segunda-feira, 20 de julho de 2015

A Angústia e a Graça





"As freiras nos ensinaram que há dois caminhos: o caminho da natureza e o caminho da graça. Você tem que escolher que caminho seguir. A graça não tenta agradar a si mesma. Aceita ser menosprezada, esquecida, escanteada. Aceita insultos e ofensas. A natureza só quer agradar a si mesma. Obriga os outros a agradá-la também. Tem prazer em controlar, em impor sua vontade. Encontra motivos para ser infeliz quando o mundo inteiro está resplandecendo ao seu redor, e o amor está sorrindo através de todas as coisas." (Narração inicial de Árvore da vida, de Terrence Malick. Retirada do livro "As divinas gerações" do Paulo Brabo)



Diante de um um mundo em que todas as coisas estão em completa mudança, em que as relações humanas se mostram extremamente fragilizadas, em que cada vez mais a sensação de indiferença diante de tudo e de todos parecer ser a tônica, não sucumbir à indiferença perante o outro parece ser o grande desafio. Se não tomamos cuidado o mundo das coisas a fazer, dos compromissos, acaba por nos afastar do outro enquanto aquele Tu que sempre nos clama por uma resposta.

A indiferença tem suas vantagens, pois ela não me exige nada além de uma falsa presença. Uma tentativa de se importar de mentira, como uma espécie de grande faz de conta que funciona muito mais como uma espécie de muleta psicológica para mim (que me conforto diante da impressão de estar fazendo algo) do que propriamente um comprometimento com esse outro que a mim clama.
Ao mesmo tempo em que somos impelidos pela indiferença a apenas nos satisfazermos, por outro lado nós mesmos, e principalmente o outro, clama pela não-indiferença. Obviamente que ninguém é responsável pela angústia de ninguém a não ser o próprio sujeito, mas diante do outro que sofre como conseguimos ficar como quem simplesmente não se importa? E isso todos fazemos todos os dias diante das mais duras realidades que experienciamos sem que isso nos incomode em nada. Por quantos "jogados à beira do caminho" passamos todos os dias sem se importar?

Quem é o meu próximo senão aquele que se apresenta com uma demanda para mim?
A angústia que nos assola talvez esteja ligada a esse auto-centramento que por se eximir do outro se perde em uma espiral para dentro sem fim, e aqui há talvez um uso perverso da psicanálise por parte do indivíduo, pois a psicanálise é sempre um convite a um auto-conhecimento, uma espécie de desvelar as mais ocultas intenções do humano, etc. A onda psi que assola nossa sociedade acaba criando a ilusão de que seremos nós mesmos a resolver todos os nossos problemas prescindindo do outro.

No entanto, a alteridade daquele outro precisa também ser respeitada. Não posso exigir que o outro se importe comigo da mesma forma que me importo com ele sob o risco de tentar fazer do outro um mero reflexo de mim. O caminho da natureza precisa ser interditado. Esse desafio da alteridade é o que talvez mais nos incomoda, pois o outro é livre para se importar da forma como quiser e não do jeito que gostaríamos que fosse, afinal o jeito que gostaríamos é sempre o nosso jeito. Aqui novamente aparece a figura de Procusto diante de nós, e talvez um risco muito maior que é o da "mercantilização do outro", ou seja, a ideia de que  aquilo que faço para o outro acaba se mostrando como uma espécie de "banco" onde deposito boas ações esperando "sacá-las" quando precisar. 

Esse tipo de dinâmica nos mostra exatamente isso que estamos chamando de "mercantilização do outro", em que o outro é visto apenas como investimento e não como uma pessoa a quem nos cabe auxiliar mesmo que não recebamos nada em troca.
Diante desse desafio o que nos resta senão esperar em meio a angústia? Esperar que esse outro olhe para nós e nos chame pelo nome dando pequenos significados passageiros para nossa vida? O que resta para nós senão o caminho da graça? E o caminho da graça requer sempre que reconheçamos a forma de expressar do outro mesmo que seja diferente da nossa, mesmo que nos faça sentir escanteados, esquecidos, etc. 

Mas não seria essa dependência do outro um estado patológico que deveria ser examinado por psicólogos? Não seria essa dependência uma espécie de doença, um mal-estar a ser resolvido por profissionais? Obviamente que a dependência em um grau excessivo se mostra sempre patológica e não faz bem nem mesmo para o sujeito e muito menos para esse outro, no entanto, como nos lembra Recalcati, é muito mais o auto-centramento do sujeito que a sua dependência em relação ao outro o que prejudica o indivíduo. O que aqui chamo de auto-centramento é o que vemos sempre em meio a nossa sociedade individualista em que o sujeito se vê como "ens causa sui", ou seja, não-dependente do outro para nada, de forma que assumir tal dependência se mostra sempre como sinal de fraqueza, algo a ser evitado a todo custo. Lutar contra esse auto-centramento se permitindo às vezes se mostrar fraco é algo a ser aprendido a cada dia por nós.

Algo que a psicanálise nos mostra é que só somos o que somos por causa do outro que responde ao nosso grito por sentido. Desde a mãe, passando pelo pai, pelos irmãos, os amigos, etc. todos eles acabam sempre sendo uma possível resposta ao nosso grito por sentido. Sem o outro não há nem mesmo o próprio sujeito de forma que a ideia de uma maturidade centrada em um eu monádico se mostra sempre falaciosa. 

O homem se encontra sempre diante de um grande desafio. De um lado a angústia do sentir-se sozinho no mundo, de sentir-se desamparado, do clamar sem resposta, do grito na noite sem que ninguém o acalente. Do outro lado o outro com suas questões, seus desejos, seu tempo, sua forma de responder à nossa demanda. Nessa difícil e sempre constante tensão nos encontramos enquanto "eu", como que no meio de um grande cabo de guerra em que muito pouca coisa nos resta a fazer senão tentar compreender tal dinâmica enquanto a sentimos nos dilacerando. 

Onde abundou a angústia, superabundou a graça !


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