Algo que sempre fez parte do cristianismo desde o seu nascimento foi a noção de evangelização. O evangelho (boas novas) era algo a ser anunciado desde a Judéia, Samaria e até os confins da Terra. Do mais próximo ao mais distante, todos deveriam ouvir e compreender a mensagem de Jesus como forma de "antecipar" a volta Dele. "E este evangelho será pregado em todo mundo em testemunho a todas as nações, e então virá o fim (Mt 24,14).
Várias vezes se entendeu esse versículo como colocando uma obrigação sobre os cristãos de evangelizar, pois o fim só viria, e com isso a salvação, após concretizada a tarefa da evangelização. A salvação vem no final do processo como um grande prêmio a ser recebido uma vez que a empreitada foi concluída. Um resquício grande de um teologia da retribuição pode ser visto aqui sem muitas dificuldades.
A evangelização marca de forma crucial o nosso ocidente e não seria arriscado dizer que marca o nosso mundo como um todo. As diversas formas como o discurso evangelizador foi utilizado ao longo da história nos dão mostra da força que esse tipo de discurso tem no cenário cristão. Desde as cruzadas, passando pelo imperialismo até o evangelicalismo americano (que até hoje continua bastante ativo) vemos que a noção de "levar a palavra aos quatro cantos" é o mote central da prática cristã.
O cristianismo em sua vertente católica e protestante pensam um pouco diferente a noção de evangelismo. Enquanto a doutrina católica se dá de forma mais organizada, trabalhando dentro de contornos mais bem delimitados por Roma, focando muito nos ensinos nas paróquias e comunidades de base como forma de trazer um evangelho mais talvez social, a igreja protestante tem uma preocupação maior com o discurso a ser oferecido e posteriormente uma preocupação com a ação social. Primeiro se deve salvar a alma, depois o corpo. (Obviamente que aqui não cabe a generalização de falar que todas as igrejas protestantes agem de forma igual nesse quesito; as igrejas históricas do protestantismo agem de forma muito parecida do ponto de vista estrutural à igreja católica, embora divirjam em alguns pontos centrais e em vários pontos marginais.)
A disparidade se dá de forma gritante quando pensamos nas igrejas evangélicas propriamente ditas e a forma como elas entendem a noção de evangelismo e missões. Talvez nessas igrejas o caráter apocalíptico de missões e o seu caráter de que isso seja algo que "tenha que ser feito" dê o tom para a forma como se encara essa empreitada nesse tipo de igreja.
Como já falamos em outro texto, as igrejas brasileiras são muito influenciadas pelas igrejas evangélicas ditas "de missões" que vieram dos Estados Unidos para cá no início do século XX. Juntamente com a vinda dessas igrejas vem-se também um discurso que aponta para a emergência da pregação do evangelho aos quatro cantos como uma função de todo aquele que pertence à igreja. No entanto no mundo atual há diversas questões que aparecem que não podem ser deixadas de lado ao se pensar em missões. Questões tais como a tolerância pelo diferente, aceitação da cultura do outro, visões de mundo várias vezes incompatíveis, ontologias díspares, etc.
Eu cresci em uma igreja de forte apelo missionário. Até os 15, 16 anos tinha o sonho de ser missionário e sair pregando para as nações, vivendo por conta de ofertas dos mantenedores que com isso estariam contribuindo para a expansão do Reino de Deus.
Nessa época a profissão/ministério/chamado missionário era uma alternativa relativamente interessante para quem tinha várias vezes poucas perspectivas de um trabalho, ou também pouco interesse em estudar formalmente, etc. Na igreja em que frequentava era uma posição de status "ser missionário" e várias aulas, vários cultos giravam em torno desse chamado de Deus para todos. As crianças eram ensinadas desde cedo a se importarem com missões, a darem ofertas, contribuírem em oração com os missionários que estavam pregando a palavra de Deus em terras distantes. Essa visão do missionário como quem avança pelas terras dominadas pelo mal em nome do amor de levar as boas novas estava muito em voga nos anos 90 ainda e eu cresci nesse meio e achava tudo extremamente interessante e cativante. Conheci e conheço inúmeros missionários e sou amigo de vários até hoje. Tenho muito amor pela causa missionária e acredito sim que muitas pessoas tem em seu coração um desejo de poder realizar tal obra fora de seu país, ou até mesmo dentro dele e isso seja um desejo legítimo.
Além das diversas atividades voltadas para missões (entendidas como algo realizado fora da comunidade) havia também as várias campanhas de evangelismo que eram incentivadas também na mesma igreja. A equipe de evangelismo nunca era muito grande e apenas alguns poucos iam sempre nas campanhas. Geralmente elas aconteciam domingo a tarde depois do almoço e a tática utilizada geralmente era a distribuição de folhetos às pessoas que passavam na rua, e em caso de alguém mais interessado, um diálogo sobre o folheto ou sobre alguma outra questão. Em alguns casos escolhia-se algum lugarejo ou aglomerado próximo à região da igreja e íamos para lá distribuir folhetos e falar sobre Jesus aos outros. O objetivo do evangelismo era sempre o de "ganhar almas para Jesus", ou seja, todo o foco do evangelismo girava em torno de fazer uma oração com o indivíduo para que ele "aceitasse Jesus como Senhor e Salvador de sua vida", nada além disso importava muito.
De vez em quando havia uma preocupação social em relação aos lugares visitados, mas essa tônica era bem menor em relação à preocupação com o discurso a ser levado. Tais evangelismos duravam cerca de 2 ou 3 horas e valia muito mais talvez pelo momento de comunhão entre os membros da equipe do que propriamente pelo objetivo alcançado.
Tendo crescido envolto nesse ambiente que girava em torno de missões, não tem como atualmente não me preocupar quando vejo alguns amigos que estão no campo missionário reclamarem ou exporem as diversas dificuldades pelas quais passam e o pouco suporte dado pelas igrejas que os enviaram. Muito me preocupa o fato de que a igreja não cumpre o prometido aos seus missionários, mas me preocupa ainda mais a questão de saber se esse tipo de pregação ainda tem algo a dizer.
A minha preocupação atual aponta na direção de investigar se esse tipo de evangelismo herdado do início do século XX ainda tem algo a dizer em pleno século XXI na era da hiper-especialização, na era da informação em rede, na época em que conhecemos as diversas culturas, suas construções míticas, etc.
Até que ponto evangelizar seria uma prática de levar um discurso a outro no intuito de fazer com que ele passe a adotar o mesmo discurso que eu?
Qual Jesus que é levado quando se diz anunciar o evangelho?
A preocupação principal hoje é levar um discurso sobre Jesus ou simplesmente uma ação social no intuito de mudar uma determinada comunidade com ações efetivas para a melhora da população?
Se for nesse último sentido apontado, que diferença faz o discurso levado?
Será que o missionário e os centros de treinamentos até hoje existentes que trabalham nessa linha missiológica não estariam defasados em relação às reais necessidades do mundo contemporâneo?
Não estariam aqueles que ingressam nesse tipo de empreitadas fadados a se desiludirem posteriormente quando virem que o seu treinamento (várias vezes pago e caro) não valeu de nada ou se valeu, valeu muito pouco para o que se propuseram?
Será que alguém precisa ser ensinado a ser missionário?
Continua ...
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