quinta-feira, 23 de abril de 2015

A falácia do "cristianismo autêntico" e o fim da religião






Sempre fui  meio contra quem afirma que toda instituição religiosa seria uma espécie de "túmulo da religião", ou que a religião mesma seria uma espécie de "túmulo do cristianismo autêntico". Para mim esse tipo de discurso traz em si mesmo um grande desentendimento a respeito do que se fala.

Primeiramente que acho muito complicado confundir a religião propriamente dita com a “religião institucionalizada”. A religião propriamente dita se define muito por uma relação do indivíduo com o sagrado e remete a uma dimensão social, uma vez que toda a religião pressupõe uma dimensão comunitária. A religião portanto pode ser considerada como um recorte na dimensão do sagrado, ou seja, uma tentativa de dizer algo sobre o sagrado a partir de um determinado lugar visando dar ao ser humano uma resposta à questão sobre o sentido de sua existência. A religião surge nessa tentativa de dizer o desconhecido, uma tentativa de colocar o mundo dentro de algo que possa ser amado por esse homem.

A religião institucionalizada acontece em um momento posterior à criação de qualquer religião sendo portanto um recorte na própria religião. A instituição religiosa se caracteriza por uma cristalização de uma determinada religião. É nesse estágio que se conhecem os dogmas, que se criam as hierarquias, etc. É aqui que falamos por exemplo de catolicismo, protestantismo, islamismo, etc. Ou seja, a institucionalização religiosa se dá como uma tentativa de organizar aquela primeira relação do indivíduo com o sagrado.

Dentro dessas religiões institucionalizadas temos as igrejas que funcionam como pequenas “empresas religiosas”, ou seja, se colocam como um lugar onde determinado recorte religioso será celebrado e não raras vezes absolutizado como única forma possível de vivência religiosa. Geralmente é nesse nível que acontecem os dogmatismos, os escândalos, as coisas non-senses que vemos todos os dias nos jornais e redes sociais. Percebe-se que há uma distância muito grande entre o que chamamos de “religião”, “religião institucionalizada” e o que aqui chamamos “empresa religiosa”.

Esclarecido isso passo a comentar a segunda parte daquilo que me incomoda que é o de sempre ouvir que “a religião seria uma espécie de túmulo do cristianismo autêntico”. Primeiramente acho de uma pretensão enorme alguém afirmar que sabe o que seria um “cristianismo autêntico”.

Esse conceito de “autenticidade” é muito espantoso; tão espantoso que Charles Taylor dedica um capítulo inteiro do seu monumental livro “Uma era secular” para falar da “era da autenticidade” tentando mostrar como que a era contemporânea se caracterizaria por uma busca de uma autenticidade como forma de responder ao esvaziamento das grandes narrativas. Dessa forma, afirmar que se saberia o que seria o cristianismo autêntico soa muito pretensioso para mim, e por trás desse tipo de discurso parece se mostrar uma tentativa escondida de fundamentalismo uma vez que ao se colocar como alguém que viveria tal “cristianismo autêntico” o indivíduo é capaz de se colocar como crítico de todas as outras expressões cristãs em nome de uma determinada visão que de alguma forma julga ser a “mais autêntica”.

Qualquer pessoa com o mínimo de bom senso é capaz de compreender que todo texto é escrito de um determinado lugar, a partir da vivência de quem escreve. Da mesma forma o texto bíblico não tem como não possuir essa característica. Assim, podemos compreender que o livro de Atos e as cartas de Paulo (que atestam o início do cristianismo) também são escritos a partir de um contexto determinado, visando resolver ou esclarecer questões determinadas dentro da comunidade em que viviam.

O livro de Atos, tão aclamado por aqueles que dizem estar “voltando ao cristianismo autêntico” relata o que o próprio nome do livro já diz, ou seja, os atos dos apóstolos, que tinham demandas específicas dentro de um contexto específico e viam que fazer da forma como eles se propuseram a fazer seria a melhor forma de resolver os problemas que eles enfrentavam na época. Isso não torna a vivência “cristã” dos apóstolos mais “cristã” do que a vivência de outros cristãos, de forma que basear no livro de Atos como forma de defender um “cristianismo autêntico” é no mínimo estranho. A ideia de um cristianismo primitivo me soa mais interessante uma vez que eles sem dúvida são os primeiros cristãos.

Portanto, me incomoda bastante esse discurso em voga hoje advindos de alguns pastores tais como “Caio Fábio”, “Ed Kivitz”, etc. (ou a leitura que vemos sobre eles) no que tange a essa separação entre “religião” e “cristianismo” tentando sempre mostrar que o “cristianismo autêntico” poria fim à religião. Essa ideia apenas demonstra uma confusão conceitual grave a meu ver. Deixo claro que não tenho nada contra esses pastores que cito aqui. Apenas os cito por serem espécie de ícones desse movimento no Brasil. A proposta de um discurso mais centrado advindos desses pastores é algo digno de ser ressaltado aqui. Embora eu particularmente tenha algumas ressalvas quanto a algumas opiniões de ambos acredito que eles prestam um serviço muito bom para a população evangélica. O que não se pode fazer é começar a idolatrar ou até mesmo repetir ad nauseam os discursos desses pastores sem uma visão crítica sobre o que falam. Tendência essa que vemos muito facilmente principalmente nas redes sociais.

Afirmar, igual várias vezes ouvimos, que o cristianismo não é uma religião, a meu ver é desconhecer ambos os termos. Jesus realmente não veio fundar uma religião, nem muito menos afirmar que era Deus encarnado (aqui recomendo enfáticamente a leitura do maravilhoso texto do John Hick chamado “A metáfora do deus encarnado), nem muito menos se mostrar como baluarte de uma nova moralidade, mas veio como um homem judeu que foi morto pelo seu modo de vida que se mostrou como completamente subversivo para o governo romano; e toda essa “subversividade” se deu em nome daquilo que chamamos “amor”. Ou seja, em nome do amor ele foi capaz de dar a vida por seus amigos como nos relata João nos evangelhos.

Concluindo, penso que faz muito pouco sentido afirmar que a instituição seria uma espécie de "túmulo da religião", e afirmar que a religião mesma seria uma espécie de "túmulo do cristianismo autêntico". Isso demonstra um grande desentendimento dos termos envolvidos além de demonstrar uma tentativa que pode esconder em si um ar de fundamentalismo.

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