"Nós não precisamos temer os deuses”
(Para quem não sabe, o tetrapharmakón, ou "os quatro medicamentos" é um conjunto de princípios proposto por Epicuro que propõe 4 ações que conduziriam o homem a uma vida feliz. O primeiro "medicamento" é o que exponho nesse texto, ou seja, a noção de que não devemos temer os deuses.)
A noção que temos de Deus
aqui no ocidente se deve muito ao pensamento da igreja católica e
as diversas investidas por meio das cruzadas e várias missões das
quais temos conhecimento, com o intuito de “cristianizar” a
população. Vou procurar aqui, relatar um
pouco da concepção que Epicuro faz a respeito dos deuses. Obviamente que, pela riqueza do conceito, não será possível abordar todas as vertentes possíveis de tal "medicamento", mas os apontamentos aqui servem como introdução ao tema.
Para começar, é preciso
definir a concepção que Epicuro faz a respeito dos deuses. A concepção que Epicuro tem a respeito dos deuses é completamente diferente da visão ocidental de Deus. Uma coisa que precisa ser
entendida é que a lógica, a física, e a ética integram plenamente a "teologia epicurista.” ¹
Primeiramente, não existe um
monoteísmo em Epicuro, o qual sempre refere aos deuses e nunca a um
deus somente. O politeísmo era a crença predominante no mundo
grego. Para Epicuro, mesmo o
conhecimento que temos dos deuses seja imediato, os deuses não se
importam com as coisas dos humanos. Epicuro não nega a existência
dos deuses, ele apenas afirma que a imagem que fazemos dos deuses é
que é equivocada.
Não devemos atribuir aos
deuses nada que não lhes é próprio como a inveja, a ira, e outros
atributos que já vemos desde os cantos homéricos. Os deuses para Epicuro viviam
em comunidades e filosofam. No entanto, eles se comunicam com oshomens enquanto eles dormem. Isso se dá através de algo que Epicuro
chama de “eflúvios” ou “simulacro”, que seriam como uma
membrana que sai dos átomos e alcançam os ouvidos, ou o tátil ou a
visão etc.
Para entender a concepção
epicurista dos deuses temos que entender também como que os átomos
se organizam para eles. Epicuro era um atomista, ou seja, ele assume a posição de que o que existe é apenas átomos e vazio, sendo que dessa forma tudo o que acontece é necessário. Não é um
determinismo propriamente dito, pois há um certo desvio na “cascata”
que os átomos formam. Para ele, os átomos caem em uma eterna chuva. Assim seria a situação antes da formação de qualquer
coisa na cosmologia de Epicuro. Os átomos cairiam sem destino algum,
apenas fazendo sua dança em meio ao vazio. No entanto, em algum momento, não
sabendo o porque, eles sofrem um desvio e se chocam, começam a se
aglomerar e as coisas são formadas a partir daí. Os átomos que
antes caiam paralelamente, começam a se desviar e passam a se chocar
formando o nosso mundo. Esses desvios eram chamados de “parenclises” ou “clinamem”. Com o clinamem podemos ter a noção de uma ação individual livre. Só porque há o clinamem é possível a liberdade das ações. Esse desvio nega a ideia de um fatalismo. O desvio seria um fruto de uma liberdade, que no caso de
Epicuro é essencial para pensar uma ética onde tudo seria átomo e
vazio. Esse encontro entre os átomos seria aleatório, ele não
tem uma causa, ele não obedece ao princípio de razão, ele poderia
ter ocorrido de outra forma que não a que aconteceu. Ele
simplesmente aconteceu. Fruto de uma liberdade. Se não houvesse esse desvio, segundo Epicuro, não teria como os compostos se formarem, pois eles caem
paralelamente. Isso implica que tem que haver um momento em que esses
átomos se desviem para formar os compostos. (Tal ideia de "desvio" e "aleatoriedade" será importantíssimo para o que depois será conhecido como "materialismo aleatório althusseriano".)
Os deuses na filosofia de
Epicuro tem uma implicação ética porque eles servem como modelo
das ações. Essa é praticamente a única função dos deuses em
Epicuro. Não há motivo para temer os
deuses porque eles não se importam com os homens e nem com o que
eles fazem.
Algo interessante que Epicuro
afirma é que os deuses não interferem no nosso destino. Eles apenas
vivem em comunidade. Com a noção do clinamem, há
uma responsabilidade para nossas ações que independem dos deuses. Nós somos responsáveis pelo
que fazemos.
Outro ponto que diverge o
pensamento epicurista do pensamento que nós temos a respeito de deus
é o fato de que, segundo Epicuro, a noção que nós temos dos
deuses é o que nos aprisiona a eles.
Para Epicuro não existe uma
vida pós-morte e isso nos impele a viver uma boa vida aqui na
Terra. Segundo ele, essa crença em uma vida pós morte apenas nos
aprisiona a uma realidade que não existe. Deixamos de viver uma vida
aqui em função de uma vida em outro lugar.
Para Epicuro, o verdadeiro
conhecimento dos deuses nos liberta pois se sabemos que os deuses não
se preocupam conosco e que eles estão apenas preocupado com aquilo
que eles mesmos fazem, isso não coloca em nós nenhuma coerção
para realizar as nossas ações, na espera de receber algum tipo de
favor ou punição por parte deles.
Epicuro faz um corte drástico
entre os deuses e os homens. Tal corte se dá
não pelo fato de homem querer se achegar aos deuses e estes não o
permitirem. Também tal corte não se dá a partir da noção de criação em que Deus seria o criador e o homem uma criatura, uma vez que entre os gregos não há a noção de criação. Os deuses em Epicuro não são deuses criadores ou
formadores do universo. O universo para Epicuro é infinito e aberto.
Não há uma dependência do homem em relação aos deuses. O corte
em Epicuro se dá na falta de relação do homem com os deuses. O homem deve se relacionar com
outros homens e não com os deuses. Assim como os deuses só se
relacionam com os seus semelhantes, assim também o homem deve se
relacionar com os seus semelhantes. A vida na terra é
completamente diferente da vida entre os deuses. Não há uma relação
direta entre homens e deuses.
O primeiro princípio do tetrapharmakón é realmente muito rico em sua concepção e de uma
implicação ética enorme. Segundo Epicuro esse primeiro princípio,
se seguido pelos homens pode ajudá-los a viver uma vida feliz e
afastada das preocupações, que é o objetivo de todos os homens. É
interessante notar que Epicuro começa o tetrapharmakón afastando a
ideia de deus como doador da felicidade e colocando o homem como
responsável por viver como “um mortal entre os imortais”.
Como opção para quem quiser saber mais sobre esse tema tão interessante, fica a dica de dois livros. O primeiro é o do próprio Epicuro, encontrável em pdf online sem muitos problemas. e o segundo é um livro mais técnico sobre as relações que faço alusão nesse texto.
Bibliografia:
Bibliografia:
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EPICURO, Carta a Felicidade – Editora Unesp
-
RODIS-LEWIS, Geneviève – Épicure et son école , collection idées Editions Gallimard 1975