A
história do Édipo Rei de Sófocles é um clássico da tragédia
grega e foi muito utilizado por Freud para expor sua teoria, embora
muito contestada a forma como ele utiliza este mito. O
mito do Édipo Rei de Sófocles, se insere dentro do cenário da
tragédia grega antiga e reflete exatamente como que ela era vista
pelos gregos dessa época. A
tragédia grega se destaca por colocar o herói em uma situação que
lhe é contrária àquilo que se espera, deslocando portanto o foco
da trama. Segundo aponta Jean Pierre Vernant em seu livro o herói
na tragédia grega é tipo como pego pela palavra, assim como
acontece na história do Édipo Rei.
Algo
que é identificado no facilmente é a questão da
ambigüidade e da reviravolta, que é algo que todos os
trágicos gregos recorriam como meio de expressão e modo de
pensamento. Essa ambigüidade reflete-se segundo uma tensão de
valores que se tornam inconciliáveis a despeito de sua igualdade.
Segundo Vernant em seu livro "Mito e tragédia na Grécia Antiga." (1999 p. 75) a ambiguidade se refletia em cada herói em seu
universo próprio, e ele era como que pego na palavra que proferiu, e
isso era algo recorrente e ele o chama de ironia trágica. Essa
ironia, consistia no fato de que àquilo que era dito pelo herói
acabava retornando para ele mesmo, como uma forma de punição dos
deuses, pela falta de conhecimento por parte do herói sobre o que
era a verdade dos fatos. Isso é muito bem visto na história do
Édipo, quando àquilo que ele deseja que aconteça ao personagem
central da trama volta-se a ele mesmo no decorrer da peça. A
mensagem trágica torna-se-lhe inteligível na medida em que
arrancado de suas incertezas e de suas limitações antigas percebe a
ambigüidade das palavras, dos valores, da condição humana.
Vernant
trata também dos subentendidos utilizados de forma consciente, e
isso depende de um certo conhecimento anterior por parte dos
espectadores da peça, que já iam para o teatro com todo um conjunto
de informações que seriam necessários para a compreensão da
tragédia.
A
verdade na tragédia grega, está sempre presente, só que na maior
parte dela de forma oculta, de forma que, só os espectadores que no
caso de estar assistindo os dois lados da história se assemelham aos
deuses, que conseguem conhecer todos os discursos e prevê o que vem
à frente. A diferença é que ao contrário dos deuses, os
espectadores não interferem no desenrolar da peça, já os deuses,
sempre são recorrentes nas tragédias gregas. Édipo mesmo atribui
aos deuses o seu afortunado destino. Quando Édipo fala o que será
feito ao assassino de Laio, ele se coloca como juiz de si mesmo, pois
o que ele deseja ao malfeitor, irá acontecer a ele também. Essa é
a forma como a tragédia se desenvolve normalmente, mas no Édipo-
Rei ela não acontece como uma oposição dos valores nem em uma
duplicidade de personagens , mas diverte-se com a vítima. No caso de
Édipo, é ele quem é o joguete em toda a trama. É a sua vontade de
descobrir o assassino e desmascarar o culpado, mesmo tentando ser
impedido por Jocasta, Tirésias e o pastor , achando com isso que
está cumprindo seu papel diante da cidade é o que o leva de herói
para vilão, pois ao descobrir o assassino de Laio, Édipo se
descobre na trama.
Essa atitude Édipo faz parte de sua
personalidade. Ele não é homem de desistir das coisas, gosta de ir
até o final mesmo que com isso possa descobrir algo que não lhe
agrada que é o fato de saber que é ele mesmo o joguete do início
ao fim. Édipo é portanto duplo, quando ele fala, acontece-lhe dizer
outra coisa contrária ao que ele está dizendo. Ele é portanto um
enigma que só se resolve quando ele mesmo descobre que o que ele
tinha por verdade não o é mais. Édipo portanto não escuta o
discurso que ele mesmo diz sem saber, e é exatamente essa a verdade
que está oculta; a única coisa autêntica.
Essa
verdade oculta só é compreendida por quem tem o dom da dupla escuta
ou da dupla visão como é o caso do adivinho Tiréisias. O discurso
de Édipo se distingue entre o humano e o divino que irão se
encontrar no final da peça, quando o problema estará resolvido e o
enigma desfeito. É nessa hora que se dá a “reviravolta” da ação
em seu contrário.
Quando
Édipo soluciona o enigma, ele encontra ele mesmo, e esta
identificação do herói provoca uma reviravolta completa da ação.
A atitude de Édipo inverte as posições dentro da tragédia
formulada por Sófocles.
Ao
final da pesquisa feita por Édipo o justiceiro se identifica com o
assassino e portanto descobrir quem matou Laio, é também descobrir
quem é Édipo. A pesquisa por justiça por parte do rei de Tebas,
torna-se uma pesquisa sobre quem realmente é o rei de Tebas. Essa
reviravolta e ambigüidade é bem destacada por Vernant quando cita
que o estrangeiro de Coríntio é, na realidade nativo de Tebas; o
decifrador de enigmas, um enigma a ser descoberto, o justiceiro, um
criminoso; o clarividente um cego; o salvador da cidade, sua
perdição. Édipo que para todos era o maior dos homens, e o melhor
dos mortais, se torna o mais infeliz e pior dos homens, um criminoso,
e objeto de horror aos seus semelhantes, odiados pelos deuses
reduzidos à mendicância e ao exílio.
A
tragédia grega usava palavras gregas semelhantes para dizer coisas
que no contexto da peça eram contrárias. A situação de Édipo
depois de sua descoberta se torna a de um miserável que não merece
o convívio com a cidade. A sua descoberta o expulsa do mundo visível
e o coloca no mundo de Tirésias o vidente que pagou com seus olhos o
dom da dupla visão. Considerando
o ponto de vista humano Édipo é o chefe clarividente, igual aos
deuses, mas considerando do ponto de vista dos deuses ele aparece
cego e igual ao nada. A reviravolta da ação, como a ambigüidade da
língua, marca a duplicidade de uma condição humana, que, à
maneira do enigma, se presta a duas interpretações opostas. A
linguagem humana se inverte quando os deuses falam através dela.
O
Sentido da tragédia como concebida pelo gregos passava pelo enigma
sobre a qual a peça estava escrita. Essa é a reviravolta consiste
no fato do positivo se tornar negativo e vice-versa . Algo
interessante de ressaltar é que Édipo não queria fazer o que fez,
pois nutria um sentimento de filho para com quem considerava seus
verdadeiros pais e condenava tal ato que fez, como sendo algo indigno
de qualquer comiseração. Segundo marca Vernant, outra forma de
reviravolta é o fato de que sua glória vai se afastando dele aos
poucos para fixar-se sobre personagens divinas, Édipo vai se
colocando cada vez mais na posição de homem sujeito a vontade dos
deuses.
Um
exemplo de ambigüidade é o seu próprio nome que em sim mesmo é de
caráter enigmático e que marca toda a tragédia. Édipo é o homem
dos pés inchados ( oîdos) , uma enfermidade que lembrava a criança
abandonada e maldita; mas Édipo é também o homem que sabe (oîda)
e foi esse saber que o colocou onde estava agora, como rei da cidade
de Tebas por derrotar a Esfinge por seu próprio conhecimento. Todo
enigma de Édipo se encontra contida no jogo ao qual o enigma que o
seu nome contém. A descoberta do segredo da Esfinge já o coloca de
certa forma diante do enigma sobre quem é ele próprio.
Diante
da descoberta da verdade dos fatos, Édipo se coloca na figura do
pharmakós o qual é preciso ser expulso da cidade para que a peste
cesse. A figura de Édipo se inverte de Sábio para poluição da
cidade, ele é o criminoso que precisa ser expulso. Édipo assume
também a figura de bode expiatório sobre o qual irá repousar toda
a culpa da cidade de Tebas. De
Týrannos para pharmakós, Édipo sofre essa reviravolta. Enquanto no
primeiro momento , ele é venerado por todos como a um deus, ele
agora é odiado por todos e é visto como um mal da cidade que
precisa ser expulso. A figura do týrannos como herói exposto e
salvo, rejeitado e que volta como vencedor se prolonga até o século
V no mundo grego. Como herói, o tirando acede à realeza por uma via
indireta, fora da descendência legítima; como aquele, ele se
qualifica para o poder por seus atos, sua proezas. Ele reina não
pela virtude de seu sangue, mas por suas próprias virtudes; ele é
filho de suas obras ao mesmo tempo que o é da Boa Sorte.
Tebas
estava sofrendo com a esterilidade dos rebanhos e das mulheres,
enquanto uma peste dizimava os vivos. Para se acabar com essa peste
era preciso que o mal da terra fosse expulso, e como Édipo é esse
mal, ele deve assumir a função de pharmakós.
Essa
noção de pharmakós que deve levar o mal da cidade era um rito em
Atenas que visava expulsar periodicamente a poluição acumulada
durante o ano, e portanto instituiu-se o costume de uma purificação
constante pelos pharmakói. O pharmakói era geralmente escolhido
entre os povos pobres da cidade, entre os malfeitores condenáveis,
os feios , de baixa estatura que por seus atos se tornavam o estolho
da sociedade. Libertar a cidade era expulsar o pharmakós.
A
figura do týrannos que Édipo representa o põe diante de uma
reviravolta, pois enquanto o suporte da cidade não for expulso, a
cidade continuará a sofrer. Ele mesmo é o mal da cidade; ele que a
princípio foi o salvador da praga da Esfinge, torna-se agora a
própria praga que precisa ser expulsa, aquele que outrora trouxe a
paz, é agora quem provoca a peste. Rei
divino-pharmakós : tais são portanto, as duas faces de Édipo que
lhe conferem seu aspecto de enigma, reunindo nele, como numa fórmula
de duplo sentido, duas figuras que são o inverso uma da outra. O
herói era o modelo da condição humana, e Sófocles em sua peça se
aproveita desse consenso entre os gregos e se apropria disso para
colocar o týrannos como um pharmakós para ilustrar o tema da
reviravolta, é porque na sua oposição essas duas personagens
aparecem simétricas e, em certos aspectos, permutáveis, um e outro
são responsáveis pela saúde da cidade. Toda a cidade pagaria pelo
erro de um só.
O
pharmakós é o inverso do rei, é como uma réplica ao contrário,
que de igual forma é responsável pelo destino da cidade, e, por
ser o mal, deve ser expulso para que o verdadeiro rei assuma sua
posição e estabeleça a paz. Esta
é, portanto a ambigüidade e a reviravolta que se encontra na peça
de Sófocles. De týrannos, para pharmakós, Édipo se encontra nos
dois lados da moeda, enquanto a princípio ele é o responsável pela
paz, em um instante seguinte, se encontra precisando ser expulso por
ser a causa da peste que assola a cidade que outrora ele teria salvo.
Caso queira se inteirar mais do tema sugiro o excelente livro do Vernant -
VERNANT,
Jean Pierre, VIDAL-NAQUET, Pierre, Mito e Tragédia na Grécia
Antiga., São Paulo , Editora Perspectiva, 1999.