quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Uma reflexão sobre o dia do Teólogo





No dia do teólogo que é hoje estava observando e vi que já escrevi diversos textos, artigos acadêmicos sobre Deus, o que é sempre um tema instigante para se ponderar. A minha visão sobre Deus tem mudado bastante ao longo desses anos em que venho estudando mais a fundo tais conceitos, mas acredito ser esse o trabalho teologal, o refletir para que a fé vá se aprimorando, para que os conceitos possam dançar e para que dessa dança possa sair alguma luz que ilumine os outros.

Pensar sobre Deus é sempre difícil, pois acaba mexendo com questões extremamente íntimas, estruturais, mas que precisam ser pensadas por aqueles que querem ter um relacionamento com Deus. Para que tal relacionamento não seja uma mera reprodução de conteúdos ensinados pelos nossos pais e avós no processo de crescimento, mas que seja algo construído pelo próprio sujeito a partir das suas experiências com Deus e com o conhecimento possível sobre Ele(a).

Neste sentido a Psicanálise, para além da Teologia e da Filosofia tem me sido de grande valia para pensar sobre Deus. As críticas de Freud, Lacan e diversos outros teóricos sobre tal conceito são críticas que todo teólogo deveria encarar seriamente, pois elas mostram como que várias vezes a ideia de Deus surge como uma promessa vã de conforto, surge como um engodo para a infantilização do sujeito, mas ao mesmo tempo a psicanálise também mostra a partir de outros autores que é possível um relacionamento "saudável" com Deus, com a fé, com a Religião.

Como alguém que estuda seriamente estas questões há mais de 10 anos, me incomoda tremendamente o ateísmo vulgar, aquele ateísmo panfletário que quer manter uma crítica tipicamente do século 19 ignorando completamente os avanços tanto do ateísmo contemporâneo, quanto até mesmo das formulações teológicas contemporâneas que passam totalmente despercebidas por diversos ateus quando vão criticar a religião do século 21. Vários insistem em criticar a religião a partir de Marx com a sua noção de "ópio do povo", mas desconhecem a Teologia da Libertação que longe de ser "ópio" foi e é um grande instrumento de mudança social em diversos lugares do Brasil e da América Latina.

Outros insistem em utilizar a crítica feuerbachiana (a meu ver muito mais consistente que a crítica marxista), mas se esquecem do limite de tal crítica no seu conceito de projeção que é visto de maneira um tanto quanto ingênua por Feuerbach e na mesma esteira por Freud e seu conceito de ilusão. Ao focarem nesse tipo de crítica esquecem de teólogos como Karl Rahner que fez questão de responder pontualmente a crítica feuerbachiana no século 20, se esquecem do esforço de Karl Barth contra a crítica de Feuerbach também no século 20, se esquecem de Oskar Pfister e sua seríssima reflexão sobre o diálogo entre Psicanálise e Religião, diálogo esse que manteve com Freud por mais de 30 anos, e que pensou de forma muito rica as possíveis relações saudáveis do sujeito para com a religião e para com a figura de Deus. Se esquecem até mesmo de Lacan e sua visão um pouco mais "positiva" para com a religião como "Sinthome" possível para o sujeito, isso para citarmos apenas alguns exemplos que mais saltam à vista.

Penso que o ateísmo é uma postura extremamente importante, extremamente rica e é uma forma de lidar com o mundo extremamente adulta, pois não espera nada de Deus, uma vez que ele(a) não existiria. Penso ao mesmo tempo que o ateísmo levanta diversas questões sérias à teologia. Questões essas que devem ser pensadas seriamente por nós, teólogos, se quisermos ter algo a dizer no mundo contemporâneo. Neste sentido acho extremamente interessante o debate que diversos ateus fazem no século 21 com a religião. Figuras como Slavoj Zizek, Heidegger, Laclau, trazem temas importantíssimos para o debate entre ateísmo e religião que não partem da ingenuidade que vários ateus panfletários insistem em manter.

Obviamente que falta à teologia e a diversos teólogos de hoje um debate um pouco mais honesto com a psicanálise e em várias medidas com a própria filosofia, mas é inegável o avanço que a Teologia tem feito no século 20 e 21. No dia do teólogo penso ser o nosso dever repensar o nosso diálogo com as diversas áreas do conhecimento e nos propormos manter uma relação de troca mútua e saudável sempre dispostos a aprender com outros campos do saber. Se a teologia tem avançado bastante nos últimos anos é por meio do esforço de diversos teólogos que não se contentam em apenas se fecharem nos seus gabinetes e refletirem sobre um Deus etéreo, mas se colocarem como agentes modificadores do mundo. Temos diversos exemplos destas figuras no Brasil, figuras como Leonardo Boff, Rubem Alves, Dom Helder Câmara e tantos outros às vezes desconhecidos, mas que auxiliaram, questionaram, lutaram e lutam contra as mazelas sociais revelando um Deus várias vezes desconhecido por outros, mas revelado diariamente nas ações que auxiliam o outro.

Hoje celebramos o dia do Teólogo e acredito que essa função tem se tornado uma função extremamente importante diante do mundo em que vivemos. Não apenas por trazer reflexões sobre temas cada vez mais importantes para nós, mas por se colocar como discurso extremamente libertador para o sujeito contemporâneo diariamente massacrado por discursos vazios. Acredito que a grande tarefa do teólogo hoje é se mostrar aberto aos outros discursos sem pretender ter a última palavra, sem pretender ser aquele que detém a verdade que apenas deve ser "espalhada" mundo a fora. Rubem Alves, teólogo protestante brasileiro, já nos dizia que a teologia é um grande brincar com "contas de vidro", ou seja, é um brincar com coisas extremamente frágeis, é brincar com palavras como se fosse uma grande feitiçaria, pois acredita no poder criador das palavras com as quais se brinca.

Que nós enquanto teólogos possamos brincar com cada vez mais alegria com nossas contas de vidro e que nessa brincadeira possamos encantar a outros, e encantando a outros possamos revelar um(a) deus(a) várias vezes desconhecido(a) de muitos.

PS: Fiquei muito feliz com as diversas felicitações recebidas hoje por diversas pessoas. Esse reconhecimento é sempre um estímulo para prosseguir com as pesquisas e as reflexões sobre temas tão necessários na atualidade.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Tentativa de um texto catártico.




Quem, se não os mais próximos, para suportar o pior de nós? Quem, se não os mais próximos, para suportar os momentos de fraqueza, os momentos em que nenhuma teoria funciona, os momentos em que todas as construções se mostram apenas mero balbuciar diante da angústia dilacerante? Quem, se não os mais próximos, se responsabilizará juntamente conosco diante do momento debilitante que assola o mais estóico dos homens? É sempre no momento da fraqueza, no momento em que as lágrimas escorrem, no momento que o coração palpita freneticamente que necessitamos desse auxílio mais do que nunca. 

Em uma sociedade imediatista como a nossa acabamos, no entanto, construindo uma ideia extremamente destrutiva para o sujeito de que os mais próximos devem estar sempre disponíveis o tempo todo, como uma espécie de "cola" que nos uniria em uma relação extremamente fantasiosa em relação ao outro. No mundo dominado pela tecnologia é muito fácil se perder nessa armadilha contemporânea do outro sempre presente, do outro como suplência permanente para qualquer falta, para qualquer problema, para qualquer situação. Paradoxalmente em uma sociedade individualista o que mais se percebe é uma espécie de demanda constante pelo outro virtual que se manifestará desde as conversas em aplicativos de comunicação até mesmo em posts nas redes sociais. Essa demanda constante, esse requerer sempre que o outro me veja, me curta, me retweete, me responda aponta, no entanto, para esse sujeito completamente desamparado, e não apenas do ponto de vista da psicanálise, mas desamparado das próprias estruturas que o ajudariam a lidar melhor consigo e com as outras pessoas. Há um "gap" aí que fica sempre vazio, que se resiste à simbolização e que por isso aponta para a angústia como grande sintoma contemporâneo. 

Não é que o outro falta, afinal, o outro não "faltou" em nada. Ao invés disso há um excesso do fantasma do outro onipresente que invade o sujeito e por isso ele sofre. Esse fantasma do outro onipresente impossível, desse outro "sempre ali" é o que acaba por aumentar a angústia do sujeito contemporâneo quando ele se mostra impossível. Essa saída ilusória se assemelha ao Godot de Beckett que nunca aparece, mas move muita coisa naqueles que o esperam. "Talvez amanhã" é o máximo de esperança que se pode ter da chegada disso que é esperado. Aqueles que esperam Godot se propõem a ir embora já que ele não virá, no entanto não conseguem ir embora. Godot é esse que pela sua ausência física, mas presença plena é o que os impede de se mover. A espera desse vazio capaz de dar sentido à espera dos dois homens se mostrou apenas como promessa frustrada apontando talvez uma crítica à sociedade da época do pós-guerra. 

Neste sentido, nós, os sujeitos contemporâneos, desprendidos, auto-suficientes, nos mostramos completamente desamparados, pairando sobre o vazio quando as coisas não seguem nossas expectativas imaginárias, quer elas sejam no trabalho, nos relacionamentos diversos, etc. Somos extremamente fragilizados diante de qualquer coisa que frustra as nossas expectativas, pois não vemos nada que seja capaz de nos sustentar diante do vazio hipermoderno. Como bem aponta Beck e Beck-Gernsheim (O caos totalmente normal do amor. Editora Vozes. 2017) talvez apenas o amor (caótico como ele é) seja capaz de subsistir como amparo nessas horas em que a dor extrema é a companheira mais frequente. Mas tal amor também só pode ser visto e lembrado pelo sujeito a partir de si mesmo. Visto nos atos que os outros manifestam de compaixão para conosco durante os momentos ruins, e lembrado quando tais manifestações não aparecem por diversos motivos diferentes. 

Curioso, no entanto, reparar que na hipermodernidade a própria noção de amor acaba por se tornar um único ponto de ancoragem que ainda subsiste à crise dos metarrelatos da modernidade, ou seja, por mais que atualmente as instituições como casamento, religião, política, etc. se encontrem em grande medida desacreditadas, ou até mesmo bastante reconfiguradas, o amor se mostra como algo capaz de transcender todas estas instituições e se mostra em grande medida subversivo por se manter  como firme elo entre as pessoas. É apenas esse amor que é capaz de tirar o homem hipermoderno do seu sentimento de angústia dilacerante. No entanto, como bem mostrou Simmel lá nos anos 50 do século passado a tendência de uma sociedade individualista é ir cada vez mais reduzindo os seus ciclos de amizades e relacionamentos, culminando naquilo que ele chamou de "tribalismo", ou seja, o mundo dos pequenos grupos, guetos, associações menores, etc. 

Agora, no século 21, podemos dizer que esses círculos se tornam ainda mais restritos de forma que nem mesmo a pertença a uma comunidade, ou a um "gueto", ou a um grupo é capaz de tirar o sujeito da angústia que o aflige. Tais grupos, por mais que funcionem como espécie de identificação para o sujeito, se mostram extremamente frágeis nas suas relações entre os membros muito por conta da própria dinâmica individualista a que estão submetidos de forma que em diversos dele o que une os participantes do grupo não é o vínculo de amor entre eles, mas a adesão à causa externa que os identifica um com os outros. Neste sentido chegamos ao ponto com o qual iniciamos o nosso texto, ou seja, no momento da angústia, da dor dilacerante, da dificuldade, quando o pior de nós se mostra serão apenas os mais próximos que serão capazes de nos ajudar. O desafio nosso é tentar se munir de cada vez mais "próximos" para que saibamos pulverizar nossas demandas sem sobrecarregar ninguém com elas. 

Aqui a alusão com Voldemort, o personagem de Harry Potter, pode ser interessante. Da mesma forma que, para sobreviver ele precisou dividir a sua alma em várias Horcruxes, nós também precisamos aprender a dividir a nossa libido sobre os diversos próximos para que possamos subsistir aos dias maus de forma que se um faltar, haja algum outro suporte para que o sujeito não se perca. (Obviamente que a comparação aqui é extremamente limitada, pois o próprio Voldemort se enfraquece à medida que se divide, ao passo que o sujeito que consegue "pulverizar sua libido" se fortalece na relação consigo e com o outro) O processo de deslibidinização do outro (que em grande medida pode ser associado à perda do objeto transacional winicottiano, uma vez que não há nenhuma restrição em pensar um outro indivíduo como esse objeto) pode várias vezes ser doloroso, pode ser complicado, pois não existe uma fórmula para tal, mas mesmo assim é preciso esse esforço de nossa parte para que a nossa vida seja mais saudável, assim como a vida daqueles poucos próximo a nós. Obviamente que este processo de deslibidinização será apenas uma saída provisória para a angústia, mas a meu ver ele se torna um processo cada vez mais necessário na hipermodernidade em que a fixação da libido em algum objeto/pessoa se mostra altamente destrutiva e não raras vezes leva o sujeito a agir de forma extremamente violenta para com tal fixação. Não estaria aqui uma possível pista para o ódio atual aos imigrantes, aos pobres, à esquerda e suas pautas ? 

No final o amor vencerá !