Recebi o seguinte pedido de uma pessoa muito querida:
"Oi, Fabiano! Gostaria de provocá-lo a escrever um texto sobre os crimes gerados pela intolerância e o julgamento do outro. Devido aos últimos acontecimentos, penso que a humanidade caminha em círculos. Um abraço!"
Esse texto é um esforço de responder a esse pedido.
Vós não sabeis de que espírito sois ? (Lc 9,55)
Diante do cenário vivido por nós em que a religião ganha cada vez mais espaço na vida pública é interessante pensarmos em que medida algumas ações estariam ou não ancorados nos princípios defendidos por estas religiões. Os seus textos sagrados, quando lidos de forma atenta, parecem nos mostrar outra coisa que não os discursos de ódio propagados todos os dias entre nós. Um caso que teve muita repercussão recentemente foi o caso do atirador em Orlando que matou cerca de 50 pessoas em uma boate gay nos EUA.
O crime já foi caracterizado tanto como "homofobia" quanto como "atentado terrorista", o que obviamente não impede que sejam as duas coisas ao mesmo tempo. É bem plausível pensar em um ataque terrorista promovido por uma pessoa homofóbica e é interessante pensar quais os interesses envolvidos em classificar um ato bárbaro como esse como uma opção ou outra. Curiosamente qualquer que seja a "motivação" aceita para o crime, ambas podem ser justificadas como sendo "vontade divina" de um deus que não consegue lidar com as diferenças, ou melhor, vontades de um deus intolerante.
Se adotarmos a questão do ponto de vista do "ataque terrorista" fica claro que o atirador tinha em vista uma noção deturpada da Jihad islâmica e muito provavelmente agiu em nome dessa noção deturpada se colocando como mártir contra os infiéis exercendo a "justiça divina". Da mesma forma se pensarmos que se trataria de crime de motivação homofóbica a mesma dinâmica se repete e o atirador se sente como uma espécie de "enviado de deus" para exercer justiça contra os que praticam "coisas abomináveis aos olhos de Deus". Novamente uma leitura deturpada só que agora não da noção de Jihad e vontade de Alá, mas do texto bíblico e a suposta vontade do deus cristão. Percebe-se que as duas motivações propostas para o crime (ato terrorista, homofobia) desembocam no mesmo lugar que é a noção de que se exerce algo em nome da chamada "vontade divina", e isso aponta para a dificuldade de compreender o que está por trás das mensagens dos textos sagrados, o que ele visa nos revelar, fazendo assim um uso privativo de tais textos por meio de leituras fundamentalistas.
Aqui é interessante notar como que as religiões monoteístas e sua visão linear da história tem uma propensão a um caráter bélico. No judaísmo e no islamismo isso se mostra muito facilmente, ao passo que no cristianismo tal proposta se mostra de forma um pouco mais velada, mas ainda assim aparece. Basta lembrarmos os diversos apocalipses escritos no primeiro século para isso se mostrar nitidamente para nós. À medida que o tempo for passando e o fim for se aproximando mais e mais o mal mostrará a sua face e as intervenções divinas serão vistas de forma mais nítida. Talvez aqui esteja uma possível justificativa para o apoio encontrado entre alguns evangélicos do acontecido em Orlando. A visão compartilhada sobre o desenrolar da história corroboraria atos violentos... (estranho, mas possível...)
O versículo que propus para abrir essa pequena reflexão aponta para um evento em que, depois de saírem da experiência da transfiguração, Tiago e João se encontram diante de uma aldeia de samaritanos que se recusam a receber Jesus que estava indo para Jerusalém. Diante de tal recusa, Tiago e João propõem uma saída bastante enérgica e perguntam a Jesus: "Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma, como Elias também fez?" Jesus obviamente acha aquela pergunta muito estranha e lhes pergunta: "Vós não sabeis de que espírito sois?" Ou seja, há uma diferença enorme entre a concepção de Deus proposta por Elias e a concepção de Deus proposta por Jesus. Jesus nessa hora ensina a tolerância, lhes afirma que "o filho do homem não veio para destruir a vida dos homens mas para salvá-las." (Lc 9,56), ou seja, o Deus que Jesus procura anunciar não está interessado em eliminar os inimigos, mas em salvá-los.
Na contemporaneidade a noção de tolerância se torna uma faca de dois gumes, pois ao mesmo tempo que se fala cada vez mais de tolerância, mais se vê atos que demonstram que tal noção se dá apenas em um nível discursivo e muito pouco no nível "prático". Em nome de uma suposta tolerância universal o que se vê é um novo tipo de fanatismo que dialoga de forma constante com a intolerância, pois o discurso da tolerância universal aponta apenas para a vacuidade hipermoderna que não dá conta de lidar com o diferente e no lugar disso propõe uma homogeneização das formas de pensar. Como diria Sponville, não se pode tolerar os intolerantes, pois isso aponta para o fim da própria tolerância. Na dinâmica da suposta "aceitação de tudo e de todos" evidencia-se de forma cabal a nossa dificuldade atual de lidar com o diferente. Isso demonstra uma cultura da indiferença tipicamente hipermoderna, onde a dimensão do Outro só entra quando de alguma forma corrobora a mim mesmo. Um narcisismo levado às últimas consequências, ou melhor (na expressão da Colette Soler), um narcinismo misturado com um relativismo cético.
Para além das "motivações de caráter sexual e suas repressões" já propostas por diversos jornais, o caso do atirador em Orlando aponta para uma intolerância em lidar com essas posturas diferentes, que longe de demonstrar uma "indisposição meramente no nível das ideias", demonstra mais uma intolerância em relação a qualquer um que pense diferente. Quando esse tipo de postura encontra uma justificativa em algum texto sagrado (Bíblia e Corão nesse caso) o cenário se torna extremamente propício para que o atirador se sinta justificado diante das medidas extremas que pretende tomar. Um fato curiosíssimo foi a igreja batista de Westboro sair às ruas com cartazes cujos dizeres o título desse texto faz menção. O fato de uma igreja evangélica se colocar a favor de tais atos nos mostra que tais leituras que motivaram o atirador não são "casos isolados", mas se mostram cada vez mais frequentes tanto na religião cristã quanto na religião islâmica. O fundamentalismo religioso pode ser encarado como uma forte tendência hipermoderna e pode ter como possível explicação a ausência de referenciais simbólicos a que estamos submetidos em nossa "sociedade líquida".
O nosso cenário atual é extremamente conturbado. De um lado há um certo discurso normativo de uma tolerância universal aliado a um relativismo moral que afirma que todas as posições devem ser aceitas pelo simples fato de serem posições de um indivíduo dotado de razão e qualquer tipo de crítica ou juízo de valor devem ser evitados. Por outro lado temos os fundamentalismos religiosos que com suas leituras herméticas dos textos sagrados e suas pregações de caráter bélico encaradas como verdades reveladas por deus motivam crimes em diversos países. Nesse cenário fica extremamente complicado emitir um juízo sobre nossa situação a não ser que elejamos um valor pelo qual estejamos dispostos a lutar, e tal cuidado na maior parte das vezes não é levado em conta de forma que julgamentos precipitados são emitidos toda hora. Talvez a ânsia de dar uma explicação para eventos que nos atormentam leve a emitir juízos várias vezes tão rasos e sem a devida reflexão.
Analisar a época em que se vive é extremamente complexo, pois nos encontramos no olho do furacão com tudo girando ao nosso redor de forma que o distanciamento necessário para uma leitura mais "isenta" se torna impossível, no entanto, não podemos nos eximir de tentar compreender os fatos que nos cercam, mas sempre evitando julgar precipitadamente o que não conhecemos. Quando o assunto envolve temas religiosos os julgamentos precipitados são quase a tônica. Basta acontecer algum evento ligado à religião para que apareçam discursos de ódio generalizando as religiões afirmando que elas são "ópio do povo", que "todas deveriam acabar", etc. E curiosamente esse tipo de discurso não vêm de pessoas não esclarecidas, mas geralmente é no meio acadêmico que tais discursos simplistas encontram maiores moradas. Não acredito que tais julgamentos precipitados sejam uma boa resposta para problemas tão complexos. É preciso indagar diversas coisas, e uma delas, com certeza, é o papel da religião no mundo contemporâneo e ao mesmo tempo, o que se pode entender por religião no atual cenário.
O acontecido em Orlando é, de fato, muito triste e deve nos fazer refletir sobre o impacto do discurso religioso na nossa época. A religião entendida como uma forma do homem se colocar diante do mundo, entendida como um possível norte para o sujeito, entendida como algo capaz de balizar o indivíduo diante das intempéries da vida não deve ser justificativa para atos que atentem contra a vida, mas infelizmente o que vemos é uma deturpação da religião promovendo discursos que incitam a violência e o menosprezo pelo diferente. Ao invés de celebrar a vida e promover a alegria, os discursos religiosos vão promovendo a morte e a tristeza. Que religião é essa que se alegra com a morte do planeta e dos seres humanos? Não é a religião islâmica e nem a religião cristã. Ambas são religiões pacíficas que com certeza condenam atos como o acontecido em Orlando.
Did God send the shooter? Absolutamente não.
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