terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Questões a partir do materialismo aleatório de Althusser




 Althusser , em sua última filosofia, faz uma crítica a vários conceitos do materialismo dialético entre eles o conceito de “origem-fim”. Althusser critica esse conceito afirmando que o tipo de materialismo que isso visa não passaria de um idealismo. A filosofia de Althusser não parte de problemas filosóficos, mas pretende eliminar esses problemas para começar de um vazio filosófico.

Para Althusser, um materialismo que visa uma teleologia, no final não passaria de um idealismo, uma vez que a própria origem será vista já visando um fim. A origem é construída a partir de um fim. A crítica de Althusser parte de um vazio filosófico para poder a partir daí construir algo que não seja um idealismo. É preciso portanto desconstruir o conceito de origem-fim para que se possa entender o mundo como um processo aleatório.

O filósofo desloca portanto a ideia de mundo necessário e coloca em seu lugar a contingência. A contingência não seria apenas uma modalidade ou uma exceção dentro de um mundo necessário, mas o necessário é constituído a partir de encontros de contingentes. Os acontecimentos contingentes é que geram o que se torna necessário e não o contrário. O mundo portanto nada mais é do que encontros aleatórios que geram necessidades a partir disso. O mundo não é conseqüência de um princípio-ordem, uma ordenação, um logos do mundo. Ele é apenas um fruto de uma conjuntura-acontecimento (Nessa mesma linha desloca a filosofia de Badiou em "Ser e evento" tentando mostrar como se daria a "lógica do mundo" a partir da noção de "acontecimento).

O mundo nesse sentido continua sendo objetivo e independente em relação ao sujeito, no entanto ele não é assim por causa de um princípio que ordena as coisas, mas ele é fruto de um encontro que poderia ter acontecido de outra forma. Segundo Althusser, todo estado do mundo pode ser mudado de maneira imprevisível acrescendo ou subtraindo algum elemento no mundo. Não tem como estabelecer leis da história, o máximo que podemos fazer será apenas extrair do mundo algumas constantes e tendências pelo hábito que temos de ver as coisas acontecendo como acontecem. Althusser portanto caminha na contramão de uma filosofia idealista. Não há um fim nas coisas. Há apenas acontecimento-conjunção em uma formalidade vazia. 

Algo que fica claro na proposta de Althusser é que, para ele, o materialismo do encontro não critica apenas o fato do idealismo ser regido pelo principio da razão. Este seria um instrumento de poder político, de imposição de suas verdades, e que a tradição racionalista da filosofia mascara como sendo o poder da “Verdade”. A filosofia reconhece a realidade exterior, mas estabelece com esta uma relação de apropriação. O conceito se impõe à prática, tenta colocar a verdade da filosofia (suas ideologias política, religiosa, moral e estética) como sendo sua verdade. A realidade é tragada e reformulada segundo este princípio da razão sem que sua natureza própria seja levada em conta. Pelo contrário, é preciso corrompê-la para que o domínio da verdade da filosofia se efetive.

O materialismo aleatório não exerce sobre as práticas uma  “violência do conceito”. Elas são justamente aquilo que pode questionar a filosofia, seu outro, algo que está aberto a contingência do acontecimento e da experimentação, indeterminado em relação a um objetivo último. A crítica da filosofia idealista e do princípio da razão tem por objetivo livrar os campos filosófico e histórico da submissão que as categorias filosóficas (princípio de razão, como conceito-verdade, e as noções de Sentido, de Sujeito, de Substância e de Origem-Fim) impõem às práticas sociais dos homens. A partir da desconstrução que materialismo do encontro faz da maneira idealista de pensar, seus elementos teóricos tornam-se como os átomos que caem no vazio do clínamem, instâncias passíveis de novos encontros e combinações. O materialismo aleatório promove a abertura do acontecimento, a possibilidade de outros mundos filosóficos.  

A proposta althusseriana se mostra extremamente interessante para pensarmos as relações humanas e a própria relação do homem com a religião. Obviamente que Althusser não era um religioso, e sua proposta materialista de cara já elimina qualquer proposta metafísica por parte dele relegando qualquer adepto de sua teoria ao ateísmo. No entanto, a sua proposta de um encontro aleatório para além de uma noção de origem-fim é uma proposta vigorosa na nossa época contemporânea ausente de referenciais teóricos. A ausência de um princípio organizador e a ausência de um télos no mundo coloca o indivíduo diante de um grande vazio que clamará por algum tipo de preenchimento, mesmo que parco. Neste sentido a própria filosofia poderá se colocar como uma tentativa desse preenchimento, mas não no sentido de "organizar o mundo conceitualmente", mas tendo como tarefa abraçar toda a aleatoriedade do mundo. No entanto, talvez haja outras saídas para além das filosóficas para tentar lidar com a aleatoriedade e é exatamente essa a proposta instigante que Althusser nos relega. 

Será que a religião seria capaz de oferecer algum tipo de resposta à aleatoriedade sem ter como meta eliminar tal aleatoriedade? Como seria uma religião que abarcaria a aleatoriedade althusseriana? E o conceito de "Deus"? Como ele seria pensado a partir dessa proposta? Resta a ele apenas sair de cena em um materialismo cego, ou será que há a possibilidade de pensar tal conceito a partir da noção de aleatoriedade? Essas são perguntas obviamente sem respostas ainda, mas que instigam o nosso pensamento. 

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Reflexões sobre Deus a partir de um inseto







Ontem um inseto entrou em minha casa enquanto assistia televisão. Depois do susto provocado por uma entrada tão súbita, a primeira reação que tive foi a de pegar o chinelo no intuito de matar tal invasor. Foi o que fiz. No entanto, enquanto pegava o chinelo e o lançava em direção ao inseto indefeso diante da minha onipotência circunstancial uma imagem me veio à cabeça e me imaginei como se eu fosse aquele inseto diante de um Deus que teria todo poder para me esmagar a qualquer momento que ele quisesse sem que eu de nada soubesse sobre isso. 

Esse Deus todo poderoso teria todas as coisas ao seu dispor, ou seja, assim como eu, ele também teria um chinelo, um tênis, ou qualquer outro objeto para me esmagar a qualquer momento, e fiquei pensando: - Mas por que razão ele não me esmaga sem misericórdia alguma? Com certeza eu nunca saberia que teria sido esmagado por aquele Deus e minha vida simplesmente acabaria ali, sem sentido algum, fruto de uma vontade desconhecida, que talvez por nada melhor pra fazer resolvesse matar um inseto que adentrou em sua casa.

Nessa hora me veio à mente duas referências bíblicas. A primeira foi aquela  referência bíblica de Isaías 41,14 que chama o povo de Israel de "vermezinho de Jacó", ou seja, algo insignificante diante do poder de Deus que supostamente poderia fazer qualquer coisa para com aquele ser desprezível. E a segunda referência que me veio foi a referência de Lamentações 3,22 que afirma que "As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porque a sua misericórdia não tem fim", ou seja, se Deus não me esmaga como eu fiz com o inseto é porque a sua misericórdia para comigo é sem fim, e para ele, de alguma forma, há um interesse na minha existência, ou até mesmo um desinteresse passivo quanto a eu existir ou não. 

Agora a tarde tive outra experiência interessante. Como estou de férias, dei uma cochilada na parte da tarde e quando acordei, acordei com fome e então fomos à padaria para comprar coisas. Eu queria comer pão com queijo e por isso fomos à padaria e compramos pão com queijo, pois esse era o meu desejo no momento. Ao mesmo tempo eu fiquei pensando que diversas pessoas tem o desejo apenas de "comer" e nem isso lhe é dado, pois diversas vezes elas simplesmente não tem o que comer, enquanto eu posso escolher e ter acesso àquilo que quero. 

Se pensarmos que Deus seria responsável para com isso cairíamos naquele velho debate despropositado que coloca a culpa de todas as coisas em Deus como aquele que seria uma espécie de sádico brincando com os desejos e as condições de vida das pessoas. Particularmente não penso que estas questões sejam da alçada de Deus, mas se vinculam muito mais à dinâmicas estruturais dos modos de produção capitalista. Deus não tem absolutamente nada a ver com isso, mas sim as condições materiais de existência que geram um disparate que permite que enquanto alguns tenham muito e acesso a qualquer que seja o seu desejo, outros nada tenham e por isso mendigam e até morram por não conseguir comer. 

Para mim é bem claro que a visão que temos sobre Deus condiciona de forma cabal a forma como nos relacionamos com ele. Se eu vejo  Deus como esse ser sádico que pode me matar a qualquer momento, mas não o faz simplesmente porque não quer ou está desinteressado em minha existência, mas ao mesmo tempo seria o responsável por alguns poderem comer o pão com queijo quando querem enquanto outros não podem nem mesmo escolher se comerão ou não, então a minha relação com ele será extremamente ambivalente, como já mostrou Freud em diversos textos. Vou amá-lo porque a sua misericórdia me mantém e me permite escolher o que quero comer e ter aceso a isso, mas ao mesmo tempo vou temê-lo porque a qualquer momento ele pode resolver me matar sem me dar nenhuma explicação. Essa ambivalência fará com que a minha relação com ele sempre esteja oscilante; e diante das perguntas da vida eu ficaria completamente sem resposta, pois não teria como escolher entre o Deus de amor e o Deus sádico. 

A minha proposta é que Deus deva ser visto para além dessa dimensão ambivalente. Deus não é o responsável por eu ter o que comer e beber, nem mesmo responsável por eu estar vivo, mas posso ser sempre grato a Ele por isso. A ideia que coloco aqui é a de que Deus pode ser entendido como um sentido que organiza o mundo sem fazer com que o mundo dependa dele e nos excusemos da nossa responsabilidade. Se sou grato a Deus por eu ter o que comer e o que vestir isso não quer dizer que tudo venha Dele, mas apenas quer dizer que eu resolvo ler o mundo de uma forma em que me vejo não como causa de mim mesmo, mas dependente de uma esfera de ação que me ultrapassa. Posso até mesmo significar o mundo dizendo que "tudo vem de Deus", mas significando por Deus não um ser todo poderoso, mas um Sentido para a minha existência.  Dessa forma perseveramos a dimensão do mistério, perseveramos a dimensão de Deus e eliminamos a dimensão sádica daquele Deus todo-poderoso que brinca com meus desejos, ora possibilitando satisfações, ora não e que poderia me esmagar a qualquer momento.

Finalmente percebemos que as coisas no mundo dependem de relações que são determinadas internamente e não por Deus que esteja coordenando todas as coisas, no entanto, eu, quando vou ler o mundo, procuro dar um significado para esses acontecimentos e para isso eu escolho ler o mundo a partir da dimensão do Sentido. Esse Sentido me coloca de uma maneira diferente diante do mundo, encarando todo o vazio e sem sentido de diversos acontecimentos, mas sem esquecer que a aposta é sempre a do Sentido para além do mero vazio e acaso. Acredito que isso nos coloca em um meio termo entre um materialismo cego e ingênuo que é incapaz de apostar no sentido, e uma explicação completamente metafísica que faz tudo depender de um Deus todo poderoso colocando o homem apenas como um verme diante de um poder pleno. A proposta aqui faz com que encaremos a nossa responsabilidade na construção de um mundo melhor, encaremos a nossa responsabilidade diante das nossas vidas, e permite ao mesmo tempo admitir a possibilidade do aparecimento de Deus, mas um Deus fraco, vazio, que se mostra apenas em pequenas gotas de esperança diante do mundo caótico. Esse Deus visto como esse Sentido é o que nos faz lutar para que todos tenham o que comer, que todos tenham o que vestir, que tenham o que beber, onde morar, etc. Deus se esvazia de metafísica e se transforma em horizonte para onde todos navegamos. 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

[... escolhe pois a vida, para que vivas... Dt 30,19]










Enquanto podia, aconselhava, ouvia, ponderava, levantava prós e contras, contava de sua própria experiência, projetava algumas delas, ocultava outras, etc. 
Fez tudo o que pode para que ele não fosse pelo caminho que parecia traçar para si. No entanto, a partir do momento que  ele decidiu seguir o caminho que escolheu, ela fez de tudo para ajudá-lo. Até testemuhou o que aos olhos dela era um erro. Aceitou o fato de que ele tomou a decisão que achava melhor para si. 

Isso quando abandonou o emprego, isso quando resolveu morar de aluguel ao invés de comprar uma casa, isso quando resolveu namorar alguém que claramente não tinha nada a ver com ele. Mesmo com todos alertas ela resolveu deixá-lo seguir o que achava melhor. Não se eximiu da sua responsabilidade enquanto quem ama, não tomou para si responsabilidade que não era dela, não foi indiferente à demanda do outro, mas deixou o outro livre e ajudou no que pôde e o quanto pôde. Mas fez assim porque o amava, porque compreendia que por mais que discordasse, por mais que alertasse, a decisão, por mais errada que fosse a seus olhos, cabia somente a ele. Nada fez para se colocar como obstáculo, pelo contrário, tudo o que pôde fazer para ajudar, ela fez. 

Não mereceria ela a mesma credibilidade agora que a situação se inverteu? Não deveria ele agora fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para ajudá-la a levar a cabo sua decisão? No entanto agora ele se esconde atrás de racionalizações, se esconde atrás de planilhas. Planilhas essas que não fez diferença alguma na hora  de abandonar o emprego. Racionalizações essas que foram deixadas de lado quando a sua demanda se impôs, mas que agora serve de desculpas para se eximir da ajuda possível.

É sempre possível usarmos um juízo para o outro e não sermos coerentes o suficiente para usarmos o mesmo juízo para nós mesmos. Da mesma forma que há pessoas que são muito duras com os outros mas ao mesmo tempo são bastante condescendentes consigo. Para o outro todo o peso das racionalizações, para mim nem tanto peso assim, e assim a vida segue como que normalmente diante das incongruências destas posições. Os já conhecidos "dois pesos e duas medidas" acabam falando mais altos diante dos nossos interesses e isso é algo extremamente humano, mas nem por isso seja algo que devemos nutrir, afinal, seria bom se fôssemos justos o tempo todo; tanto conosco como com os outros.

Há também aqueles que são extremamente severos consigo e extremamente condescendente com o erro dos outros. Esse segundo tipo também encontramos aos montes em nossa vida. O grande desafio é encontrar o meio-termo entre essas duas situações e tentarmos, na medida do possível, nos tornar melhores em relação ao outro. Ajudar o outro sempre que possível e não ser empecilho para que o outro tome as suas decisões. No que depender de nós devemos ter sempre o coração disposto a ajudar o próximo para que ele se realize e para que ele sempre se responsabilize pelos seus atos.

Toda escolha envolve uma perda. Escolher é sempre perder algo. Enquanto adultos cabe a nós reconhecer o direito do outro de tomar as suas próprias decisões, o direito do outro de escolher o que achar melhor para si. Por mais idiota que possamos achar a escolha do outro não compete a nós decidir por ele. Se solicitados podemos expor nossas opiniões, nossos pontos a favor e contra tal decisão, mas sempre tendo em mente que cabe apenas ao outro tomar tal decisão. A nós cabe respeitar  e torcer para que o outro escolha o que for melhor, cabe a nós torcer para que o outro escolha a vida e viva. E isso é sempre um grande desafio para nós.

Que estejamos sempre prontos a aconselhar e ajudar o outro naquilo que sabemos, mas sem nunca tirar do outro a responsabilidade e o seu direito/dever de escolher o seu próprio caminho.