Em 2014 escrevi um texto aqui em que propunha tratar a questão homoafetiva e a sua relação com a igreja evangélica brasileira. Na época chamei de "parte 1" da abordagem. Recentemente
com o comentário muito sem noção da cantora Ana
Paula Valadão sobre a campanha da C&A nas redes sociais, a
questão da posição "evangélica" quanto à questão
homoafetiva voltou a tona. Algumas pessoas pediram a minha opinião
sobre o tema, e fiz alguns comentários quando me foram solicitados. Chamo então esse texto de "parte 2" do texto de 2014. Segue abaixo os comentários dos amigos do FB em azul e minha resposta logo abaixo. São apenas dois comentários que selecionei para o texto não ficar muito extenso. Penso que ambos dão o núcleo da questão trabalhada aqui.
"Por
favor, ajudem-me. Trata-se da tão falada "Ideologia de Gênero": - Quando um
membro de uma denominação pentecostal ou neopentecostal, nascido
com um pênis no meio da pernas, identificado ao gênero masculino,
canta músicas religiosas em que, repetidas vezes, afirma estar
apaixonado por Jesus e ser a Sua noiva, este está exercitando a -
horrível, pecaminosa, mundana, maligna - "Ideologia de
Gênero"? -
Quando uma mulher, nascida com uma vagina, parte de uma denominação
cristã pentecostal ou neopentecostal, diz ser um soldado de Cristo,
canta músicas e marcha ao som de tambores, repetindo coros em que
afirma ser um guerreiro de Deus ou um valente do céu, tal mulher não
fere as normas divinas que estabelecem o que é próprio e
característico do macho e da fêmea? Pergunto isto porque meus
colegas evangélicos parecem esquecer que as construções de gênero,
além de se mostrarem nas placas de banheiro, nas vestimentas e nos
adereços de moda, evidenciam-se, sobretudo, por meio das palavras e
das construções linguísticas. Ah, e se vierem me falar que em meus
questionamentos refiro-me à metáforas, perguntarei porque este
recurso linguístico - o da metáfora - não pode ser utilizado em
textos e passagens que tais "doutores da Lei" insistem em
repetir quando atacam homens e mulheres gays, lésbicas e/ou
transexuais." (Hugo Leonardo)
A
questão que você coloca realmente é bem interessante e a meu ver
aponta para uma questão muito mais estrutural dentro do cenário
evangélico brasileiro. O comentário da Ana Paula, além de ser
infeliz, traz consigo uma visão bastante recorrente no meio
evangélico brasileiro (isso pode ser visto nos vários comentários
apoiando a posição dela no instagram) que coloca o homossexual como
alguém que estaria longe, afastado dos caminhos de Deus por conta de
sua orientação sexual, e no caso específico do caso em questão,
uma luta ideológica contra a ideologia de gênero.
Há
uma dificuldade enorme no meio evangélico (E aqui é necessário já propor uma divisão entre "evangélicos e protestantes" que claramente não são a mesma coisa no contexto brasileiro) em lidar com diversas
questões contemporâneas porque eles insistem em ler a realidade
atual por meio de lentes antigas. Em nome de uma "preservação
do texto", acabam indo contra ao "espírito do texto".
Eles acabam esquecendo que Jesus propôs uma releitura da lei em seu
tempo, ou seja, pegou o texto e retirou dele o seu "espírito"
para a época em que vivia. Esse movimento de "fidelidade"
ao princípio de Jesus é completamente esquecido quando se toca em
temas contemporâneos em grande parte da igreja evangélica
brasileira.
Algo
que sempre achei interessante pensar é que se quisermos ser fiéis à
proposta de Jesus precisamos fazer assim como ele fez, ou seja,
traduzir o texto para o nosso tempo preservando o espírito do texto
e não nos fixarmos em leituras estanques que acabam trazendo
fundamentalismos que nos afastam do intuito bíblico primordial. O
Deus cristão sempre se mostra no texto bíblico como um Deus de amor
que não tem em mente a condenação dos homens, mas muito pelo
contrário, a salvação deles.
A questão da "ideologia de gênero" é um típico tema atualíssimo da nossa época e que exige sim um pensamento crítico por parte do meio cristão. A posição simplista de afirmar que "Deus criou Adão e Eva", ou "Romanos 1 diz isso e isso" soa uma tentativa de fugir da questão e se trancar naquilo que comentávamos mais acima, ou seja, insistir em ler os tempos atuais com lentes antigas.
O que podemos dizer sobre a "ideologia de gênero"? Sou contra a noção também bastante divulgada de que "não existe ideologia de gênero", pois afinal ela existe sim e é uma forma que encontraram de deturparem a questão no que diz respeito à relação do indivíduo com sua sexualidade. Chamar a noção "identidade de gênero" de "ideologia de gênero" é tentar por meio de palavras deslegitimar uma questão fundamental da nossa sociedade contemporânea, afinal a "ideologia" é associada comumente como algo negativo, ou algo a ser "superado", ao passo que a noção de "identidade" aponta para algo muito mais estrutural no sujeito. A noção de "gênero" não é, portanto, apenas uma "ideologia", mas foca em uma relação identitária do sujeito, e isso deve sim ser respeitado e não superado.
Toda a nossa relação com o mundo é sempre ideológica. A realidade nua e crua não nos é acessível, pois apenas por meio da linguagem somos capazes de entrar no mundo humano. A linguagem é em si mesma ideologicamente construída. Dessa forma, a questão da homossexualidade, transexualidade, bissexualidade e todas as suas variantes não passaria tanto por uma questão de "ideologia de gênero", mas passaria por uma resposta do indivíduo em relação à sua sexualidade.
Por mais que o meio evangélico insista em negar, já é muito sabido que o objeto sexual de cada indivíduo não passa apenas por um fator biológico, mas passa por diversas outras construções sociais, e que por isso mesmo tal objeto varia de pessoa para pessoa. A suposta "heteronormatividade" se mostra assim apenas como uma grande convenção social e não está, portanto, ancorada em nenhum "princípio divino", etc. A imagem abaixo ilustra de forma bastante didática o que está em jogo na proposta, não de uma "ideologia de gênero" enquanto discurso deslegitimador, mas como "identidade de gênero", que como se pode ver não tem muita coisa a ver com "nascer homem ou mulher".
A questão é muito mais complexa do que diversos setores evangélicos querem fazer acreditar por meio de posturas extremamente fundamentalistas. Não se trata nesse caso de "ideologia de gênero", mas se trata muito mais de uma noção de "identidade de gênero". O objeto ao qual a pulsão dirige o seu interesse.
Se prestarmos atenção ao texto bíblico veremos que ele diz muito pouca coisa sobre sexo e Jesus nem mesmo toca na questão segundo os evangelhos, o que nos leva a crer que isso nunca foi um problema a ser enfrentado por Jesus, mas que provavelmente chegou ao cristianismo por outras fontes. Talvez gnósticas, talvez platônicas, talvez por meio do estoicismo antigo, mas fato é que tal questão é completamente estranha ao surgimento do cristianismo. As pouquíssimas falas de Paulo sobre o tema, se analisadas de forma mais detida nos mostrarão que o que está em jogo não é o "objeto da pulsão", mas muito mais a relação para com o outro, se tal relação é feita "em amor ao próximo", ou "sem amor ao próximo".
Sobre
as músicas no meio evangélico que evidenciam tanto a ideia de
"noiva de Cristo" e a ideia da "mulher enquanto
guerreira" temos um problema ainda maior.
É
sabido que as músicas que se cantam no meio evangélico, na maioria
das vezes não tem muito a ver com o texto bíblico. E aqui é algo
extremamente curioso que é o grande paradoxo de uma leitura
fundamentalista do texto no quesito "doutrinário", mas a
possibilidade metafórica quando se trata de melodias, o que gera
músicas extremamente dúbias do ponto de vista do texto. Escrevi até
um texto no blog há alguns anos atrás sobre isso, caso queira ver
http://veliqs.blogspot.com.br/2011/07/culpa-cantada.html
O
"varão" que se identifica com a noiva de Cristo tem um quê
sim de uma personificação do feminino, mas ao mesmo tempo tem mais
a ver com se identificar com uma esfera metafísica em que a noiva se
tornaria um ser impessoal, sem "identidade" (o que
permitiria a identificação por parte do "varão" sem
"abrir mão" da sua sexualidade) que não é um indivíduo,
mas um grupo (feminino nesse caso). Esse tipo de identificação com
o grupo difere por exemplo do caso Schreber que queria ter um "filho
com deus", ser penetrado por Deus e tals. A noiva de Cristo,
para lembrarmos, não tem uma conotação "sexual", por
assim dizer, mas se vincularia muito mais a uma união "mística"
com seu noivo. E aqui, até nisso podemos ver uma dificuldade do meio
evangélico em lidar com a questão afetiva/sexual. (Não é sem motivo que o texto de Cântico do Cânticos é facilmente transformado em um poema "dessexualizado" por grande parte da igreja evangélica.) Freud já dizia
muita coisa sobre tal temática e a dificuldade religiosa em lidar
com a questão sexual. Em seu livro
"Psicologia de grupo e análise do ego" (1921) essa
questão é tocada de forma bastante salutar no que diz respeito à
igreja enquanto instituição e o processo de identificação
envolvido na adesão às instituições.
Em
relação à mulher que se vê como guerreira, acho que nesse ponto é
até mais tranquilo pra gente hoje e seria até motivo de "defesa"
para afirmar que o meio evangélico não veria diferença quando se
trata de "guerrear", mas vê uma ENORME diferença quando
se trata de "amar".
A
identidade de gênero já é algo muito bem aceito em diversas igrejas
protestantes e a igreja católica também já tem mostrado alguma
abertura à questão (embora os passos sejam bem tímidos). Creio que
seja uma questão de tempo mesmo até essa questão se resolver de
fato. É bastante complicado para quem é homossexual, tem uma
vivência eclesial e precisa o tempo todo, ou esconder-se, ou ter que
lutar incessantemente por algo que deveria parecer óbvio dentro de
qualquer meio religioso que é a pluralidade dos objetos passíveis
de serem amados.
"Tenho uma dúvida sincera diante dessa última polêmica com a pastora Ana Paula Valadão e a C&A, é possível ser cristão e não ser homofóbico? A Bíblia é bem explícita em sua condenação a prática homoafetiva, portando não me causa qualquer espanto essa oposição à homossexualidade pelos cristãos. Não só à orientação sexual, também às práticas religiosas distintas, às diversas culturas, enfim ... é apenas um dúvida. Tolerância e a fé cristã me parece palavras que não combinam, o livro sagrado e a história são bem explícitos quanto a isso." (Henrique Chaves)
É
possível sim, meu caro. Infelizmente o que mais se ressalta é o
aspecto negativo. Mas a partir do próprio texto bíblico podemos
pensar um discurso completamente diferente do propagado por aí. A
suposta "condenação explícita" do texto bíblico deve
ser lida
contextualmente. Apenas uma leitura fundamentalista do texto que
permite um discurso que não seja tolerante. Apenas se nos fixarmos
na "letra do texto" e não em seu "espírito"
(pensando aqui no famoso versículo bíblico, "a letra mata, mas
o espírito vivifica" 2Cor 3,6). Uma leitura do texto bíblico de
forma a manter o seu "espírito" aponta para outra direção
que é a do amor, da tolerância, do vivenciar a experiência do
outro em toda a sua diferença. O próprio exemplo do Cristo e suas
inúmeras propostas para a tolerância, não só com as mulheres, com
os leprosos, com os que não seguia com ele, com os menosprezados,
etc. já deveria levar o povo que diz usar o texto para
justificativas intolerantes repensarem suas opiniões vomitadas por
aí. É um longo caminho, mas percebo um pouco mais de abertura nesse
meio. As igrejas inclusivas são um exemplo desse movimento.
O tema em questão urge ser tratado de forma mais sistemática dentro da igreja evangélica brasileira e mundial. Mesmo com algumas aberturas já evidenciadas nestes meios há ainda um longo caminho a ser percorrido. A luta é árdua e deve ser mantida por todos nós que acreditamos que o princípio maior do cristianismo é o amor ao próximo em toda a sua diferença.