"Em psicanálise, a traição do desejo tem um nome preciso: felicidade. [...]
Num sentido lacaniano estrito do termo, deveríamos então postular que a "felicidade" se baseia na incapacidade, ou aversão, do sujeito de enfrentar abertamente as consequências de seu desejo: o preço da felicidade é permanecer o sujeito preso à inconstância do desejo. Na vida diária, (fingimos) desejar coisas que na verdade não desejamos, e assim, ao final, o pior que pode nos acontecer é conseguir o que "oficialmente" desejamos. A felicidade é, portanto, intrinsecamente hipócrita: é a felicidade de sonhar com coisas que na verdade não queremos.
Quando hoje a esquerda bombardeia o sistema do capital com exigências que este evidentemente não consegue atender (Pleno emprego! Manter o Estado assistencialista! Todos os direitos aos imigrantes!), ela está fazendo um jogo de provocação histérica, de dirigir ao Mestre uma exigência que lhe será impossível satisfazer, expondo assim a sua impotência. Mas o problema dessas estratégia não é apenas o fato de o sistema não ser capaz de atender a essas demandas, mas além disso, o fato de que aqueles que as manifestam na verdade não desejarem que elas se realizem. Por exemplo, quando exigem direitos plenos para os imigrantes e a abertura das fronteiras, estarão os acadêmicos "radicais" cientes de que a implementação direta de tais exigências implicaria, por muitas razões, a inundação dos países ocidentais adiantados com milhões de imigrantes, criando dessa forma uma violenta reação racista da classe operária que colocaria em risco a própria posição privilegiada desses acadêmicos?
É claro que sabem, mas contam com o fato de que suas exigências não serão atendidas - e assim eles continuam hipocritamente a manter limpa a sua consciência radical sem perder sua posição privilegiada. [...]
Sejamos realistas: nós, acadêmicos da esquerda, queremos parecer críticos, apesar de usufruirmos de todos os privilégios que o sistema nos oferece. Vamos então bombardeá-lo com exigências impossíveis: sabemos que essas exigências não serão atendidas, e ficaremos seguros de que nada vai realmente mudar, e manteremos nosso status privilegiado!". Se alguém acusa uma grande empresa de certos crimes financeiros, está se arriscando até a uma tentativa de assassinato; por outro lado, se pede à grande empresa um financiamento para um projeto de pesquisa sobre a relação entre o capitalismo global e o surgimento de identidades pós-coloniais, a mesma pessoa tem uma boa probabilidade de ganhar milhares de dólares."
ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do Real. Boitempo 2003 p. 79-80
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