ilustrava estas figuras do antigo testamento como "sombras das coisas que viriam". No entanto, ao contrário do que se esperaria, a prática de um "afastamento na busca desse deus encontrado apenas distante" é incentivada em várias igrejas evangélicas. Não raras vezes ouvimos os ministros de louvores dizendo coisas do tipo: "Viemos aqui pra te buscar, Senhor", "Se revela a nós", "vem habitar conosco", "Leva-nos Senhor, ao santo dos santos para que possamos te adorar".... CDs são gravados repetindo esta tentativa de amparo a partir de uma estrutura que o próprio Cristo fez questão de romper.
Talvez a negação da liberdade seja um dos maiores problemas do mundo evangélico atual. E paradoxalmente esta dinamica acaba se evidenciando em uma postura "libertina". Abre-se mão de um relacionamento livre com Deus para vê-lo como "ser-que-vigia", "ser-que-pune", mas ao mesmo tempo, na esfera da vida pública é como se esse Deus não existisse. A ausencia de um relacionamento baseado na liberdade acaba por provocar a necessidade de uma constante "vigilancia" onde o crente precisa cuidar de tudo o que faz para que não seja punido por aquele ser distante que está sempre de olho.
Ao mesmo tempo que o universo metafísico traz o amparo e o consolo diante da realidade, coloca a culpa sobre o indivíduo que precisa sempre fazer coisas para que seus pecados sejam expiados. Esta dinamica foi muito bem analisada por Freud quando propõe uma análise da religião.
Cria-se com Deus uma relação infantil, onde Ele aparece como aquele que sempre livrará o homem dos terrores do mundo, fará com que ele "caminhe em vitória". O pai é desejado como amparo diante da realidade. E não é este o relacionamento com o pai proposto por Jesus. Este via o pai não como alguém que sempre estaria ali, muito pelo contrário, ele mesmo enfrentou o desamparo (Deus meu por que me desamparaste), e mesmo assim, Deus continuou sendo pai. A relação de Jesus com o pai se baseava na liberdade e talvez por isso escandalizasse tanto os doutores da época.
Há alguns que abordam a questão das músicas como "licença poética". Particularmente sou contra a idéia de transformar inconsistencias teológicas em licença poética, e penso que tal licença não seja desculpa para se formular músicas, que se analisadas, imprimem mais uma estrutura repressora do que propriamente um momento de aproximação com Deus.
Muito me preocupa tais músicas, afinal, a música alcança lugares onde a mera palavra não alcança, e o que se canta reflete o que se pensa, reflete a forma como se vê as coisas, como se vê o mundo.
A reforma foi cantada antes de ser pregada, e isto é importante, afinal, o protestantismo sempre se caracterizou por cantar os atos de Deus. Agora, quando estas músicas passam a refletir uma noção de culpa recalcada que desemboca em um Deus distante que tole a liberdade humana para se fazer deus, é preciso que algo seja feito.
Como o próprio Jesus já advertiu: "A boca fala do que está cheio o coração", se o coração do cantante está cheio de culpa, é porque de alguma forma isto habita o coração dele. E até que ponto não seriam as próprias músicas cantadas por ele que imprime nele a culpa que depois ele mesmo cantará tentando se aproximar desse deus que a própria música fez parecer distante?
Muito poderia ser dito aqui, mas o texto ficaria extremamente grande, talvez uma continuação em outro texto seja o mais apropriado... quem sabe?