Uma coisa que sempre me chamou a atenção no movimento da reforma protestante iniciada por Lutero foi o fato de que Lutero parecia ter uma consciência muito interessante de que a palavra seria capaz de libertar o homem. A reforma proposta por ele era, além de teológica, pedagógica, afinal a grande aposta de Lutero era que os homens deveriam ser capazes de ler e compreender o texto bíblico naquilo que ele tem de mais importante, a saber, o texto em si. A partir do momento que Lutero se dispõe a traduzir o texto bíblico para o alemão, para a língua do povo, ele anuncia um movimento que instigará todo um país e ganhará o mundo como poucas coisas já fizeram até hoje.
A palavra em seu poder transformador é crucial para entendermos o alcance da proposta luterana, embora podemos tecer ao mesmo tempo inúmeras críticas já nesse empreendimento. É bastante conhecida a obstinação luterana com o rigor do texto, com a ordem legal que paira sobre o texto bíblico. É também conhecida a tentativa luterana de "definir" os principais conceitos da fé cristã e até mesmo definir o próprio Deus. Quem evidencia estes episódios de forma bastante contundente é Erasmo de Rotterdam em sua grande querela com Lutero, no qual Erasmo insistia para que Lutero deixasse Deus ser bom e não tentasse circunscrevê-lo dentro de suas elaborações, principalmente a partir da doutrina da predestinação. Para Erasmo, o Deus cristão não seria um Deus que predestinaria os homens para a perdição ou salvação de antemão, mas era um Deus aberto e disposto para o amor. Lutero, no entanto, insistia para que Erasmo deixasse Deus ser Deus, ou seja, um Deus que predestina, que julga, etc.
Querelas à parte, a proposta luterana ao mesmo tempo marca um aspecto interessantíssimo do que se tornou o protestantismo. Ao focar na ideia de que cada homem era capaz de dar uma livre interpretação ao texto bíblico por conta própria, sem necessitar do auxílio da igreja, ou mesmo da tradição da interpretação dos textos, Lutero marca de forma extremamente curiosa, e talvez até de forma inconsciente, o sentimento a-histórico que permeia todo o protestantismo. Algo interessantíssimo de se notar é a não adesão do protestantismo à tradição da Igreja Católica, a completa ausência de referência aos mártires e santos católicos em suas pregações, o completo rompimento com a estética nos templos, enfim, uma completa negação do seu passado histórico e do seu pertencimento à uma tradição milenar. É como se com Lutero se iniciasse um novo tempo, um novo gênesis na história cristã em que nada antes de 1517 importasse mais.
A reforma pedagógica de Lutero liberta o sujeito moderno da pertença à instituição católica e o coloca isolado na sua relação com Deus de forma que entre ambos se encontra apenas o texto bíblico como verbo mediador. A partir da leitura e interpretação da Bíblia o fiel pode experimentar o poder de Deus sobre sua vida. Os cinco solas de Lutero marcam de forma definitiva a nova fé do homem moderno antecipando alguns temas plenamente atuais da nossa sociedade contemporânea. Lutero, ao insistir na predestinação, no poderio de Deus para salvar o sujeito que agora se vê "desgarrado" da instituição católica antecipa uma fé que não precisa de instituição, não precisa de história, não precisa de símbolos para se consolidar. A ideia protestante acaba por colocar o sujeito moderno diante de uma situação extremamente paradoxal, pois a partir da predestinação questiona-se enfaticamente a noção de livre-arbítrio do homem que apenas pela graça pode ser salvo, mas ao mesmo tempo a ideia protestante descola o sujeito de qualquer noção de pertença enfatizando a liberdade do cristão diante do texto bíblico e diante da sua própria fé.
Hoje que se celebram os 500 anos da reforma se faz necessário repensar constantemente esse movimento protestante e toda a sua história no ocidente. História esta marcada por inúmeros acertos, mas também inúmeros erros. Se por um lado a reforma protestante possibilitou um acesso ao texto bíblico a todos os homens, possibilitou uma melhor compreensão da fé, aproximou o sujeito moderno do texto escrito e favoreceu o desenvolvimento da leitura no século 16, não podemos esquecer que este mesmo protestantismo e sua mentalidade que proporcionou uma antropologia de extrema negação do humano (basta lembrar da ideia de Calvino da depravação total), ao mesmo tempo não devemos esquecer de que o protestantismo e sua antropologia está na base da formação do capitalismo do século 16 como bem nos mostrou Weber em suas análises, etc. Ao mesmo tempo não podemos esquecer que a aposta luterana para o livre exame do texto bíblico é o que gera hoje as inúmeras interpretações espúrias, toscas em relação ao texto bíblico que é utilizado inúmeras vezes para escravizar e maltratar os outros. Se na época a proposta pedagógica de Lutero foi de fato reformadora, vemos que os frutos colhidos 500 anos depois são várias vezes podres.
A nossa época é uma época de extremas mudanças de concepções, visões de mundo, comportamento, etc. e nesse sentido o grande desafio do protestantismo hoje é conseguir ainda dizer algo para o mundo contemporâneo tão carente de referências e princípios norteadores. No entanto, tal tarefa não pode ser assumida como em 1517, pela força, com o auxílio dos príncipes, visando alguns interesses econômicos e influências políticas, etc., mas deve ser assumida dentro do espírito dialogal, a partir de uma prática diária de uma nova proposta de vida, cada vez menos ancorada em um texto rígido e leituras fundamentalistas e mais ancoradas em uma vivência que remete àquilo que Jesus nos ensinou em sua passagem por aqui, a saber, o amor.