segunda-feira, 30 de novembro de 2015
"Salva-te a ti mesmo e a nós" Lc 23,29
"Se tu és o Cristo, salva-te a ti mesmo, e a nós" Lucas 23:39
"Médico, cura-te a ti mesmo; faze também aqui na tua pátria tudo que ouvimos ter sido feito em Cafarnaum." Lucas 4:23
Uma das coisas que muitas vezes me impressiona é o quanto somos extremamente incoerentes diante de diversas situações em que se esperaria muito mais de nós. Diversas vezes dizemos aos outros o que fazer, como elas poderiam agir, e várias vezes estas outras pessoas nos agradecem, ressaltam o quanto somos bons em ouvir, dar conselhos, propor soluções, etc. Ficamos lisonjeados com tamanhos elogios e começamos a nos sentir realmente muito bem em saber que podemos ajudar aos outros em seus momentos de dificuldades, em suas angústias, em suas questões que podem soar para alguns tão bestas, mas para quem sofre se torna uma questão de vida ou morte.
No entanto, quando somos nós mesmos que estamos na situação em que precisamos nos posicionar, precisamos ouvir os conselhos que nós mesmos diversas vezes já demos aos outros, nessa hora é como se tudo se apagasse e uma dinâmica extremamente infantil, pueril nos dominasse e nos sentimos extremamente impotentes para fazer aquilo que estamos cansados de sugerir que os outros façam. Nossa coerência vai embora com muita facilidade nessas horas. Ouvimos as mesmas palavras que o ladrão na cruz diz a Jesus: "Se tu és o Cristo, salva-te a ti mesmo e a nós", ou seja "por que não faz você aquilo que diversas vezes sugeriu que os outros fizessem?" "por que não te salvas a ti mesmo nesse momento de angústia?", estas e outras perguntas nos são feitas, e são feitas até por nós mesmos que em um completo apagão parecemos esquecer daquilo que sabemos.
Por que não fazemos em nossa pátria aquilo que fizemos em Cafarnaum? Por que diante dos nossos problemas não fazemos uso dos conselhos que demos aos outros? É como se de repente nada fizesse sentido e tudo se esvai como o vento. A partir daí o que resta é apenas lamúrias meio sem sentido, um querer dizer sem saber o que é, um medo desproporcional diante de coisas que não tem motivo algum para gerar medo, um tentar entender diante de um caos aparente aquilo que nos leva a determinadas situações. A partir daí é como se quase nada fizesse mais sentido.
O medo está no "se" da primeira citação. É como se diante das incertezas da vida nos puséssemos como crianças que precisam se certificar de tudo, que não aceitam os precalços que a vida nos prepara. É como se diante do estoicismo aparente se mostrasse um real que por remeter à dúvida escapa a toda dimensão simbólica. O "se" que condiciona tudo, que condiciona a própria salvação, nunca pode ser suprimido, o "se" sempre estará lá diante de nós. A ilusão é acreditar que o "se" pode de fato ser suprimido. Por isso que diante do óbvio, diante da proposta de "viver o presente de forma leve" o coração se acalma, o refrigério vem e as coisas adquirem uma paz momentânea. O constante "se" da vida é um aprendizado. Por mais que queiramos sempre eliminá-lo como forma de garantir uma ordem, como forma de garantir uma segurança, ele se mostra irredutível, ele se mostra presente.
Nesta dinâmica nos encontramos como Jesus entre os ladrões e diante do povo. Questionado sobre sua identidade e sobre os seus atos. Confrontado entre a sua fala e sua ação. Ao povo ainda é possível responder com exemplos como na sequencia do texto de Lucas 4 é feito, mas e aos ladrões no momento da dor, da crucificação e da agonia? O que responder diante de tanto sofrimento? Não há ato nenhum além da morte que possibilita a resposta à afirmação que condiciona a identidade naquele momento. Não há palavras pra justificar, argumentar, expor quem de fato é ou não é o Cristo; há apenas um silêncio seguido de morte, seguido de um escurecer dos céus que testemunha aos outros o porque não ser possível "salvar a si mesmo e a nós".
Se salvasse a si mesmo condenaria a todos os outros, então por amor resolve salvar todos os outros e condenar-se por nós. Diante do "se" elementar, nada mais que um salto de fé. Um "entregar o espírito" em paz, confiando que alguém já o havia acolhido..
Filósofo. Especialista em Teologia. Mestre em Filosofia. Doutor em Psicologia. Doutor em Filosofia.
segunda-feira, 16 de novembro de 2015
Um mundo sem ideia
“O materialismo democrático apresenta como um dado puramente objetivo, como o resultado de uma experiência histórica, o que ele chama de “fim das ideologias”. O que subjaz aí é uma violenta injunção subjetiva cujo conteúdo real é: “viva sem Ideia”. Mas essa injunção é incoerente.
Que essa injunção empurra o pensamento na direção do relativismo cético, já se tornou uma obviedade. É-nos dito que esse é o preço a pagar pela tolerância e respeito ao Outro. Mas dia após dia nós vemos que essa tolerância é apenas um outro tipo de fanatismo, porque ela só tolera a sua própria vacuidade. O ceticismo genuíno, aquele dos Gregos, era na verdade uma teoria absoluta da exceção: ela colocava as verdades num lugar tão alto que acabava por considerá-las inacessíveis ao frágil intelecto da espécie humana. Contestava assim a principal corrente da filosofia antiga, que argumentava que apreender o Verdadeiro é a vocação daquela parte imortal do homem, do excesso inumano que vive em nós.
O ceticismo contemporâneo - o ceticismo das culturas, da história e da auto-expressão - não é desse mesmo calibre. Ele apenas se conforma à retórica dos instantes e à política das opiniões. Assim, ele começa por dissolver o inumano no humano, e depois o humano na vida cotidiana, e, por fim, a vida cotidiana (ou animal) na atonalidade do mundo. É dessa dissolução que nasce a máxima negativa “viva sem Ideia”, que é incoerente porque ela não tem nenhuma ideia do que viria a ser uma Ideia.
É por essa razão que o materialismo democrático busca destruir tudo o que é externo a ele. Como nós notamos, trata-se de uma ideologia violenta e de guerra. Como todo sintoma mortificante, essa violência emerge de uma inconsistência essencial. O materialismo democrático se entende como um humanismo (dos diretos humanos, etc).
Mas é impossível possuir um conceito do que é ‘humano’ sem lidar com a inumanidade (eterna, ideal) que autoriza o homem a se incorporar no presente sob o signo do traço da transformação. Se falhamos em reconhecer os efeitos desses traços, nos quais o inumano leva a humanidade a exceder seu ser-aí, será necessário, para manter uma noção puramente animal, pragmática, da espécie humana, aniquilar tanto esses traços quanto suas consequências infinitas.
O materialismo democrático é o inimigo assustador e intolerante de toda vida humana - isso é, inumana - digna do nome.”
Filósofo. Especialista em Teologia. Mestre em Filosofia. Doutor em Psicologia. Doutor em Filosofia.
quinta-feira, 12 de novembro de 2015
Se passas, amo-te como quem pode perder-te !
Se passas, amo-te como quem pode perder-te !
Uma belíssima contribuição de Freud ao tratar em um texto de 1916 sobre a transitoriedade é mostrar que a transitoriedade das coisas não deve nos remeter à angústia de que aquilo não mais estará entre nós, mas deve nos lembrar do valor inestimável que determinada coisa ou pessoa adquire para nós enquanto a temos.
Sofrer pela ausência inevitável que um dia acontecerá, pela transitoriedade da vida, que por definição é finita, é perder toda a beleza que a própria transitoriedade nos aponta. É pelo fato de acabar algum dia que as coisas carregam sua beleza. Assim como Freud coloca, é o fato do inverno levar consigo toda a beleza da primavera que esta deve ser vivida em toda a sua intensidade enquanto está conosco. Deixar de aproveitar a primavera porque o inverno chegará em breve faz-nos perder a dimensão do encanto que os momentos belos da vida nos proporcionam.
A nossa finitude se mostra como um convite a contemplar a beleza do que muda, a beleza do que se transforma a cada estação, a beleza dos rostos que envelhecem trazendo consigo novas belezas que desconhecíamos. A nossa própria transitoriedade é um convite não a fixarmos ao presente de forma irresponsável, mas a prestarmos atenção ao presente como o tempo que temos para contemplarmos a beleza que nos circunda e nos envolve.
Diante do mal que assolava Freud na época da escrita do texto de 1916 (A 1ª Guerra mundial) e os diversos males que nos assolam hoje, mantenhamos a esperança de que a mesma transitoriedade que carrega consigo a beleza das coisas abre para nós a possibilidade de pensar que os males não são definitivos, que eles também são transitórios...
A transitoriedade se mostra como possibilidade de esperança, e talvez por isso, possibilidade para a beleza.
Filósofo. Especialista em Teologia. Mestre em Filosofia. Doutor em Psicologia. Doutor em Filosofia.
terça-feira, 3 de novembro de 2015
Um arrastar dos dias...
Por que não vens como a relva que cai mansamente sobre todas as coisas?
Por que te demoras em trazer conforto aos corações aflitos?
Por que diante do desespero e da dor não te mostra a nós, mas se esconde?
Por que ?
Será que haverá explicação possível para as angústias que nos assolam?
Que insistem em chegar sem serem convidadas?
Que fazem morada no mais íntimo do nosso coração?
Será que essa é a nossa condição enquanto humanos?
Será que a ideia da angústia como revelação estupefata do nada que nos assola é a mais correta?
Como não cair em um grande abismo diante das diversas assolações que aparecem?
E se nem mesmo abismo houver, mas o mais aterrador nada diante de nós?
Claro que é sempre possível se esconder dessas questões, é sempre até aconselhável não se deter muito sobre elas para que o desânimo não tome conta do coração. Mas se aquilo nos invade, como fechar as portas para esse hóspede não desejado?
E se esse hóspede já for um morador fixo da casa? E se isso que parece vir de fora não vier do mais íntimo a nós mesmos?
Curioso pensar que o espaço acima de nós, os incontáveis planetas, as incontáveis estrelas são para nós extremamente desconhecidos, assim como as profundas águas, as zonas abissais onde reina a escuridão e seres desconhecidos. Nesse meio entre duas grandes icógnitas nós habitamos sem saber muita coisa sobre muita coisa. E em nós também habita uma imensidão desconhecida. Acima de nós, abaixo de nós, em nós, somos rondados pelo mistério e isso talvez seja o que mais nos espanta durante a vida.
Médico, cura-te a ti mesmo ! (Lc 4,23)
Por que as mãos e as palavras que a tantos já ajudaram em nada auxilia agora em momento de tamanha angústia e dor?
Por que não diz para si aquilo que sempre disse aos outros?
Por que para ti as palavras são tão sem efeito? Será que se considera melhor que os outros a ponto de não conseguir nem mesmo se ajudar?
Será que a dor é tão grande que nenhuma palavra nem sequer toca a ferida?
Mas quem será capaz de, de fato, aplacar essa dor senão eu mesmo?
Como Jó clamo para que haja auxílio e o que se ouve são apenas mais perguntas, mais indagações, convites a vasculhar outras dimensões de si mesmo. Nenhuma resposta.
São tão tristes os dias, as alegrias se mostram tão pequenas que qualquer hora em que aparecem me agarro a elas como se nunca mais fossem voltar. Nesse afã de manter as pequenas felicidades perto é como se fizesse de tudo para que elas não ficassem, pois o empolgar-se demais soa estranho, soa desespero, faz com que se queira distância de quem lida assim com pequenas coisas.
E assim o caráter obsessivo vai crescendo, e quem mais sofre com isso senão os mais próximos? A quem mais é dado o peso de suportar tudo isso senão àqueles em quem confiamos? Mas até que ponto eles também não sucumbirão diante de tão árdua tarefa? Será honesto com eles também colocar sobre ombros já tão cansados tamanho peso e dor? Oh tão triste dinâmica essa desses dias ! Tamanho sofrimento que invade de forma tão profunda que nos faz perder a calma, que nos faz querer apenas dormir para que nada mais nos incomode.
Pra que tentar ser forte diante de um inimigo tão poderoso? Por que não aceitar a fuga como única solução possível e correr para longe dos problemas se fixando em tarefas e mais tarefas? Por que não tentar esquecer esses pensamentos e focar no que não faz sentido, ou faz sentido apenas provisório?
Há, no entanto, uma voz que ressoa. Uma voz que insiste em dizer: "Estou sempre aqui!". Ah como admiro aquela voz. Como valorizo aquelas três palavras. Como me apego a elas nos dias mais árduos. Talvez seja no repetir incessante dessa voz em minha mente que haja um pequeno fio que me impeça de sucumbir naquele abismo que tudo visa sugar. E quantas outras vozes não serei capaz de ouvir dizendo a mesma coisa? Se pelo menos os outros soubessem do turbilhão de coisas que acontecem, se eles pelo menos tivessem noção de que por trás de tamanha tranquilidade habita uma desolação inexplicável que avança durante os dias e faz com que me arraste dia após dia. Se pelo menos eu fosse capaz de clamar por essas outras vozes para que elas se fizessem ouvir para mim. Se pelo menos eu tivesse força para isso...
Filósofo. Especialista em Teologia. Mestre em Filosofia. Doutor em Psicologia. Doutor em Filosofia.
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