terça-feira, 9 de agosto de 2016

Da estabilidade à mobilidade (um argumento do senso comum)






Uma característica bastante visível dos nossos tempos hipermodernos é em que medida a noção de "viajar" se tornou uma espécie de objetivo de vida. Se há algum tempo atrás o ideal de uma vida "plena" se ligava à noção de estabilidade em que o ideal de grande parte das pessoas era o de fixar-se em algum lugar, quer seja no emprego, adquirir uma casa, um carro, etc. hoje em dia tal ideal se tornou para muitas pessoas aquilo que mais deve ser evitado diante das inúmeras possibilidades que se abrem no mundo globalizado. 

Nesse contexto nada exemplifica melhor esse novo ideal do que a noção de que o maior objetivo da vida do indivíduo deva ser o de conhecer o maior número de lugares diferentes durante a sua vida. 
O viajar se transforma em um ideal a ser alcançado, o objetivo último do ano de trabalho, o motivo pelo qual vale todo sacrifício. Explorar novos lugares, conhecer novas culturas, se encarar como pertencente a um mundo sem fronteiras em que cada ano se está em um lugar diferente se tornou um movimento muito comum entre o sujeito hipermoderno. 

A noção de "estabilidade" (que em várias medidas é também ilusória) dá lugar à noção de mobilidade, dá lugar à noção de "não-pertença" no qual o que importa é o constante "novo lugar" habitado provisoriamente pelo sujeito. Nenhum tipo de amarra, nenhum tipo de pertença, nenhum tipo de ancoragem; tudo deve fluir para que a vida seja vivida na sua totalidade. Esse sujeito desenganchado remete muito à já famosa ideia do homem líquido de Bauman.

Obviamente que em um mundo regido pela dinâmica do capital a própria noção de "viajar" é facilmente transformada em status, de forma que ostentar os lugares visitados se torna para muitas pessoas o objetivo principal que excede até mesmo a própria viagem. A noção de "acumulação" se torna a tônica. O que passa a importar é o número de lugares visitados, o número de países diferentes, o número de cidades diferentes, etc. De certa forma é como se o capital se diluísse e o antigo "acúmulo de capital" fosse substituído pelo "acúmulo de experiências novas em lugares diferentes". Quanto mais experiências novas em lugares diferentes, mais "rico" seria esse sujeito.

Se há algum tempo atrás o objeto ostentado se vinculava à noção de estabilidade, ou seja, a nova casa, o novo carro, o sítio adquirido para onde poderá ir quando se aposentar; hoje faz muito pouco sentido qualquer uma dessas coisas. 
Quantos de nós já não ouvimos alguém comentando que se pudesse largaria tudo e viveria viajando? Que o maior objetivo da vida dela era o de poder estar a cada mês em um país diferente? Esse tipo de ideal para a existência é algo que permeia cada vez mais a nossa cultura pautada pela mobilidade excessiva. 
O viajar dessa forma marca a mentalidade do homem hipermoderno que vê na suposta estabilidade um grande inimigo a ser combatido. É como se ele aceitasse apenas "estabilidades mínimas", tipo uma "renda fixa", ou "um relacionamento fixo" para que pudesse viver (ilusoriamente) como "alguém sem amarras". 
Tal movimento extremamente ilusório me faz lembrar um texto de Sêneca em que o filósofo comenta, dentre outras coisas, algo sobre as constantes viagens.

"Daí empreender peregrinações vagas e percorrer litorais e, ora no mar, ora na terra, experimentar a mobilidade sempre inimiga das circunstâncias presentes: "Vejam-se regiões selvagens, exploremos os Brutios e as florestas da Lucânia". Entre esses desertos, busca-se, todavia, algo ameno, em que os olhos lascivos aliviem-se da longa aspereza dos lugares horrendos: "Que se dirija a Tarento e se lhe louve o porto, o clima hibernal de céu mais doce e a região ainda bastante opulenta para sua antiga turba... Logo então retornamos a Roma: demasiado tempo os ouvidos estão carentes do aplauso e do fragor; apraz agora gozar também do sangue humano". Uma viagem sucede a outra e espetáculos são trocados por espetáculos. Como diz Lucrécio: - Deste modo cada um sempre foge de si. 
Mas que aproveita, se não foge? Ele segue a si mesmo, e o molesta o mais pesado companheiro. E assim devemos saber que não é dos lugares o mal de que sofremos, mas de nós: fracos somos para suportar tudo, e não somos pacientes quanto aos trabalhos nem quanto aos prazeres nem quanto a nós mesmos, nem quanto a coisa alguma por mais tempo." (SÊNECA. Sobre a tranquilidade da alma. Nova Alexandria. São Paulo. 1994. p. 26-27)

Sêneca lá no século I d.C já aponta um pouco para essa noção das constantes viagens como uma espécie de fuga de si em que a busca constante do novo apontaria apenas para um ausente no sujeito que não cessa de clamar por ser preenchido. 

Obviamente que não há aqui nenhuma intenção de condenar pessoas que viajam, que tem condições para tal, etc. O objetivo dessa pequena reflexão é apenas mostrar como que nessa dinâmica se evidencia um caráter fulcral desse homem hipermoderno que cada vez mais se evapora na busca de novas experiências cada vez mais rápidas com uma dinâmica cada vez mais acumulativa. O capitalismo ganha asas cada vez maiores, e nele, cada vez menos, somos capazes de voar. 



Nenhum comentário:

Postar um comentário